Ernesto Rodrigues

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António Jorge Nunes, A Ferrovia em Trás-os-Montes

Após várias apresentações públicas de A Ferrovia em Trás-os-Montes (Lema d’Origem, 2023), quis António Jorge Nunes fazê-lo também na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Lisboa, reconhecendo quanto ela significa desde 1905 e que importância teve em momentos-chave da vida regional, além de ter inspirado casas gémeas dentro e fora do país. Pioneira ou com menor intervenção, destacaria a presença da Casa nos congressos transmontanos de 1920, 1941, 2002, já organizando o de 2018. Ora, não só o de 2002 teve como primeiro oficiante Jorge Nunes, presidente da Câmara Municipal de Bragança, como ele é autor de Congressos Transmontanos (Lema d’Origem, 2021), que sintetiza esses quatro encontros que nos pensaram. Aproveito já a sua intervenção de 2018, intitulada “Interior Norte – reconquistar o poder da palavra». O diagnóstico não mente: «O abalo demográfico que atinge o Interior Norte obriga- -nos a maior firmeza para romper com as políticas do centralismo que têm conduzido o interior para uma catástrofe demográfica – o despovoamento, o abandono do território e tendencialmente o empobrecimento. A soberania territorial exige solidariedade em ambos os sentidos, do centro para a periferia e vice-versa. O esquecimento do Interior é uma total injustiça, […]. O argumento que o alimenta é o de que não se justifica investir porque há cada vez menos população, a consequência é a população continuar a abandonar a região, […]. Por outro lado, nas últimas décadas, o governo central tem vindo a eliminar serviços públicos na região com esse mesmo argumento. A fúria centralizadora até as ligações ferroviárias eliminou.» De facto, comparando 1960 e 2021, os 34 concelhos de Trás- -os-Montes e Alto Douro passaram de 692 029 habitantes para 384 410, seja, de 7, 82% para 3, 74% do todo nacional, quando representam mais de dez por cento dos municípios. Não se contabilizam entre 15 a 20 mil estudantes do ensino superior, nem todos de fora, que animam as principais cidades. Houve a emigração, claro, mas esta é uma constante desde o século XV, seja missionária, religiosa, académica, diplomática, política e, sobretudo, económica. Face a dificuldades por vezes invencíveis, preferimos – cito José Mattoso – «muitas vezes a aventura e a incerteza em terras desconhecidas do que a miséria ou a derrota» em nossa casa. Corajosos e determinados, os transmontanos «Comandaram as tropas portuguesas em Ceuta ou na Índia, sustentaram as guerras da Restauração no Brasil, peregrinaram por toda a Europa, foram missionários nos quatro cantos do mundo, desempenharam postos administrativos e militares na África portuguesa nos séculos XIX e XX. […] Jaime Cortesão notou que eram trasmontanos, na sua maioria, os colonos portugueses que povoaram a Colónia do Sacramento e durante dezenas de anos resistiram heroicamente à ocupação espanhola, antes de ela se tornar território do futuro Uruguai. Tais foram os resultados de uma secular aprendizagem da dureza numa terra que a natureza não dotou de mimos nem de facilidades.» Esta ausência da ‘pequena pátria’, agora quando dentro da pátria maior – Portugal –, tem razões eminentemente políticas, económicas, laborais e educativas, salientando-se a plêiade de ministros, jornalistas e professores, entre outros notáveis. Evito dar exemplos de ilustres migrantes e emigrantes, que não escamoteiam a sangria de milhares de anónimos durante séculos, com que melhor se explica a necessidade de um novo D. Sancho I, o qual argumentava, num quadro semelhante ao de hoje: é por haver falta de gente que temos de povoar. E custa-me a admitir que os deputados não vejam isso, pondo em risco um futuro pessoal, pois, um dia, não teremos na Assembleia mais do que um eleito… Importa, aqui, falar da velha ligação aos vizinhos fronteiriços. A designação geral ‘Trás-os-Montes’, de uso comum a partir do séc. XIII, aceitava pequenas ‘Trás-Monte’, ‘Trás-Serra”, ou unidades territoriais sob a designação de ‘tenência’ e ‘terra’, resistindo em Terra de Miranda, bem como ‘lomba’, ‘lombada’, igualmente encontráveis. O séc. XII ainda se divide por Leão, sob influência de Zamora e dos Templários, a par da influência dos cistercienses galegos sobre Pitões das Júnias, até à Vilariça, do influxo de Moreruela sobre Miranda, e, até Miranda e Vinhais, dos beneditinos de Castro de Avelãs (Bragança), em cujo mosteiro está sepultado Nuno Martins de Chacim (finais do séc. XIV), o último braganção, avô materno de Inês de Castro. O arcebispado de Braga influía até Barroso, vales do Tâmega e Corgo. Os Bragançãos (ou Braganções) inclinam-se para D. Afonso Henriques e tornam-se decisivos até D. Dinis. A política de forais, póvoas e ‘vilas novas’ organiza e sedentariza populações; em tempo de D. Manuel, Trás-os-Montes é uma das seis comarcas do reino. Mas os castelos vão passando de mãos numa fronteira fluida. Alheios à guerra, galegos e portugueses misturam-se em Ruivães, Vilar de Perdizes, Rio de Onor, etc., conforme os numeramentos de 1530 e o tombo da demarcação fronteiriça de 1538. Propõe- -se a divisão do couto misto da raia de Montalegre somente em 1859. Esta relação ilumina, para que se não julgue estranha, o projecto ferroviário agora defendido. Naquela comunicação de 2018, entre outras propostas, Jorge Nunes defendia que o Interior Norte devia «poder gerir um envelope financeiro próprio, negociado na fase de programação do Portugal 2030». Pelos vistos, as estruturas a Norte, sem força política bastante, nada conseguem. A falhada regionalização é uma saudade, quando se não cumpre a Constituição. Entre tergiversações, o Partido Socialista (PS) quis-se um novo D. Sancho I com Mário Soares, na Presidência Aberta de 1987, em Bragança, e de prosa redonda na actualidade. Tudo inconsequente. Veja-se o programa eleitoral do PS para 2022-2026. Na 3.ª parte, “Desafio estratégico: desigualdades”, o capítulo V, “Coesão territorial”, promete: «Tornar o território mais coeso, mais inclusivo e mais competitivo; Corrigir as assimetrias territoriais; Atrair investimento para o interior; Diversificar e qualificar o tecido produtivo; […]; Promover a fixação de pessoas nos territórios do interior; Afirmar os territórios fronteiriços; Assegurar serviços de proximidade.» reconhecido um «estatuto especial», garante «infraestruturas rodoviárias de proximidade, nomeadamente no âmbito do PRR», e promove «a mobilidade transfronteiriça» com «serviços de transporte a pedido», sem jamais falar de comboio. Não se vê como coadunar isto com a seguinte entrada: «Implementar com Espanha a Estratégia Comum de Desenvolvimento Transfronteiriço, no âmbito do próximo Quadro Financeiro Plurianual, reposicionando o interior de Portugal como espaço de uma nova centralidade ibérica.» No que ficamos? Ficamos na resposta do secretário de Estado das Infraestruturas, cujo nome não deve manchar esta página, ao declarar, em 27 de Fevereiro de 2023, em Bragança, que ninguém se iludisse, pois o comboio não iria regressar cedo, ou amanhã: importante era o eixo Braga-Faro e «a geografia é o que é». Eis duas tiradas infelizes, além de indignas de um governante. A locomotiva a vapor do engenheiro de minas inglês Richard Trevithik rebocava, em 1804, dez toneladas de ferro à velocidade de oito quilómetros. A locomotiva moderna, porém, nasce com os também engenheiros ingleses George e Robert Stephenson, em 1829, há quase 200 anos. Desde 1856 em Portugal, chega a Bragança em 1906, a Chaves em 1922 e a Duas Igrejas em 1938. Mas já no II Congresso Transmontano de 1941 se alertara para o declínio da exploração, sem investimento, nem «modernização da infraestrutura e do material circulante», lembra Jorge Nunes. A via estreita encolheu com a insegurança, «carruagens velhas, horários irregulares». A linha do Sabor deixou de carrear passageiros em 1979. A geral desactivação começa em 1984 e desemboca na noite de 13 para 14 de Outubro de 1992, «com a retirada das locomotivas e carruagens das estações de Bragança e de Macedo de Cavaleiros». GNR e PSP protegeram o assalto, no prévio conhecimento das autoridades civis e concelhias políticas. Em breve, começavam outros assaltos, da remoção das linhas a negócios escuros, que, logo em Janeiro de 1998, o novo presidente do município de Bragança, António Jorge Nunes, procurou atalhar. Décadas depois, que argumentos brandir? As alterações climáticas preferem o comboio; argumento forte «é de natureza regional, ligado às questões da coesão e da competitividade na Região Norte, a principal região exportadora do país e a menos desenvolvida»; enfim, «seria impensável que Bragança e Vila Real ficassem fora do Plano Ferroviário Nacional». No meu prefácio, de que só cito aqui as atoardas daquele secretário de Estado, curo da imagem histórico-cultural de um meio de transporte decisivo em países inteligentes – e a Espanha é um exemplo excelente. Esqueci a sua importância na simbólica dos sonhos, significando evolução. Meio de transporte e – melhor do que o automóvel, autocarro ou avião – meio de comunicação entre indivíduos e povos, fautor de maior sociabilidade, ele significa disciplina (também para o corpo), pontualidade, interesse geral e não particular. A dependência energética, que hoje nos atormenta, torna- -se mais sustentável, e melhora, com a ferrovia. A poluição mata, e cada vez mais, se não se optar pelo comboio. Defende-se, pois, uma «linha ferroviária mista de Alta Velocidade, ligando directamente a Região Norte à RTE-T – Rede Transeuropeia de Transportes», pensada para a neutralidade carbónica, logo, contra um comércio externo em 80 por cento circulando por rodovia. A bitola europeia na linha Porto-Vila Real-Bragança ligaria à alta velocidade espanhola, fazendo do Nordeste uma nova centralidade, como sugeria a prosa do PS. Lucraria a economia local; revertia-se o abandono e, quiçá, o envelhecimento. Caso contrário, acentua-se o desequilíbrio regional, na relação litoral-interior. Outras linhas no interior da região beneficiariam o turismo. Urge, enfim, reconquistar o poder da palavra e dirigir os nossos destinos.

