De Profundis

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Repito-me sem tremor na altura do dia de finados. Agora, sem temor porque consegui saltar da barca de Caronte, a queda em consequência do aparatoso salto tem-me custado demorada convalescença e profunda reflexão acerca da finitude da vida.
Milhões de mulheres e homens desaparecem sem deixarem vestígio ao modo dos mortos desprovidos de moedas para pagarem a passagem na referida barca. A Mitologia é acervo de mitos, lendas, gestas e outras reminiscências dos nossos ancestrais, do seu estudo ganho saberes sobre o riso, a ironia, o sarcasmo, a comédia, o drama, a farsa e a tragédia. Todas estas versões teatrais estão impregnadas de dor, de sofrimento, de morte.
Na espuma dos dias de agora esconde-se a morte, o De Profundis é considerado tremenda maçada se dure mais de trinta minutos, a manifestação ou sinal de luto, disso retirei a prova-provada ao colocar em volta do pescoço uma gravata preta durante dois anos e meio após a morte do meu filho mais velho.
Fala-se na construção de um memorial a recordar as vítimas dos incêndios, ainda bem, no Largo do Principal em Bragança ergueu-se um obelisco a salientar os combatentes mortos no decurso da 1ª Guerra Mundial. Poucos caminhantes reparam no dito memorial, menos os que sabem qual a causa da nossa interesseira participação no cruento conflito.
Por obrigação do cumprimento do dever para com a Pátria, ao exemplo de tantos outros integrei um Batalhão de Artilharia no período da guerra colonial. Tive a sorte de regressar, milhares de camaras lá perderam a vida. As esporádicas manifestações de apreço pelo seu sacrifício sepultam na obscuridade o sentido patriótico, enquanto pululam os patrioteiros especialistas na obtenção de mordomias acrescidas de medalhas deixando os mortos ao cuidado das ténues labaredas no Mosteiro da Batalha. Discutir-se seriamente a Guerra Colonial só em Congressos também palco de vanidades, os morto em combate fazem parte da estatística explicada pelo sinistro José Estaline, Zé dos Bigodes da literatura neo-realista.
Em Bragança, em Trás-os-Montes, não faltam elementos iconográficos relativos à morte e a mortos que conseguiram salvar-se do anonimato, as suas representações deviam ajudar os professores a melhor explicarem os programas. Sim, eu sei, consagrar atenção à morte fora do âmbito individual pode merecer críticas, dizer-se ser ideia abstrusa, interessar em primeiro lugar a criatividade óbvia da vida, colocar nos braços dos poetas, dos dramaturgos, dos romancistas, dos escultores, pintores, e tutti-quanti das artes, da sétima, o tema da morte.
Discordo. Já escrevi, gosto de perceber as localidades visitando os cemitérios, uns simples, outros repletos de ostentação e bazófias. E, no entanto, todos nos ensinam.
Também a Antígona nos ensina a honrar os mortos ao tratar do corpo do seu irmão morto pelo irmão, numa luta feroz entre irmãos, cujo móbil era o trono de Tebas (julgo na errar ao escrever que o bragançano Paulo Quintela encenou a peça de Sófocles, e a vinhaense de Sobreiró de Cima, Elza Fernandes (Chambel, apelido do marido) interpretou brilhantemente a heroína capaz de enfrentar a lei dos cúpidos humanos, defendo o direito de enterrar condignamente o irmão que integrava o núcleo dos vencidos.
A História explica as causas de não haver piedade para os vencidos, no cromático México o dia da exaltação dos mortos é estridente, festivo, de «comunhão» com os vivos, para lá do espectáculo os vínculos com os desaparecidos são fortes, daí as garridas convivialidades.
No Ocidente a cultura do efémero não favorece a comemoração de efemeridades dolorosas, os ocupantes voláteis, inevitavelmente, o choque é inevitável, já nem aludo ao das civilizações, refiro-me à consequente perda de identidades levando à natural «desconfiança» entre os de ontem e os de agora. Ora, se as representações simbólicas da tristeza, do luto, da dor, da morte, são postergadas, cria-se uma animosidade muda a favorecer o corte epistémico favorecido pela dicotomia urbano/rural, idoso/jovem, mãos calejadas/mãos níveas, reserva/farândola.
O meu De Profundis principiou antes da evocação dos Finados, deixo neste artigo inquietações geradas pelas tribulações sofridas nos últimos tempos, não são desabafos, são as ditas inquietações a que procuro responder procurando consolo na leitura de meditações e aforismos de múltiplas latitudes e atitudes.
O dia está a esvaziar-se, a televisão transmite imagens de feroz violência numa rua de Coimbra, junto a uma discoteca lisboeta, o meu íntimo constitui o palco onde sou actor impotente contra as selvajarias e espectador de que gostava de tomar a seu cargo a aplicação da justiça e consolar os ofendidos. Debalde, fica a indignação a não turvar a imagem no espelho da consciência. De Profundis.

Armando Fernandes