António Tiza, A Revolta no Seminário de Bragança
A ação deste romance, saído na Âncora Editora, decorre entre julho de 1904 e a Semana Santa de 1908. Ou seja, quando o protagonista, Sebastião Fonte, termina os preparatórios no Liceu Nacional, encarreirado para o seminário, e, quatro anos depois, casa com Eunice Vasconcelos, sagrados pelo amigo, ex-colega e novo padre Leopoldo Abel. O que aconteceu, neste intervalo?
Cerca das 23 horas de 12 de dezembro de 1904, ouviu-se um tiro de revólver, um grande alarido, os alunos de Teologia arrombam ou rebentam à machadada com as portas dos quartos (cujas chaves estavam com os dois prefeitos), partem mobília e, entre imprecações, dirigem-se à ala dos prefeitos e vice-reitor, que se anteciparam à insurreição e recolheram-se à casa particular. Seriam onze e meia quando, avisados pelo vice-reitor, um coronel de Infantaria e um funcionário da polícia entraram no seminário, todo às escuras e serenado. O auto policial não apurou quais os responsáveis.
O bispo, D. José Alves de Mariz, reitor de facto, quisera, nessa manhã, prevenir a insubordinação que se desenhava, e viu nisto pé para, em 22 de dezembro, se refugiar na sua quinta da Cruz de Bencata (perto de São Martinho do Bispo, Coimbra, onde, de resto, descansava aos seis meses, longe da diocese). Sem discriminar responsabilidades, meteu no mesmo saco revoltosos e inocentes, num edital de 23 de janeiro, que encerra o seminário, faz perder o ano a 38 alunos (6 do terceiro ano, 13 do segundo, 19 do primeiro), enquanto expulsa 12 do terceiro ano e 12 do segundo, ou seja, 24, in perpetuum. Aqueles terão de, até 30 de junho, provar inocência, pedir clemência – e, mal sabem eles, aguardar um triênio para tomarem ordens.
Cresce burburinho nas redes sociais do tempo, confrontando-se jornais, entre manifestações de repúdio na cidade, apelo do governo civil ao ministro da Justiça e dos Negócios Eclesiásticos, abaixo-assinado ao rei, debates nas câmaras dos deputados e dos pares (ainda ressoando em 1910), intervenção do núncio apostólico. Hoje, conhecemos também o parecer de 14 páginas, de 14 de março de 1905 (Arquivo Histórico da Procuradoria-Geral da República, PGR/06/10/10, Nº 1240, Livro 40 C – Justiça), enviado àquele ministério por António Cândido, Procurador-Geral da Coroa e Fazenda entre 1898 e 1910, para quem a sentença episcopal é «um ato de violência: 1º porque não se instaurou processo criminal; 2º porque se postergou o direito natural de defesa».
Mais: ao encerrar o seminário «sem autorização do Governo», o bispo «praticou um ato que não era da sua mera jurisdição e invadiu as atribuições legais do poder civil». Explicadas as razões, questiona o procurador-geral se o Governo pode compeli-lo à reabertura do seminário e, se houver «resistência do Reverendo Prelado, que meios há para o reduzir à obediência devida?».
Dois amigos sustentam esta história: Sebastião, natural de Varge, como o autor, é aluno interno no antigo colégio dos jesuítas; Leopoldo, filho da dona de estalagem – onde, antes, viveu aquele –, é aluno externo. Embora não implicados na revolta (julgavam preparar-se uma greve, como 30 anos antes), sofrem a injustiça episcopal e, pelos seus olhos, vamos lendo uma nação em polvorosa, quando jovens quase presbíteros (logo, com vocação) reivindicam contra um regulamento asfixiante. Enquanto o país se agita, Sebastião desiste no final do segundo ano letivo e vai dar aulas de Latim e Filosofia em Lisboa, voltando ao liceu de Bragança como docente em 1908.
Acompanhamos, assim, o rotativismo partidário, ora progressista com José Luciano de Castro e seu ministro José de Alpoim, logo regenerador com Hintze Ribeiro, regenerador-liberal com um João Franco inimigo do delegado régio Trindade Coelho, e, no pós-regicídio, o almirante Ferreira do Amaral. São principais fontes três jornais da cidade, ora entrechocando, ora defendendo a honra da casa contra, sobretudo, o ultramontano bissemanário vianense A Cruz, que acolhe versão dos prefeitos e vice-reitor idos da arquidiocese de Braga e lança objurgatórias sobre o caráter dos nordestinos.
António Tiza foi teólogo em anos menos obscuros e em espaço mais arejado do Seminário Maior. Conheceu as cadenciadas rotinas, desde os silenciosos retiros espirituais à cronometragem das orações, aulas, estudo, recreios, passeios e sono. Um seminarista alimentava-se mal (sem ser senhor do que a família lhe trouxesse à portaria), era vigiado, violado na correspondência (quando não no corpo em duvidosa higiene), proibido nos afetos, castigado sem razão. Nem todos podiam sonhar, tal o peso da família, mesmo da comunidade, que almejava assistir à primeira missa solene de um filho da terra.
Sebastião tem a sorte de um tio padre, que compreende a falta de vocação e convence os pais. Estes aceitam, não virá mal ao mundo, este filho nunca os deixou ficar mal. A gota de água dos desacatos foi serem fechados à chave durante a noite, não podendo sequer ir à casa de banho. Aceitar estas e outras constrições só de humilhados, de quem não levanta a cabeça: «O pior é quando sentimos que estamos a ser humilhados, trancados à chave nos quartos como gado num curral, e não somos atendidos nas nossas pretensões.» (p. 132). Ao bispo faltou humilhar-se.
