A voz do povo

PUB.

Como nos filmes os bons são os primeiros a cair. Não há boa trama que não deixe os maus escaparem a todos os tiros da chuva até caírem no final com a maior apoteose possível. Os outros perecem por entre cenas prematuras e secundárias. Há duas semanas faleceu o primeiro médico a denunciar a existência do novo vírus. Nessa altura, fins de Dezembro, o médico oftalmologista, Dr. Li Wenliang, 34 anos, desconfiou do resultado das análises de um doente e partilhou num grupo de wechat com outros médicos do mesmo hospital que aquela situação poderia ter dimensões bem preocupantes. Colocou algo do género “resultados estranhos, será que o SARS ainda anda por aí?” e aconselhou logo a pôr de quarentena esses primeiros doentes infectados. No dia seguinte foi prontamente visitado e advertido pelas autoridades por estar a incorrer no crime de difundir rumores e inverdades potencialmente alarmistas. Com a mesma prontidão com que lhe foram bater à porta, retractou-se e pediu desculpa em nome dos bons costumes. Por esses mesmos dias apanhou o vírus talvez porque ainda não houvesse a informação nem os cuidados que se adoptam agora. Ao longo de um mês lutou estoicamente afirmando sempre que iria recuperar para pôr mãos à obra e tratar todas os doentes e todas as vidas que tinha pela frente. No dia 6 de Fevereiro perdeu a batalha. Paz à sua alma. Basicamente a sinopse do filme é esta. Mas a sinopse revela pouco sobre a sinuosidade do argumento. O enredo tem partes fáceis de perceber, as autoridades de Wuhan tinham consciência deste problema desde finais de Dezembro, mas só no dia 22 de janeiro é que impuseram o nível de emergência, ao mesmo tempo que quase todas as províncias da China. Ou seja, só quando todo o país e já o mundo sabiam do problema e após tanta gente ter andado a circular livremente sem qualquer restrição. Pensavam que iam dar conta do recado, mas só quando viram que já não tinham mão na coisa é que decidiram chamar por socorro. Tipo aquela gente que afirma hoje cozinho eu, toda confiante, mas depois acaba invariavelmente por pedir ajuda de ombros encolhidos quando o bacalhau com natas começa a parecer-se com uma grande massa de suco gástrico. Logo aqui, que se percebia que a malha iria ser forte mas ainda não se sabiam as linhas com que se cosia, a população chinesa ficou com um pó daqueles aos governadores de Wuhan (capital) e de Hubei (província). Acontece que na altura ainda nem se conhecia a história do Dr. Li e do facto de ter avisado os colegas para a transmissão pessoa a pessoa do vírus. Se lhe tivessem dado ouvidos talvez não tivessemos chegados a este ponto, mas na altura a primeiríssima medida preventiva foi fazê-lo assinar um papel na polícia a admitir que tinha errado nas declarações e a pedir desculpas públicas por isso. É curioso ver nas redes sociais a onda de comentários que assinala esta triste perda. Numa situação destas o pessoal estica um bocado a corda. As pessoas estão a unir grandes esforços, tanto as que estão em casa como as que têm de estar no terreno, o povo tem sido inexcedível, cumprindo responsável e diligentemente o seu papel, quando do outro lado se viu uma borratada de todo o tamanho. Uma borratada com tentativas de emendas piores que o soneto em si e que levou um mês até entrar nos eixos. Nestas alturas a língua e dos dedos acabam por ficar um pouco mais soltos. Quem souber ler, lê que a verdade foi silenciada, colocam-se poemas de Bertold Bretch e de autores soviéticos, escrevem-se cartas de despedida onde se lê a palavra mártir, sussurram-se novelas com personagens principais e estórias de nepotismo e inoperância de umas quantas instituições que revelaram toda a sua improficuidade quando delas foi realmente necessário. Há até quem sugira que este dia fique consagrado como o dia do doutor Li.

Umas vezes demora, outras nem por isso, mas o tempo gosta de trazer a razão à tona de água. Mesmo que a razão morra ao chegar à praia e nada altere, nada acrescentando aos dias do presente, a história não costuma esquecer-se de pequenos detalhes nem de grandes homens. Esta é uma das partes deste filme ainda em rodagem que interessa reter. Já vi palavras da moda como denunciante ou whistleblower associada ao Dr. Li, mas são apodos que não lhe assentam mesmo nada bem. Ele não era alguém que vivia escondido atrás de um computador para revelar (a troco de algo) os podres de que o mundo é feito. Era um médico que referiu a verdade e que a defendeu nos termos em que nalguns sítios deste mundo é possível defendê-la. Um profissional que cumpriu a sua deontologia e que primeiramente alertou para os perigos que estavam para vir. Um homem atingido pelos ingratos ossos do ofício que ansiava vivamente a hora de saltar da cama para poder voltar a curar pessoas com as suas próprias mãos. Nem mais, nem menos. Chamar-lhe denunciante é politizá-lo, é tirar-lhe o que o seu curto mas significativo legado tem de melhor, toda a sua humanidade. E quem está há mais de um mês confinado em casa no meio de um ping-pong de informação e desinformação ou lá fora a trabalhar arduamente para subjugar esta batalha sente de alguma forma que perdeu um dos seus. Chamar-lhe denunciante é como chamar menino a um homem com a fibra e com os valores que poucos conseguem trazer a este mundo. Que estas palavras recordem a melhor parte deste filme e que registem a admiração pelo exemplo deste jovem médico. Amigo Li, onde quer que estejas, que nunca percas a força e a motivação para poderes continuar a ajudar pessoas e a salvar todas vidas que não pudeste salvar aqui. E já agora que possas ter um pouco mais de voz do que a que tiveste por cá. Um forte abraço.

 

* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen

Cantão Guangdong – China

Manuel João Pires