TRADUZIR O HOLOCAUSTO

Logo após a atribui- ção do Prémio No- bel, em 2002, tra- duzi cinco livros de Imre Kertész (1929-2016), saindo três ainda em 2003. Foi uma imersão total, que nos aproxima de vivências – facilitando referências, regresso de personagens… –, em que a limpeza do dizer mais cruamente denuncia uma forma de totalitarismo, até ao espanto, no final de Sorstalanság (1975; Sem Destino, 2003): «Aí, entre as chaminés, nas pausas do sofrimento, havia qual- quer coisa que se parecia à felicidade.» «Sim, é disso, da felicidade dos campos de concentração, que eu devia falar da próxima vez, quando me fizerem perguntas. Se fizerem. E se eu próprio não esqueci.» Não esqueceu; será uma obsessão, que nos suspende o teclado. Esse voto de escrita seca, sobressaltada pelo polilin- guismo (falas em alemão, ídiche, polaco, francês), busca-se impessoal, logo universal, mal disfarçan- do autobiografia em quem procura ‘fidelidade’. É diferente A Recusa (2003), massa compacta irónica contra um diferen- te totalitarismo (desejo- so, por exemplo, de esca- motear o anti-semitismo), no gozo de até 32 frases entre parêntesis que se sucedem, qual clausura de sujeito vagueando em casa e pelos corredores da burocracia: propõe a edição do primeiro livro, até ao fiasco (outro título possível). Convém simplificar as longas divagações frásicas, barroquizantes. Diferente, ainda, encer- rando trilogia, Kaddish para Uma Criança Que não Vai Nascer (2004), quase poema em prosa, em to- nalidade elegíaca. Vale a pena ter filhos, ser humanidade, após Auschwitz? Não. E como se resolve a relação com o pai-Deus em quem, em toda a obra, não cessa de reflectir sobre a judeidade? «Auschwitz, digo à minha mulher, apareceu-me depois como uma exacerbação das virtudes que me inculcavam desde a mais tenra infância. Sim, foi então, na infância, ao longo da minha educação, que começou o meu imperdoável aniquilamento, a minha sobrevivência jamais sobrevivida, digo à minha mulher. Participei de forma modesta e nem sempre muito eficaz na trama silenciosa urdida contra a minha vida, digo à minha mulher. Auschwitz, digo à minha mulher, representa para mim a imagem do pai, sim, o pai e Auschwitz despertam em mim os mesmos ecos, digo à minha mulher. E se é verdade que Deus é um pai sublimado, então, Deus revelou-se-me sob a forma de Auschwitz, digo à minha mulher.» Este final é terrível, ao sobrepor o terreno malé- fico e um transcendente desejado salvífico; mas, lembrados do final de Sem Destino, talvez pos- samos dizer que, para Kertész, judeu sem igreja, Deus é uma aparência de felicidade… Na imodéstia em nós ca- lada, é bom ouvir de um professor universitário húngaro que Kertész se lê melhor em português do que nessa difícil língua aglutinante. E rever os nossos diálogos no filme tirado de Sem Destino sabe bem. A memória do Holocausto, variamente lido, ajuda; viver na Budapeste dos anos 80, já entreabrindo ao Ocidente, também. Köves, o alter-ego reiterado, tira o nome de ‘pedra’, e há uma mineralização da linguagem que damos sem patético, mas sem esconder quadros dramáticos, afinal possíveis. O literal é a sua maior força. No mais, verter um autor secundarizado na sua pátria, que o Nobel universaliza, é emparceirá-lo com Jean Améry, Tadeusz Borowski, Paul Celan, Levi, o compatriota Radnóti Miklós, e tantos que o leitor pode acrescentar no item “O Holocausto como cultura”, título de conferência de Kertész (1989). O mal e o fundo dos homens vêem- -se melhor na limpidez do texto, como em água transparente. Associar o nosso nome aos milhares de leitores que descobrem um autor é beneficiar este e aqueles.

