Raúl Gomes

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Não está fácil ser pobre

A pobreza é estado que, no decurso do tempo, tem sido entendida das mais variadas formas, chegando ao ponto de se considerar legítima e até necessária. Deste modo, permitia-se aos ricos dar esmolas e partilhar bens de primeira necessidade em troca de um lugarzinho no céu. Nesta perspetiva, os pobres existiam para a salvação dos ricos. Tal prática não está assim tão distanciada no tempo pois, não me considerando tão velho quanto isso, ainda me lembro ouvir os pobres pedir “um bocadinho de pão por alminha de quem lá tem”. Na arte de bem pedir, havia alguns que, de tal forma tinham aprendido a lição que, atrás do pão, ia a carne e ao lado desta as batatas e mais alguma coisa das fartas casas de lavoura. Estes, os mais pobres entre os pobres, não se demoravam muito em cada lugar e, normalmente, a sua passagem era associada ao roubo de qualquer coisa menor. Já ninguém levava a mal e, muitas vezes o ofendido perdoava em troca de um facto capaz de quebrar a rotina dos dias.

Havia outros mais sedentários. Ajudavam nos trabalhos da terra, iam buscar água à fonte e “davam uma mão” naquilo que fosse necessário. Estes tinham um estatuto quase familiar. As portas das casas mais abastadas estavam sempre abertas para eles. Quando se fazia o almoço ou o jantar, punha-se sempre mais um ou dois quartilhos de água no caldo ou coziam-se mais umas batatas a pensar nessa gente. Dava gosto vê-los comer e, quando tinham filhos pequenos, mal os “patrões” acabavam de jantar, era uma alegria ver aquela chusma de garotos entrar na cozinha, pegar nos pratos que tinham ficado na mesa e encher a barriga do que sobrou. Eram pobres mas felizes e socialmente aceites, em troca do suor, de um cesto de verga ou de uma dúzia de agulhas feitas de varetas de chapéus-de-chuva em desuso.

Os tempos mudaram e os hábitos também, tornando a pobreza limpa e arrumada. Talvez os ricos tenham aprendido a salvar-se de outro modo e os pobres institucionalizaram-se passando a estar sob a tutela de organizações que, com recursos limitados, tratam deles. Mas neste mundo que nos habituamos a olhar como se todos fossem iguais, há ainda os pobres dos mais pobres. Aqueles que continuam a vaguear pelas ruas e a estender a mão já não à porta das igrejas – até nisso tiveram de se adaptar – mas nos estacionamentos e nos centros comerciais. Como a área é maior, há pontos de fuga por todo o lado para quem não tem paciência. Os das corridinhas marotas encetam percursos entre as viaturas, num jogo de esconde-esconde com os sacos a denunciar a presença. Há também os de olhar complacente que fazem um pequeno desvio como se fossem incomodados com aquela presença de pobre, mas apenas um bocadinho; esboçam um sorrisinho, olham de ladinho e seguem o seu caminhinho. Mas o fascínio vai para os que, destemidos, não se afastam nem um milímetro: convictamente seguros de si avançam prontos a enfrentar aquela figura sem vida no olhar, a estender a mão e a suplicar por uma moedinha que lhe salve o dia. “- Só uso cartão” – dizem com ar sorridente, olhando o pobre olhos nos olhos mostrando assim quem manda ali. Estes cada vez são mais. Por este andar, dentro em breve, cada pobre vai ter de andar com um terminal multibanco e de preferência com todas as opções: Visa, Electron e todos os que desconheço com toda a certeza.

Também já me apercebi que as campanhas de solidariedade já não são o que eram: ou o processo decorre todo no mesmo sítio ou tem de ser uma daquelas on-line, onde basta um clique para tudo ficar despachado. As que continuam a apostar no cartaz com pontos de recolha estão votadas ao fracasso. Já não há quem esteja disposto a agarrar no produto e fazer alguns metros que sejam para a entrega. Os que ainda se identificam com a causa acham maçudo, os que não estão para se ralar consideram um exibicionismo promover cenas destas. Porém, quando ainda há uma centelha de consciência e se olham os pobres através do prisma da caridade cristã (desconheço se poderá existir outra), por vezes, há quem entregue uma nota e permita saciar a fome de quem não tem nada. É que os tempos mudam, a fome mantém-se e ninguém é pobre porque quer.

Há pobres e há pobreza. Há aquela onde o contributo individual não chega a ser uma gota que sacie seja o que for, mas há outra onde basta um sorriso ou um olhar empático que faz toda a diferença.

Pode não se ser religioso nem ter valores que potenciem a realização das obras de caridade em séculos anteriores tão apregoadas, mas se todos somos humanos, que seja esse o princípio do fim da pobreza que vive ao lado de cada um.

A arte e o artista

Já vai para alguns anos, veio parar-me às mãos um livro que comparava os comportamentos humanos com os dos animais da selva.

