NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Isaac Oróbio de Castro (c.1617-1687)

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Iniciamos uma série de biografias de Trasmontanos de origem hebreia que ganharam celebridade. Começamos por Baltasar Oróbio de Castro. E desde logo uma constatação, algo embaraçosa: O principal estudioso deste médico não é trasmontano, nem sequer português, mas um estrangeiro que sobre ele fez a sua tese de doutoramento: Yosef Kaplan. 
Desde o início que a força da inquisição se abateu sobre a cidade de Bragança e, à entrada da última década do século de 500, isso ficou patente na condenação à morte de 17 brigantinos pelo tribunal de Coimbra. Entrou-se então num processo de denúncias em série e o tribunal ficou “entupido” com tantos processos e tantos prisioneiros, operação que foi brilhantemente tratada por Elvira Mea como o “caso dos falsários de Bragança”.
Neste movimento de prisões foram apanhados os avós e bisavós de Baltasar e foi em meio dessa tragédia que seus pais nasceram: Manuel Álvares Oróbio em 1590 e Mência Fernandes Nunes, em 1596. Em 1617 nasceu Baltasar Álvares e tinha uns 5 anos quando os seus pais abandonaram a cidade e se meteram por Castela adentro, certamente receosos de nova investida da inquisição.
A família fixou residência em Málaga, onde nasceram outros filhos: Ana (c.1624), Leonor (c.1626), Melchior (c.1627), Violante (c.1628) e Clara (c.1632). Chegaram pobres, mas tinham a proteção de Mateus Rodrigues Nunes, tio materno de Baltasar, que era ali administrador dos “millones” (imposto lançado sobre os bens de consumo: carne, vinho, azeite…).
Seria o mesmo tio a pagar os estudos de Baltasar quando este se matriculou no curso de medicina em 1633, na “medíocre” universidade de Osuna, passando em 1635 para a prestigiada universidade de Alcala de Henares. Certamente que o tio também abriu os cordões à bolsa para “comprar” a indispensável prova de limpeza de sangue. Nesta universidade tirou o bacharelato em Artes, mas não consta que tenha feito o exame final para ser diplomado em medicina. Na primavera de 1640 desapareceu, pura e simplesmente. É que, entretanto, os seus pais e uma dezena de outros membros da família foram denunciados à inquisição de Espanha.
O processo dos pais não impediu o Dr. Baltasar Oróbio de entrar na universidade de Sevilha como professor de medicina, em finais de 1642. Terá falsificado o diploma, como escreve o investigador francês Jacques Blamont? 
Dois anos mais tarde pediu a demissão para entrar ao serviço do duque de Medinaceli e, em 1651 casou com Isabel de Pena, filha de um rico comerciante, levando um dote de 6000 sólidos. O “grande doutor” vivia então numa luxuosa casa, servido por 3 escravos e muitos criados. Com ele ou ao lado, viviam os pais e os irmãos, que entretanto casaram e estabeleceram redes de negócio, nomeadamente na área de importação e comércio de chocolate. O tio Mateus é que não estava. Depois de uma curta passagem pela inquisição, fugiu para a Itália, em 1648 e ali aderiu ao judaísmo. Terá sido ele que enviou a Baltasar um livro de orações judaicas, “encadernado em badana negra, com umas raias douradas e com umas cintas para assinalar, do tamanho de umas Horas de Nossa Senhora, de 3 dedos de alto, impresso em língua castelhana”, como testemunhou na inquisição de Valladolid um tal Duarte Rodrigues?
Adivinhando tempestade, o pai, o irmão Mechior e o cunhado Pascoal deixaram Espanha e fugiram para Bayonne, enquanto Baltasar, a mãe, o cunhado Simão e as irmãs Leonor, Violante e Clara eram presas pela inquisição de Sevilha. Saíram reconciliados com sequestro de bens, cárcere e hábito perpétuo no auto de fé de 11 de Junho de 1656. Da pena constava ainda a proibição de se aproximarem de qualquer porto e das cidades de Madrid, Sevilha e Cádis. Incrível: em fevereiro seguinte o nosso médico foi encontrado a passear pelas ruas de Sevilha sem o sambenito!
Sigamos para Bayonne, em França, onde toda a família se encontrava já reunida em 24 de junho de 1660. Em setembro desse mesmo ano entrou o Dr. Baltasar Oróbio de Castro como professor na “medíocre faculdade” de medicina de Toulouse, ganhando “o miserável salário de 290 L”, no dizer de Blamont, que atesta também a falsidade do diploma apresentado. Foi ali professor por 2 anos e ao final de 1662 toda a família se encontrava já em Amesterdão, fazendo-se circuncidar, tomando nomes judaicos e abraçando abertamente o judaísmo. Na Jerusalém do Norte viverá Isaac Oróbio de Castro (nome que ali tomou – “4ª metamorfose”) os seus dias de glória, respeitado e admirado como “um dos mais fecundos apologistas do judaísmo ortodoxo” contra as ideias deístas panteístas e ateístas que ganhavam terreno entre os pensadores judeus, muito em especial os de origem sefardita, com destaque para Baruch Espinosa, João do Prado e Uriel da Costa. Desse combate pela ortodoxia ficaram as seguintes obras de Oróbio de Castro:
. Certamen Philosophicum Propugnatæ Veritatis Divinæ ac Naturalis Adversus J. Bredenburgi Principia was published at Amsterdam, 1684.
. Prevenciones Divinas Contra la Vana Ydolatria de las Gentes (Libro ii, Contra los Falsos Misterios de las Gentes Advertidas a Ysrael en los Escritos Propheticos).
. Explicação Paraphrastica sobre o Capitulo 53 do Propheta Isahias. Feito por hum Curiozo da Nação Hebrea em Amsterdam, em o mez de Tisry anno 5433.
. Tratado em que se Explica la Prophesia de las 70 Semanas de Daniel. Em Amsterdam à 6 Febrero anno 1675.
Se o perfil mental de Oróbio foi moldado na base do terror da inquisição, e as metamorfoses do nome testemunham a sua evolução intelectual, os seus livros são a expressão articulada da comunidade judaica ortodoxa contra o perigo ideológico de pensadores livres. Faleceu em 7 de novembro de 1687 (01 Lislev 5448) e foi enterrado no Beth Haim Cemetery ouder Kerk aan de Amstel, Amsterdam.