Um filho, uma árvore

Eu sei, falta o livro – mas livros nascem todos os dias. Árvores, com que se respira melhor, são queimadas; os filhos, adiados. Se a Índia já iguala a China em população, e vai ultrapassá-la, a Europa perde crianças. Com fraca demografia, virão tragédias, até ao dia em que ninguém receberá uma pensão de velhice. Quanto aos incêndios – já não sintoma, mas provas dos maus tratos climáticos –, urgia uma Semana da Árvore, em que cada um de nós lançasse raízes para a eternidade. De outro modo, é a nossa vida que definha. Estão à espera, imagino, de Eça de Queirós, que, no capítulo IX de A Cidade e as Serras (1901), encena um diálogo entre Jacinto e José Fernandes. Diz aquele: «– É curioso… Nunca plantei uma árvore!» Este: «– Pois é um dos três grandes actos, sem os quais, segundo diz não sei que Filósofo, nunca se foi um verdadeiro homem… Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem.» Para ser um homem exige-se bem mais. Mas enfim… Julgam alguns que é uma fórmula popular, incrustada nos séculos, como se ao povo interessasse a entidade ‘livro’. Não: popularizou- -se. O livro importa muito ao século XIX, com a explosão da bibliofilia e da Imprensa periódica, quando jornais, revistas, almanaques, etc., começam também a seduzir, a democratizar-se, a entrar em casas mesmo de analfabetos. O acrescento de ‘livro’, quase sempre em terceiro lugar, é, pois, uma construção intelectual, até diletante, como diletantes são as personagens queirosianas: convocam, a torto e a direito, nomes ilustres de várias latitudes, sem os aprofundar, ou ficam-se no vago de um ‘filósofo’… Acontece que Eça se estreou como cônsul em Havana, entre Dezembro de 1872 e Março de 1874, aí onde deve ter lido o multifacetado cubano José Martí (1853-1895), para quem, na vida de cada um, há três coisas a fazer: «tener un hijo, plantar un árbol y escribir un libro», ou «plantar un árbol, tener un hijo y escribir un libro”. Segundo os transcritores, filho, árvore e livro permutam na frase, mas qual a fonte, para entendermos a sintaxe originária? E porque não um precedente em Maomé ou no Talmud? Busquei crónicas e ficções de Eça, sem lobrigar o nome de Martí, nem sequer na correspondência, com bons índices onomásticos. Nem colabora Mário Duarte, no seu Eça de Queiroz, Cônsul ao Serviço da Pátria e da Humanidade (1973), depois de lá ter sido cônsul, na década de 40. Isso não impede algum estudo com os dois nomes no título, qual a dissertação de Miguel Montes de Oca na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Univ. Nova de Lisboa: Eça de Queiroz y José Martí: lo que cuentan las cartas (2013). Trouxe Eça de Havana aquela trilogia para o seu diálogo? Este caso assemelha-se à declaração atribuída a Flaubert, que ninguém encontra nas suas obras: «Madame Bovary, c’est moi.» Outros, entretanto, defendem não três, mas quatro coisas a fazer obrigatoriamente na vida. Hemingway acrescentou «fight a bull» – mas também não se diz onde. Lição: um filho, se possível; árvores, forçosamente; livros, se necessário. O touro invista para lá.

Por um diálogo inter-religioso, segundo A Formosa Pelicana

Torre de Moncorvo tem a Casa de Violante Gomes, a Pelicana, e a Rua Prior do Crato. Agora, tem também uma ficção que honra a Praça, a Feira Franca filmicamente documentada, a mais imponente igreja da região e quantos, seguindo o diálogo a espaços socrático de dois amigos nos nossos dias, Jorge Vilela e António Rebocho, encadeiam a história do judaísmo na região, prolongam dúvidas sobre a historiografia à volta de D. António, Prior do Crato, e se demoram nos pequenos luxos da memória, seja uma alheira, seja um copo de vinho fino. Se ainda não tem, a vila deveria ter uma rua D. Luís de Portugal. O argumento é simples. Acompanhado pelo fiel escudeiro David, cujo nome diz muito, também com família no seio da vasta comunidade judaica de Moncorvo, o infante D. Luís sobe o país ao serviço do irmão D. João III, quando, subitamente, uma jovem amazona vinda do Rio Sabor lhe sobressalta o coração. Tirando informações, confirma-se, num segundo momento, vencido pela fermosa pandeireta, em baile que deixa a cabeça à roda ao 5.º duque de Beja. Travam-se de razões, deita ele às malvas um compromisso com menina inglesa, e, em Março de 1531, nasce D. António, último e desafortunado ramo de Avis, que, em 1580, ainda cunha moeda como Antonivs I (no anverso, a inscrição de Constantino e D. Afonso Henriques em Ourique: In hoc signo vinces), rei de Portugal assim reconhecido, no exílio, junto das potências inimigas de Espanha. O autor parte de uma demora na FNAC em que, por acaso, lhe cai nas mãos Manuel Alegre, Auto de António. Até à bibliografia registada no final vai um longo caminho, entre História pátria e contributo judaico: neste segundo domínio, acompanha estudiosos que justificam um interesse crescente plasmado no Centro de Interpretação da Cultura Sefardita, em Bragança. Francisco Manuel Alves, Abade de Baçal, dedicara a essa presença o quinto volume dos onze das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança; o nosso comum amigo Amadeu Ferreira trouxera a Inquisição para terras de Mirando Douro em Tempo de Fogo; eu mesmo, em O Romance do Gramático, acompanhara as vicissitudes do nosso primeiro gramático, Fernão de Oliveira, cujo processo inquisitorial editarei nas Obras Completas de Fernando Oliveira, em curso na Fundação Calouste Gulbenkian. Salvo o que, ficava campo aberto para o berço moncorvense dos Borges e Azevedos, apelidos assumidos pelo bisneto Jorge Luís Borges, que dirá Azevedo nome ‘judeu-português’. Eis a atmosfera em que, por acaso, e, logo, em honesto estudo, entra o nosso autor para se abalançar às 500 páginas de A Formosa Pelicana (Lisboa, Âncora Editora, 2021).

D. Luís de Portugal

Na Vida do Infante D. Luís (1735), D. José Miguel João de Portugal, 9.º conde de Vimioso – e já o 3.º conde, D. Francisco de Portugal, fora o principal aclamador de D. António em Santarém –, é-nos dito que este infante «Nunca mudou de estado, naõ chegando à conclusaõ pratica de quatro casamentos, […]. Incitado do verdor dos annos, e enganado das attraçoens da fermosura de Violante Gomes (chamada a Pelicana pello excesso da sua belleza), teve um filho q͂ se chamou D. Antonio.» (p. 151) D. Luís estava com 24 anos; ela, com cerca de 20. O ledo engano do cronista transforma-se, aqui, em atracção mútua, renúncia do infante à corte inglesa e casamento secreto na ermida da Senhora do Castelo, na Adeganha, segundo documento em posse de uma das raras testemunhas nupciais, o marrano Joaquim, certidão que Filipe II gostaria de recuperar, entretanto entregue ao foragido D. António. Algumas fontes corroboram esse enlace. Pouco seria este enredo, se a ossatura do romance não vivesse de um olhar sobre o século XVI, entre perseguição ao judaísmo e fácil cedência a Espanha de uma nobreza e alto clero (personalizados no Cardeal D. Henrique), aquela debilitadíssima após Alcácer Quibir, devendo inclusive resgastes a Filipe II. Essa perseguição, entretanto (com recuos a D. João II e à chacina do Rossio em 1506, ano em que nasce D. Luís, no baptismo apadrinhado pelo duque de Bragança D. Jaime), remete para um fundamental terceiro ponto: os sefarditas no Nordeste e a demanda de uma Terra Prometida, o que, homologando os hebreus no Egipto, agora expulsos de Espanha, servirá para um balanço de lugares de passagem e sinais messiânicos (leite, mel, arca, arco-íris). Entreluz um hino à geografia transmontana, em sobrevoos descritivos, e, antes de se chegar a Camões, conjugar-se-á um dos principais acenos literários no moncorvense Abílio Campos Monteiro, ao naufragarmos numa impressiva rebofa, essa tromba de água causada pelo Rio Douro irritado, qual novo Dilúvio mimado do Velho Testamento. O sangue é uma questão política. Quem se opõe a D. António diz a Pelicana impura, o que não preocupa D. Luís, bem acolhido na comunidade judaica local. É um favor que a ficção faz ao futuro padrinho de baptismo de D. Sebastião. Uma Violante convertida também convém à ficção, ainda que, dirão alguns, dificilmente esse sangue contaminado findaria os dias no convento de Almoster. É ignorar que o médico Luís Brás de Abreu, que passou a meninice em Vila Flor, com fuga dos pais à Inquisição, deu sete filhos à mulher, afinal, irmã, a qual, descobrindo-se incestuosa, entrou com cinco filhas num convento. A tragédia inspirou O Olho de Vidro (1866), de Camilo Castelo Branco. Corolário da primeira parte, defende-se um natural convívio inter-religioso, que o fanatismo tresvaria, com implicações na política ibérica. Não se perdoa aos matadores de Cristo. Afirma-se, mesmo, que seria preferível um filho de negra ou escrava. Assim, este romance-ensaio é, enquanto ensaio em dias de intolerância, actualíssimo; enquanto romance, aceita inventivas de matriz histórica. A bibliografia final defende quem, logo à partida, não se assume historiador.