António Tiza é antropólogo, carreando festividades, seja o ritual da Morte na Quarta-Feira de Cinzas em Bragança (à revelia do bispo, cuja pastoral de 20 de Dezembro de 1890 proibia estes autos), seja a festa dos rapazes e loas da sua terra, em que assistimos ao momento mais comovente e solidário destas páginas. As festas, também litúrgicas, os trabalhos e os dias aldeões a que Sebastião não foge, o cerimonial da matança do porco, vêm rastreados sob a égide da primeira de muitas figuras citadas, Francisco Manuel Alves, o abade da vizinha Baçal. Isso implica atenção particular à linguagem, desde o léxico local aos modos de dizer (home, bô, etc.).
Figura já não colateral é o bispo: nomeado em 1885, entra na cidade em 31 de Janeiro seguinte, conservando-se até 1912. Repete cartas pastorais, semeia trigo e joio, acusa os adversários de republicanos anticlericais. O encerramento das aulas e o anátema lançado sobre 62 aspirantes, sem prévia audição, envergonharia a própria Inquisição.
A reação da cidade (mesmo do distrito, com comício em Vimioso) não demorou, em manifestações na Praça da Sé, por iniciativa de um Afonso Dias, ou no Teatro Camões, por nomes graus, acobertando desejo do governo civil, secretariado por Eunice, paixoneta de Sebastião desde o liceu, que aos dois amigos transmite informações sigilosas. No ajuntamento da Praça da Sé, a multidão repudia acusações de marranos e cristãos-novos, pior, de abafadores, aleivosias do jornal de Viana do Castelo – e pretexto para discorrer sobre um tipo peculiar de eutanásia que inspirou O Alma-Grande, texto notável de Torga, em Novos Contos da Montanha, e título de romance, O Abafador (2011), de José Lopes Alves, um tenente-general nascido em Valpaços.
A sessão no teatro, pacífica, exige um pequeno destacamento do Regimento de Cavalaria, chefiado por sargento à fala com Sebastião, importante no entrecho, e também nos destinos do país. Militar em vias de se mudar para Lisboa, trocam correspondência, reencontrando-se docentes em colégio da capital.
Entre viagens épicas de um cansativo dia no comboio recém-chegado ao Nordeste, um Sebastião angelical (diferente do Calisto Elói de Camilo, autor tutelar ainda sugerido no título do cap. XL, “Mistérios de Lisboa”) assiste aos atropelos do franquismo, carteia-se com Eunice – mas vai beijando a colega Sara –, e frequenta o café Gelo, em mesa ao fundo (acrescento eu), dando para a Rua Primeiro de Dezembro, onde esse antigo militar se senta com outro filho de padre, Aquilino Ribeiro (e com Alfredo Luís da Costa, aqui rasurado).
Vem a propósito uma lição sobre a Carbonária, à qual Sebastião se esquiva, como foge à ritualística do seminário. Há um curioso processo de sedução, quando se apercebem de que Varge tem carvoeiros regularmente abastecendo Bragança – desde logo, a estalagem de Leopoldo. António Tiza fixa-se no romanesco Luz de Almeida de final do século XIX, e poderíamos vir do reinado de D. Miguel, como mostrei em Carbonária, o Exército Civil do 5 de Outubro, artigo em Estudos Italianos e Portugal (2010). Mas isso não se exigia.
Aqui chegados, reconhecemos a indicação genérica “Romance histórico”, explicitada por A. M. Pires Cabral no prefácio. Além da maioria de nomes próprios reconhecíveis, alguns dos quais ainda vivos na nossa meninice, as cenas acontecem na toponímia certa, embora exigindo do leitor que reconheça na Rua dos Oleiros, por exemplo, a atual Rua Almirante Reis, e lamente o fim do republicano Clube Brigantino, debruçado sobre a Praça da Sé, onde reuniam os alunos suspensos.
Nova tiragem exigirá corretivos, da pontuação às gralhas, e vocábulos nem sempre obedientes ao, para mim lamentável, AO90, que este livro segue. É erro, repetido por Aquilino, chamar Colégio Moderno (ou Escola Nacional, p. 197, e Escola Moderna, p. 309, 318, 408) ao Colégio Nacional, onde ensinava Sebastião. Distracção curiosa é trocar a quinta da Cruz de Bencata por Cruz da Benquerença (p. 419). A página das Fontes não contempla O Primeiro de Janeiro ou o Giornale di Roma.
O meu maior incómodo é o seguinte, qual entorse ao desígnio histórico: o dito sargento de Bragança era segundo-sargento; em 1905, esse militar, artista no tiro, não podia estar em Cavalaria, donde fora expulso em 1898. Bastava referir um encontro casual à saída do Teatro Camões e salvava-se o pormenor. Com efeito, esse Manuel Buíça, filho do abade de Vinhais, é o interlocutor e colega de Sebastião na docência, conviva de Aquilino – e regicida.
Eis um romance informado, educativo, útil a vários títulos. Entra na polémica de há 120 anos, deslustrando atitudes de bispo autoritário e vingativo, indiferente ao cabido e às leis da nação; louvado em biografia do Abade de Baçal, não menos perdeu embates com figuras da cidade, merecendo poemeto herói-cómico de João Manuel de Almeida Morais Pessanha (o padre João Pessanha aqui citado), postumamente editado em Vigo: Dom Libato Safadinho, o Bispo.
Na noite de 13 de Dezembro de 1909, lembrando quinquénio de luta, explodiu uma bomba sob os aposentos do bispo, ausente. Tanta acrimônia merecia bem este longo lembrete de 400 páginas sobre comunidade que, se tem razão, não deixa de exigir que se faça justiça.