Notas e Bibliografia:
1 –  KAPLAN, Yosef, Isaac Orobio de Castro and his Circle, Hebrew University of Jerusalem, 1978.
Yosef Kaplan – From Christianity to Judaism: Isaac Orobio de Castro, translated from Hebrew by Raphael Loewe, Oxford University Press, 1989; Do Cristianismo ao Judaísmo: A História de Isaac Oróbio de Castro, trad. De Henrique Araújo Mesquita, Imago, Rio de Janeiro, 2000.
2 – MEA, Elvira Cunha de Azevedo, A Inquisição de Coimbra no Século XVI. A Instituição, os Homens e a Sociedade, pp. 474-480, Porto, 1977.
3 – BLAMONT, Jacques, Le Lion et le Moucheron: histoire des marranes de Toulouse, editions Odile Jacob, Paris, 2000.
4 – CALDAS, Victoria Gonzáles de, Judíos o Cristianos? El Processo de Fe Sancta Inquisitio, Universidad de Sevilla, Secretariado de Publicaciones, Sevilla, 2004
ANDRADE e GUIMARÃES, Isaac Oróbio  de Castro: o rigor da Lei, in: jornal Terra Quente, de 1.6.2001; IDEM, Isaac Oróbio de Castro e a Academia dos Floridos, in: T.Q. de 15.6.2001.

Por António J. Andrade / Maria F. Guimarães