Do romance histórico

No romance histórico, o evento ilumina acontecimentos e quadros mais vastos. Evento é uma paixão que gera descendência. Tem um valor de exemplaridade, como obedecer ao coração e não a razões de Estado, e, daí, a firmeza do protagonista, morto demasiado cedo, em 1555, que justifica a designação técnica de ‘herói’. Mas diremos D. Luís único herói? Não me parece que seja a heroína venha do título, como, ao dizermos O Primo Basílio, não é este o herói queirosiano. Figura decisiva, até porque envolve, ou representa, a comunidade judaica, Violante não é figura central: aliás, só aparece na página 128. Ou será o filho, que, patriota, luta pela independência nacional, e perde na sucessão, não pela sua origem controversa, embora isso diga o Cardeal (se assim fosse, o primeiro de Avis, D. João, bastardo e filho de judia, não seria rei de Portugal), mas porque, tendo-lhe aquele dado mestres como D. Jerónimo Osório e frei Bartolomeu dos Mártires, e sido testamenteiro do irmão D. Luís, ele, António, não quis entrar em religião? Centrado numa figura heróica (à escolha do leitor), e num propósito que só é nacional enquanto correctivo da actualidade – que me parece de diálogo inter- -religioso na Europa de hoje, extensivo ao Islamismo, que D. António combateu –, o romance histórico procura espaços representativos no imaginário e momentos-chave da (re)constituição de uma pátria, de um reinado, de um comportamento nobilitante, de um tempo, espírito ou atmosfera, como variamente acontece aqui. O Indesejado D. António na peça de Jorge de Sena visava o Estado Novo e o caso biográfico do autor. Em Manuel Alegre, é o reconhecimento da necessária luta individual, de uma conduta que signifique pátria e esperança, independentemente de reino ou coroa. O rigor literário não tem de coincidir com o rigor histórico, também precário e em formação. Informações há, todavia, que não podem falhar. Estes passos da leitura conheço-os bem, e, por isso, leio sem sobressalto. Quem não os dominar (no meu caso, aspectos da construção da igreja de Moncorvo), dirá, com razão, estar perante um ensaio sob forma de lição amena. Ganhamos com esta função pedagógica. Noutro âmbito, pactuamos com ingredientes de verosimilhança, como o meio-tostão de prata, paga bastante (e recordatório final), além de significar uma latente independência nacional. Mais: liga-nos ao presente da narrativa, após descoberta no perímetro do castelo pelo pedinte Camolas, em diálogo que resulta excelentemente – e o diálogo é uma das virtudes desta obra. Outra virtude está na descrição, que assenta no olhar, e, além de alguns tipos, geografia e instantes, importa o retrato de Violante, no seu colo, já não direi de garça, mas de pelicano, vindo da página 137 para a capa sobre pintura de Maria de Lurdes Baptista, que tão bem resultou. Note-se, por outro lado, um singular processo de encadeamento discursivo: o final de cada capítulo é retomado na abertura do capítulo seguinte, como recuperando a familiaridade do dito e do momento. Outros momentos, no interior da prosa, ficam em suspenso, com aviso de resolução futura. Processo fundamental, em espelho, está nas remissivas histórico-literárias. A sorte da mãe de Violante e seus amores com D. Diogo repete-se na sorte da filha. Sugeri que a fuga para a Terra Prometida tanto lembra a penitência das tribos no Egipto como as expulsões de Espanha, seguidas de conversão forçada e fogo. Expulsão, conversão forçada, criminosos autos-de-fé é uma trindade infelizmente humana, que sofrem esses errantes, quando não fogem. Graças à ficção, o alardo feliz dessa comunidade tanto evoca o alardo da Vilariça com Nuno Álvares Pereira e D. João I, em 1386, como um pequeno grupo de soldados de D. António, em 1580. Também a construção da igreja matriz desde 1544 mostra como conseguem espelhar-se cristãos e judeus, numa lição de tolerância que o texto suscita. Como se as inquisições ali não chegassem, embora a realidade não fosse essa. Espelham-se ainda, entre exemplos que deixo – e relembro alusão ao conto “A rebofa”, de Campos Monteiro –, as Trovas de Bandarra e passos d’Os Lusíadas alusivos ao Quinto Império. Entra, aqui, como exemplo subido dessa ordem especular, a explicação do pelicano. Temos a tese ligada às peles, ao peliqueiro ou pelicano, que podem singularizar uma aldeia, como a de Carção, no concelho de Vimioso. No distrito, a Inquisição perseguia, sobretudo, homens de negócios, industriais da seda e curtidores ou surradores de peles. Vimos o cronista reconhecendo, em Violante, a tentadora e «excessiva beleza» tirada de ave elegante. Temos a dupla tese judaica e cristã, na p. 168: Esta ave «É associada, pelos hebreus, à redenção. A Tora indicaa como exemplo do imenso amor maternal, sacrificando-se pelos filhos. É vulgarmente representada pela imagem de um pássaro a dilacerar o peito e a alimentar os seus pelicaninhos com o seu próprio sangue. Os primeiros cristãos usaram o símbolo para representar Jesus Cristo Nosso Senhor por ter, efectivamente, dado a vida por todos nós, filhos de Deus.» Ora, antes de, no último parágrafo do romance, um lenço que estampava fêmea de pelicano sobrevoar giestas e aterrar numa carrasqueira, uma polémica maior, já secular, é a do pelicano no frontispício do Poema nacional. José Mário Leite segue José Hermano Saraiva no tocante às origens familiares de Camões. Proviriam de Vilar de Nantes, aldeia perto de Chaves, onde Saraiva afirma ter nascido Camões. Outro natural, Pedro Álvares de Freitas, futuro abade de Moncorvo, seria putativo apoio do Vate no imprimatur do Santo Ofício. Agradecido, Camões teria subido à vila para lhe oferecer um exemplar. Eis invenções de ficcionista, não diferentes de aceitar a lenda dos amores de Camões com D. Maria e dizer D. Manuel de Portugal financiador das viagens transatlânticas do soldado Luís Vaz (p. 430). Se não se levanta a questão, aqui, de um Camões judaizante, ela não estaria a mais. A análise passa pelos frontispícios da edição princeps e da contrafacção, com o pelicano olhando à nossa esquerda ou à direita. Usado durante 50 anos, e antes de sofrer pequenas alterações, esse frontispício estreia-se em Reegra & statutos da ordem de Santiago, sob os auspícios de D. Jorge de Lencastre, Duque de Coimbra e Mestre de Santiago. Numa interpretação em parte delirante, Fiama Hasse Pais Brandão vê no pelicano voltado à esquerda um «símbolo de Cristo, enquanto que o pelicano maçónico apresenta comummente o bico para a direita». Gomes de Brito explicou o de 1548: «Aquelle frontispicio é o do Regimento de uma Ordem militar de cavallarias, segundo o proprio arrogante aspecto o mostrava.» Particulariza, com que melhor perceberemos as diferenças futuras («despida de todo o apparato bellico»), e acrescenta: «no pelicano que corôa o frontão concentrava-se um duplo sentido. Aquella ave era a representação symbolica, como o eram os dois golphinhos e o tridente que desappareceu, dos sentimentos profundamente religiosos e christãos que deviam morar no imo peito dos agueridos spatharios, mas era tambem um cumprimento amavel ao regio pae do Mestre D. Jorge, áquelle principe que escolhera para seu brazão o mesmo pelicano que de seu sangue nutre os filhos: profundo conceito politico que define o monarcha previdente que tal pensou.» Pai de D. João de Lencastre, este monarca é D. João II, que este gerou em Ana de Mendonça. A ironia é que, no seu emblema, o pelicano está voltado para a… direita. Vejamos, pois, nesta fêmea-pelicano que ilustra a capa, olhando para a nossa esquerda, e fecha o romance, um símbolo crístico de união sem preconceito e respeito por outrem na sua diferença, para deste chão fazermos uma terra prometida.

Um espírito livre

Trunfa angolana, densa barba, verbo solto, assim nos apareceu, na Praça da Sé, Teófilo Valdemar, que entraria em breve no Mensageiro de Bragança, onde pontificava Carlos Pires, em cuja casa da Rua do Norte ele se aboletava, quando as horas se distraíam madrugada fora. Saiu Carlos Pires uns tempos, ficámos Marcolino Cepeda e eu. Com Manuel de Jesus, Teófilo assinaria coluna de reflexão crítica sobre a política nacional. Fazer jornalismo antes do 25 de Abril, numa cidade fechada, não era pequeno risco. O director do semanário, padre Manuel Sampaio, dava- -nos liberdade na escolha dos assuntos e contornava a censura prévia. Esta definia-se após o almoço, no café Chave d’Ouro, à esquerda de quem entrava, onde se cumprimentavam as autoridades civis, militares e religiosas, como rezava a sintaxe do Estado Novo. Veio a liberdade de Imprensa. Não esperávamos, por isso, a decisão episcopal de, em Outubro de 1974, ver o director afastado, caso que se tornou nacional. Os colaboradores lavraram (redigi eu) comunicado contra os que só viam vermelhos à frente, que trariam o inferno à região. Assinaram, além do escriba, Teófilo Waldemar (hesitava em V / W, antes de ser Teófilo Vaz), Marcolino Cepeda, Humberto Gil, Carlos Pires, Desidério Martins, Onofre de Castro e Manuel Domingues. A segunda experiência em democracia indecisa deu-se com o ènié – Uma Voz do Nordeste Português, cujo número zero saiu em 23 de Abril de 1975, 30 edições até 24 de Dezembro. Dirigido por Eduardo Carvalho, eram redactores Carlos Pires e Teófilo Waldemar, com a liberdade de movimentos semanalmente em perigo. Entrei na equipa mal regressado de França. E tudo se precipitou com texto meu de 26 de Novembro sobre um comício do Partido do Centro Democrático e Social resumido em vontade assim expressa por Galvão de Melo: «Temos que destruir os comunistas se não queremos ser destruídos por eles.» Havia assaltos a sedes dos partidos de Esquerda, atentados e rebentamentos quase todos os dias. Frequentar o café Ponto de Encontro era apodarem-nos de comunistas, que não éramos. A vida acalmou ao entrarmos na Faculdade de Letras de Lisboa, Teófilo e João Jacob em História, eu em Filologia Românica. Aquele, contudo, vivia em Castanheira do Ribatejo e não se interessava pela vida jornalístico-literária de Lisboa, aonde aportou, entretanto, Carlos Pires, para encarreirar na Imprensa escrita. Passara a vestir bem, inesperada gravata, constituiria família cedo. Mas a preocupação era regressar à terra, onde se sentia pássaro livre. Nas férias dos meus cinco anos de Hungria, multiplicávamos sessões nocturnas, ele bebendo a suas duas cervejas, entre informações de primeira água, Marcolino e eu mais comedidos. Recordo como, em Agosto de 1982, batemos em Conversa Acabada, a que assistíramos na Torralta, e, já na sua casa da Estacada, discutindo, equacionámos a federação, ou coisa do género, de nós, aquém-Douro, com a Galiza. O filme era sintoma de uma ruptura mental, com implicações económicas e estratégicas, no tecido da nação, que ele denunciaria até ao último suspiro. Em 1984, relancei Amigos de Bragança, ainda dirigido por Eduardo Carvalho e redactado por Teófilo, Marcolino e eu. Na fotografia que acompanha a entrevista ao presidente da Câmara José Luís Pinheiro, Teófilo já assume o rosto de hoje, embora com mais cabelo. Prosseguimos noitadas com Jacob e Jorge Morais; em Agosto de 1988, mudámos para a lareira do pré-casadoiro Marcolino, ladeado pela Mara, incansável. Nos últimos 32 anos, era em casa destes que reuníamos, sempre que eu subia a Bragança. Às vezes, passavam meses sem se verem, e menos um esquivo Jacob. A mesa, já composta, perfumava-se de conversa à solta, entre farpas e projectos, enfim louvando a renovação a que o director procedia no Jornal Nordeste desde 2015. A partir dos anos 90, contam-se outras experiências: A Voz do Nordeste, intervenção radiofónica e comentários de má-língua, Imprensa escolar, reunindo ao ensino cargos e iniciativas que muito valorizaram a Escola Secundária Emídio Garcia. Os 150 anos do ex- -Liceu (2003) significaram comunhão excelente entre gerações. Fica um percurso em defesa da terra sagrada do Nordeste. Ficam as conversas depois da meia-noite, saídos do café Flórida, quando Marcolino e eu, no luar da Praça da Sé, o animámos a filiar-se no Partido Socialista – de facto, ele desejava um Partido Soarista, tão indefectível era de Mário Soares. Não admirava menos a beleza sob forma de mulher, que resumia na sua; os filhos completavam-no. E, para estranheza minha, gostava de cozinhar. Ao dar-me boleia em noites de sinceno e geada até ao Bairro da Mãe d’Água, o banco estava sempre pejado de papéis e jornais. Esta dispersão de décadas merecia uma recolha de textos que iluminassem o historiador e político (no melhor sentido), para reflexão nossa. A tristeza é uma ponte que nos leva à margem da saudade e da admiração pelo espírito livre que foi Teófilo Vaz, querido Amigo.

Perseu

Evoquei, já, a importância de dois livros no meu despertar para a literatura: Narrativas e Lendas da Antiga Grécia (1956), de Nathaniel Hawthorne, e Coração, de Edmondo De Amicis. Recebi-os de uma prima, em 1961, tinha eu cinco anos, quando começava a ler. No limiar da tese de doutoramento, salientei Cuore, mas A Wonder Book perseguia-me. Assim, quase sessenta anos depois, pego nessa tradução (que há muito mandei encadernar, e não doei, com outros oito mil volumes), da qual sai, a abrir, “A cabeça da górgona”. Não me recordava disto, ao encadear 14 sonetos sobre Perseu, que dá título ao recente livro de poemas (Fafe: Editora Labirinto, 65 páginas). Mas é certo que, num escaninho da memória, esse herói me acompanhou durante décadas. Em ficção e estudos sobre a crónica, eu já aproveitara alguns feitos de Zeus. Terei acordado o meu herói à leitura, nos 25 anos, de André Bonnard, Les Dieux de la Grèce, tão extraordinária era a história de Perseu, com tanto de Bíblia como de Camilo Castelo Branco, e remissão para Édipo, mas sorte diferente. Retorna em 1992, pois o segundo capítulo de Mitologia Clássica. Guia Ilustrado, de A. R. Hope Moncrieff, trata de Perseu, nas cores de Ticiano e E. Burne-Jones. A Editora Labirinto dá na capa Perseu com a Cabeça da Medusa, de Antonio Canova, um neoclassicismo sereno que simplifica igual título do clássico Benvenuto Cellini, longe da imagem terrífica da górgona. A história é simples: o rei de Argos ouve de oráculo que um descendente vai assassiná-lo. Encerra a filha, guardas em volta de entrada cuja chave traz consigo. Zeus metamorfoseia-se em chuva de ouro e gera criança. Respeitoso do deus, o rei poupa filha e neto, que lança em barca frágil. Salva-os pescador, irmão de rei que, autoritário, sonha desposar aquela. Na tensão entre irmãos (já se adivinha qual ganha), e para afastar Perseu de uma decisão desfavorável, confia-lhe missão impossível: matar Medusa, cujo olhar petrifica mortais. Ajudado por Hermes e Atena, essa é só a primeira aventura, com manhas e pormenores que não descrevo. Mas a cabeça sabiamente cortada vai servir para acabar com a raça do rei mau e salvar a mãe, entretanto refugiada no templo de Atena. A segunda aventura é salvar Andrómeda de um monstro, com ela casar e subir ao céu. Acontecem outras, mas corramos ao final: durante uns jogos, falha um lançamento de disco e mata, involuntariamente, o avô, cumprindo-se oráculo. Recusa o trono de Argos, governa Tirinto (ou Tirinte) e funda Micenas. Persée é uma entrada do Dictionnaire des Symboles, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, que não acolhe muitos outros heróis, mas falha ao curar da «complexité de la relation père- -fils, fils-père, existant en tout homme». Ora, Perseu não tem problemas com Zeus pai, nem com o avô, cuja fatalidade é de outra ordem. E vencer, sobre um Pégaso alado, a Medusa – «image excessive de la culpabilité –, não significa vencer uma culpabilidade própria, mas, sim, «acquérir le pouvoir de se regarder soi-même sans défomation». Curar de «vanité» e de «ses propres monstruosités» (que não podemos extrair da vitória sobre o monstro desejoso de Andrómeda) sobre que Perseu triunfou é adulterar o mito de alguém esforçado, que nem o destino atropela (como se deu com Édipo), já recusando o fácil (Argos), já erguendo cidade do nada (Micenas). Eis a narrativa de um amadurecimento, sobre que os versos também evoluem. Outras considerações roubariam ao leitor o gozo de pequenas descobertas. Valha dizer que os sonetos deste livro (e só um texto não é soneto), conjugados com a variedade da penúltima selecção – Do Movimento Operário e Outras Viagens (2013) – completam a imagem que me faço da poesia, subida, afinal, das brumas da infância.

Um disperso de Pascoaes

No VI volume das Obras Completas de Teixeira de Pascoaes. Poesia, editadas por Jacinto do Prado Coelho (Amadora, Livraria Bertrand, s. d.), a escolha final de Dispersos assenta nos que «pareceram mais significativos da arte de Pascoaes e de algumas suas preocupações de circunstância, como as provocadas pela guerra de 1914-18» (p. 169). Ora, sobre a Primeira Guerra só vemos quatro, de 1915 e 1916; porque não representar o ano de 1917, quando a nossa presença é diariamente noticiada, por causa de, ou interpostos, vultos da escrita, combatendo no centro da Europa? Um desses nomes fora celebrado por Pascoaes no “Inquérito literário” de Boavida Portugal (1912), de cuja reprodução em livro cito: «Nem quero mesmo referir-me aos dois maiores poetas europeus – Guerra Junqueiro e Gomes Leal. // Basta-me falar de António Correia de Oliveira, Jaime Cortesão, Afonso Lopes Vieira, Mário Beirão, Augusto Casimiro, Afonso Duarte, e, depois destes, dos novíssimos poetas, Carlos de Oliveira, Augusto Santa Rita, Afonso Mota Guedes. Eis uma vasta seara espiritual dadivosa e prometedora dos mais belos frutos. Estes poetas criaram em Portugal uma poesia profundamente portuguesa e original. Eles bebem a sua inspiração no mais intimo veio religioso da alma lusitana, criadora da Saudade, a Virgem do Desejo e da Lembrança, nascida do casamento do Paganismo com o Cristianismo.» (1915: 30-31) Descobre o leitor quem, assinalado como poeta, é, em tempo de guerra, dedicatário de um inédito de Pascoaes, que devera ter entrado nos Dispersos? Em 25 de Abril de 1917, o ‘diário republicano da noite’ A Capital dava, a meio da primeira página, “Canção heroica”, que, a não entrar além, pudera comparecer em reedição de Terra Prometida, onde constam as mais variadas canções: Canção crepuscular, Canção triste, Canção da minha sombra, etc., num total de 16 canções. “Canção heroica” é dedicada «(A Augusto Casimiro – Ao Poeta e ao Soldado)», um tenente das relações, também, do militar Raul Brandão, citado em O Pão não Cai do Céu, de Miguéis, e nome a redescobrir. Transcrevo oitava e décima dentro de quadra-refrão: «Já por milagre de Deus, /Aurea canção repentina / A negra noite ilumina / E os negros céus! // E o vulto da nossa imagem / Das penumbras da paisagem / Ergue-se, emfim, com firmeza / Revivendo, / Avultando em alegria, / Sendo elle, combatendo / Contra o medo, a cobardia, / A vil tristeza! // Eil-o a santa Heroicidade! / Esta divina vontade, / Suprema força de ser! / Este desejo infinito / De em bronze eterno e granito, / Além da morte, viver! / Esta offerta sublimada / Da nossa vida exaltada / A outra vida mais perfeita: / A Patria eleita!... // Já por milagre de Deus, / Aurea canção repentina / A negra noite ilumina / E os negros céus!»

Memória do Rogério

Era um velho repórter, quando a reportagem impressa reunia em si todos os condimentos do jornalismo. Especializara-se na vida interna do Partido Comunista. Encontrava-me com ele e Afonso Praça, que há muito nos sorriu pela última vez.

Já sem Redacção, continuava imerso nesse mundo, porque o bicho do papel nunca deixa de roer. E acrescentava um livro, recente, ou não.

Compassava a voz, e o cigarro, e o copo. Estes levavam-no, a pouco e pouco, invadindo a madrugada ruidosa de Torre de Moncorvo. Antes, amesava na Taberna do Carró.

Às terças, se na Amadora, tertuliava com amigos. Não esteve no dia 8, internado desde o fim-de-semana. Faleceu nessa tarde.

Depois que se reformara, quanto nos custava arrancar-lhe uma decisão!... Amadeu Ferreira, outro desaparecido, só não desesperava porque isso não quadrava com o seu feitio: sorríamos das demoras de quem se fizera responsável por colecção de poesia, à qual voltava como Pedro Castelhano (homenagem ao berço, Peredo dos Castelhanos, 1948), quase feliz por ter encontrado em alfarrabista exemplares do seu primeiro crime lírico, que oferecia aos próximos. Fizemo-lo presidente do Conselho Fiscal da Academia de Letras de Trás-os-Montes, mais como pretexto de irmos molhar o verbo no Solar Bragançano, onde, em 2010, me apresentou Leonel Brito. Por falar neste: veja-se o texto de Gente do Norte ou A História de Vila Rica (1977), e como é lido por quem assinou tantos documentários e biografias, ou deixou guiões por filmar.

Ao organizar a parte portuguesa de A Terra de Duas Línguas. Antologia de Autores Transmontanos (2011), seleccionei dele três poemas: “Quando o Natal chegar…” (e, agora, esse Natal perdeu-se), um doloroso “Stabat Mater…” e extensa “Carta à neta”, onde se autobiografa: «Como te hei-de dizer que fiquei sempre / à porta do infinito com a chave errada? / Se um dia te disserem que passei na vida / como ausência, acredita.»

Era a sensação que nos dava, e macerava os amigos, quando havia tempo para encontrar a chave certa. Com um pequeno esforço, e o treino da profissão, essa voz grave não nos teria abandonado sem outros frutos, ao seu alcance.

Tiremos das cinzas a palavra memória, Rogério Rodrigues.

Biblioteca Alberto Fernandes

A comunidade torguiana de Bragança lembrou, no passado dia 15, o antigo docente Alberto Fernandes, atribuindo o seu nome à Biblioteca do Agrupamento de Escolas Miguel Torga. Convidado para a cerimónia, no quadro da semana cultural, e precedendo evocações da mulher e filhas do homenageado, lembrei momentos da nossa vivência desde 1971 e fiz sentir a necessidade de publicitar o poeta estreado em 1981 e grande contista inédito.

Alberto José Sousa Fernandes era um aristocrata do espírito. Sem jamais renegar a origem de classe, cuja mundividência trazida de Benlhevai (Vila Flor) animará a sua ficção, era de espírito agudo, algo tímido, concentrado, num tom de voz que evitava exaltações, desse realismo medido que desembocou no estoicismo da sua fase terminal. Consciente da distância entre o viável e o impossível, preferia afastar-se ou recuar («Não vale a pena»), quando, por vezes, as soluções intermédias são o único sucedâneo à ansiada perfeição.

Presença discreta, mas cúmplice, na Bragança culturalmente efervescente de inícios de 70, em cujo Liceu Nacional fez grandes amizades, teve a fase de esquerda radical na Faculdade de Direito de Lisboa, que o levou à prisão no Outono de 1974. Descreu da política, ia vivendo feitos e desfeitas do clube do coração, emigrou, veio para terminar o curso e empregar-se, no pavor de se levantar cedo, ‘empregado cansado’ (diria António Ramos Rosa) à espera do autocarro – que entrará pela sua poesia. As noites políticas ao cheiro do Fervença ante-abrilino eram, entre 1979 e 1981, de sonhos epicuristas e fervor cinéfilo e literário, enfim convencido de que deveria publicar alguns versos.

Antologiámos, assim, quatro do distrito, sendo que Acácio Trigo e eu já éramos batidos nestas lides. Março ou As Primeiras Mãos (1981) tira o título dos conjuntos de Victor Rodrigues e Alberto Fernandes, e deste registei a contenção, «a terra a abrir-se», «o suceder límpido das coisas», das águas do Império (ou do exílio), mas sempre «do mesmo lado».

Decidindo-se por Bragança nos anos 80, até ao funeral de 27 de Outubro de 2016, escolhia a família, a advocacia, reuniões prandiais com os amigos, a docência – e, sobretudo, uma entrega devocional à Escola que agora o celebra. Com um bom vinho que a doença não recomendava – sendo bem sofridos os últimos vinte anos –, entregava-se à paixão do teatro, aos clássicos, à emergência bloguista e à escrita, intensa, de ficção.

Quem o conheceu admirou, naturalmente, a sua arte de contar histórias, como figuras típicas encadeavam uma linguagem do terrunho, irradiando ironia e boa disposição de um fundo enevoado de melancolia. Se destruiu muito texto, na insatisfação de criador, restou, pelo menos, um conjunto de 24 contos, a editar. É um pouco da vida, nossa e desta terra, que aí se encontra. Urge, pois, reunir o poeta e ficcionista, dando redobrado sentido à Biblioteca com o seu nome.

A ponte de vidro - Introdução a Torre de Dona Chama

 O monte de São Brás tem a desafiá-lo monte que chamamos Fraga. Separa-os um abismo respeitável de vinhas, estevas e mato por onde meu avô caçava. Uma ponte entre ambos seria de grande inutilidade; mas as promessas cumprem-se, e mais bela seria essa jura de princesa moura – caso vencesse os cristãos –, se o inútil virasse espantoso tabuleiro de vidro, acaso seguro em pilares sensíveis e cristalinos.
Sempre que entro nas minhas guerras de reconquista – um novo texto, outra infidelidade ao pensamento único –, lembro-me dessa ponte adiada na voz de narrador que, perguntado pela criança que eu fui – «E depois, avô?» –, respondia no limiar da novela de estreia: «Depois isso. Não fizeram a ponte e pronto.» Seja: não é que não houvesse vidro (de facto, não havia); a beleza da tentadora dona é que não chegava. Não deverei eu, autor sobre um abismo de nada, criar outro impossível, transformando a luxúria do verbo em amor de verdade aos seres de que me vou tornando senhor?
Eis a lição da minha princesa, Eugénia, no romance da terra natal, Torre de Dona Chama (1994), longa resposta à pergunta com que fechava a novela Várias Bulhas e Algumas Vítimas (1980), onde já colocara as versões literárias, oralizantes e históricas, que se conjugavam naquele nome, mas que, agora, nos meus distantes dias de Budapeste (1985-1986), eu vinha subverter, num quadro ainda medieval, estritamente bakhtiniano. Noutros momentos, em poema e conto, retomei essas preocupações, também homenagem ao berço.
Quanto às fontes literárias, tínhamos a linhagística desembocando n’“A Dama Pé de Cabra” (com extensão, em 2005, a Fascinação, de Hélia Correia), cuja edição crítica dei em Conto Português. Antologia Crítica (2005): como ela, a nossa Chama / Chamorra era pernas de cabra, / cara de senhora. Mas esta vivia numa torre, lá no cimo do monte hoje de São Brás, donde vigiava a cristandade. Era, pois, a torre de Dona Chama. Consideram outras vozes que a sineta que na torre tocava ao meio-dia, para despegar do serviço, levava os cristãos, em baixo, no vale onde se ergue a localidade, a entredizer-se: «Na torre, a dona chama.» Chama seria, portanto, ou nome de dona, ou forma verbal. Em qualquer caso, além da erótica herculaniana, a nossa era mais ígnea – nós mesmos designamo-nos flamenses, preferível a flamulenses –, de uma luxúria sem travão, obcecada por corpos de religião adversa, que atrai a si para, cevada a luxúria, os matar no tálamo de prazer.
Ao iniciar o meu romance, sabia que a expectativa dos dois narradores – um jovem professor recém-chegado e um jornalista da terra, primo da heroína – se casava neste lugar-comum: se desapareciam homens da terra, ou eram assassinados, é que morriam nas garras de jovem órfã e rica, acastelada em luxúria. Por analogia, esperavam outros poderes locais, a começar num tio da menina, que esta, descoberta em suas maldades, fosse justiçada ou se precipitasse na morte, deixando atrás as suas riquezas.
Na versão da princesa moura, ela é descoberta na figura (pernas de cabra), vício (sexo desenfreado) e crimes (matar amantes), por cristão desconfiado, que, após o amor, não adormece e lhe retira o anel, seu salvo-conduto por corredores de guardas, e que já esporeia cavalo de medo. Quando acorda, espavorida, uivando pelo amado (mas, ao adormecer a seu lado, não o encontrara, enfim?), os cavaleiros que o perseguem gritam-lhe: «Torna, torna, cavaleiro, que na torre a dona chama.» Se ainda temos uma forma verbal – podendo também ser um elíptico «que na torre está a dona Chama» –, é, já, terceira e mais rica versão. No desespero de se ver denunciada, a princesa cobre-se de toda a sua riqueza e atira-se a um poço. Mas quem acrescentou que, contíguo, há outro poço, de peste, e que, se nunca houve escavações no monte, foi com medo de bater, não no poço das riquezas, mas no da peste, que mataria tudo em redor? Esta ideia serviu-me para desenvolver uma guerra surda entre os bons e os maus, em individuações que adiam um juízo imediato do leitor.
Ora, com este suicídio, voltamos ao universo literário tirado da vox populi, e pequeno deslocamento geográfico: em Lordelo, a poucas léguas de Vila Real, situa o Camilo Castelo Branco de Anátema (1851) – estreia em que a circularidade do anel é igualmente fundamental – o castelo a que o povo chamava Torre de D. Chama, na sequência da morte de Inês da Veiga:
«[...] viu abrir-se aquela janela do meio, viu uma aventesma, amortalhada de branco, chegar à janela e atirar-se dela abaixo! E depois uma voz medonha diz que bradara aqui para estes sítios: Chama!... Chama!... [...] As luzinhas apagaram-se, ficou tudo calado e meu pai, vindo para casa contar a passagem, veio aqui quase meio povo e não encontrou nada!... Enquanto a mim aquilo era moura que quebrou o seu encantamento, à voz do seu mouro que pelidava por ela: Chama! Chama! E é por isso que estes perdieiros são a Torre de D. Chama.»
A inversão narrativa – trata-se de um mouro e não de um cristão; é um homem que chama por Chama e não ela, ou os seus cavaleiros – animava-me a outras subversões.
Neste ponto, proposições da História traziam a poderosa mulher, de olhos feudais, para a topografia actual: descida do monte, ainda transformo pormenor arquitectónico da casa de Eugénia em ameias, numa alusão a torre dominando a imaginação de mortais. Num jornal da terra, A Torre de D. Chama, de 1-II-1913, explicava Francisco Manuel Alves:
«Chama era o nome próprio de mulher frequentemente usado em Portugal na idade média e mesmo antes de constituída a nossa nacionalidade, como pode verificar-se em documentos desde o séc. VIII por diante e até adoptado pela aristocracia, segundo mostram os Livros de Linhagens no Portugal. Monument. Hist. pág. 145, 148, 158, 168 do 1.º livro, p. 174, 175, 176, 178, 181 do 2.º e ainda em vários outros sítios.
Encontra-se também sob as formas chamoa ou Flamula que se equivalem.
É bem conhecida a riquíssima D. Flamula, uma das mais nobres damas do século X, senhora de várias terras na província de Entre Douro e Minho. [...]
A povoação denominada Torre de D. Chama só começa a figurar com este nome no tempo de D. Diniz [seja, na carta de foral em 25-IV-1287], sendo muito provável que a mulher que legou o nome seja uma Dona Chamoa memorada nas Inquirições de D. Afonso III ao tratarem das freguesias de Santa Maria de Serzedo e S. Miguel de Espadanedo – interrogatus unde habuit eum dicit quod audivit dicere quod dona Chamoa una mulier de ipsa vila (Serzedo) leixavit eum pro sua anima in tepore Regis donni Sancii veteris.
Trata-se, pois, de uma dona Chamoa mulher nobre e rica, natural de S. Miguel de Serzedo, povoação que hoje não existe e provavelmente ficava nos limites da actual Torre de D. Chama, que vivia no tempo de D. Sancho II que deixou os seus casais de Serzedo e Espadanedo ao mosteiro beneditino de Castro de Avelãs, junto a Bragança, com encargos de bens d’alma.
De alguma torre que essa dona tivesse como habitação, segundo o costume da época, de que restam similares em Moncorvo (Torre de Mendo ou Men Corvo) e Santa Apolónia, perto de Bragança, ficou o nome à terra da sua principal habitadora, Dona Chamoa, simplificada posteriormente em Dona Chama que suplantou e fez esquecer o primitivo de Serzedo passando assim a designar-se por Torre de D. Chama.»
Potentado económico assim descrito na deficiente pontuação do Abade de Baçal interessava-me para as guerras intestinas entre falsos cristãos e mouros no trabalho, cujo desenlace se orquestra à luz da Festa dos Caretos, descrita nos seus actos de teatro de rua, que João Vieira narrou em vídeo (em que intervim) e recriou na pintura desde 1984. A lúbrica e assassina dona Chama era causa próxima de revolta que, por outro lado, rastilhara em lutas da Reconquista cristã. Assim se explica, dentro daquela terceira versão, a revolta dos cristãos animados pelo nascimento de Cristo sob o efeito do jogo e da máscara. A preparação do combate final começa na noite de 25 de Dezembro. Na tarde de Santo Estêvão, após quase 24 horas de encenação e luta, estará queimado o castelo da princesa moura.
Face a este horizonte de expectativa, o que acontecerá à minha heroína – alegadamente lúbrica, assassina e narrativamente distante, porque contada por quem a compromete? Primeiro parágrafo:
«Vivia por este tempo na torre uma dona formosa como a noite em que nos conhecemos. Sempre, ao acordar, a imaginação dos homens corria até conquistar a fortaleza e, com ela, o corpo jamais ou fugazmente entrevisto. Dizia-se que não raros tinham sido aliciados por quem, firme no seu tenebroso poder, os honrava superiormente e matava a seguir.»
Este narrador actua no quadro do esperado. Conta a terceira versão. Para o padre da terra, inclusive (antes de, muito à frente, se converter, isto é, se desfazer do preconceito...), Eugénia retoma maldade antiga. O velho professor, por outras razões, não pode defendê-la. Ela está de relações cortadas com o avô, médico. O tio, outro rico do lugar, tudo manipula, à espera de que lhe caia no regaço a riqueza da sobrinha. É a orfandade absoluta. Pior: o comandante da guarda investiga uns crimes, noticiados em Lisboa. Por isso, o primo, paixão de infância – que, todavia, sabe ser ela amada pelo seu dele grande amigo de infância –, agora jornalista, volta à terra; ao passar a narrá-la, substituindo professor digno de pouca confiança (e que nunca perceberá ter sido aliciado para noite em que, ao contrário do que julga, não teve aquele corpo de ouro), ainda acredita nos crimes da prima. Como se dá a reviravolta? Que força tem aquela jovem, e como, de moura dita lúbrica, leva a efeito a reconquista desse primo, vencendo cristãos hipócritas e afirmando-se na virgindade de corpo e alma? Eugénia não fazia desaparecer mancebos: encontrando-lhes empregos no litoral, esvaziava a terra para que o primo viesse encher o seu deserto de amor.
Enquanto assim punha o meu pequeno mundo de pernas para o ar, no interior de uma carnavalização dos seres e da linguagem própria da festa, eu estava a reverter, ponto por ponto, memória ancestral caldeada em versões históricas, orais e literárias, servindo-me de uma diligência policiária e máscaras a retirar. Àquelas versões acrescentava algo, ausente em narradores de carne e osso: eu estava há muito apaixonado pela protagonista, imagem de Dona Chama, senhora da minha torre / terra e do coração, que aí bateu pela primeira vez.
Que isso não fosse, ou dívida para com a pátria que nos deu respiração, um autor deve tentar, em quaisquer circunstâncias, mesmo quando se mostre impossível, o salto para o outro lado – talvez que, entretanto, tenha sido lançada uma tábua de salvação, quem sabe se uma ponte de vidro...