Quando se refere ao modo como o homem atual aborda a aquisição dos bens de consumo, o autor estabelece uma analogia entre o homem e o felino: ambos selecionam a presa, focam-se nela e esquecem as restantes. Será pois este mecanismo que impulsiona o homem a comprar, por exemplo, a primeira peça de roupa enquanto que a mulher é mais seletiva. Não partilhando das aptidões necessárias ao exercício venatório, vejo-me, neste momento, num impasse quanto à atualidade a abordar, dado o início do ano estar a ser tão pródigo em factos na área por aqui refletida mês após mês.

Poder-se-ia abordar a questiúncula do poema de Álvaro de Campos. No entanto, e porque, ultimamente, ando farto de falsos moralistas, opto por um outro tópico relativizado face às ondas de choque dos confrontos políticos. Naquelas análises de final/ início de ano, num determinado programa de uma determinada rádio da qual não recordo o nome, um comentador, na tentativa, de demonstrar que António Costa não tem perfil de liderança nem tão pouco tem sido tão bom primeiro-ministro, referiu que a base deste governo é o ministro das finanças e o presidente da república.

Não poderei pôr em causa as qualidades do comentador enquanto politólogo, pois, como já referi, nem sequer me recordo do nome da estação, nem do programa, quanto mais do interveniente. Contudo, alguém que pronuncia tal afirmação não conhecerá muito de liderança nem tão pouco de criação de equipas.

Hoje, o líder de excelência não é nem o omnisciente, nem o que centraliza em si toda a linha de comando. Em alguns casos, também não é o que se encontra formalmente investido dessa função que, na prática, exerce a liderança. No caso do primeiro-ministro, se há qualidade que se lhe reconhece é precisamente a de liderança que passa, sem dúvida alguma, por criar uma boa equipa e reconhecer o potencial dos seus membros, antes de eles serem efetivos. O trazer para a primeira linha uma figura desconhecida do grande público, que, nem um discurso politicamente bem enquadrado sabia fazer e criar condições para em pouco tempo seja considerado o melhor ministro das finanças europeu é, de facto, um feito exclusivo de boas lideranças.

A relação que mantem com a presidência da república, longe de relativizar a função do primeiro-ministro, revela essencialmente, as capacidades políticas que o detentor do cargo tem e, sobretudo, a capacidade em ler os sinais e interpretar a conjuntura social e política que se vive, mantendo uma estabilidade institucional tão contrastante com as convulsões internas de alguns partidos e de muitos grupos profissionais. Ora, se quer a presidência da república, quer o governo entenderam a seu tempo que cada um pode desempenhar as funções para que foram investidos num clima de apaziguamento tão necessário ao desenvolvimento de um país, de forma alguma se poderá considerar Marcelo como a “muleta” do governo, mas alguém que sabe colocar os interesses do país acima das querelas ou agendas partidárias. Pessoalmente, não aprecio a tendência populista como exerce o cargo, reconheço, no entanto, que tem sido equilibrado na promulgação e no veto dos diplomas, com uma fundamentação coesa e, sobretudo, coerente, contribuindo para o desempenho da governação.

Dale Carnigie, num dos seus livros, apresenta o caso de Charles Schwab, escolhido para ser o primeiro presidente da United States Steel Company, em 1921. Aos 38 anos, pagavam a este homem mais de três mil dólares por dia, para dirigir uma fábrica de aço onde, segundo o próprio, havia muitos trabalhadores que sabiam mais de aço do que ele. Assim sendo, qual era a mais-valia que apresentava? – Nas palavras de Schwab o salário tão elevado correspondia à sua habilidade em falar com as pessoas. Segundo consta, era hábil a encorajar os homens com quem trabalhava, elogiava sinceramente mas também mostrava o seu desagrado quando via os erros.

Ora, se liderar é uma arte, e a arte da palavra é apanágio dos bons líderes, António Costa é efetivamente líder num tempo muito concreto pese, embora não se descortine para onde irá conduzir os destinos do país a médio e longo prazo…

 

A prenda

Por razões culturais, mais do que religiosas, dezembro continua a cheirar a afetos. Em tempos onde os valores se misturam, emergem radicalismos com os quais nunca pensaríamos voltar a ter de ser confrontados. A cada alvorada somos surpreendidos por mais uma novidade que vai desvirtuando o sistema de valores que alicerçam a dignidade do homem e interpela sobre este existir.
Neste momento, sobressalta-me a forma como os dados pessoais de cada indivíduo estão a ser monitorizados e a celeridade com que diversas plataformas da administração pública cruzam informação. A título de exemplo, e depois de outros, está o governo a testar uma aplicação direcionada para a administração escolar que também irá recolher dados do ministério da saúde, possibilitando aos serviços administrativos conhecer, entre outros dados, o tipo sanguíneo de um aluno. Esta visão da realidade que se vai construindo silenciosamente, afigura-se-me como atentatória das liberdades e garantias conquistadas nas últimas décadas. Não admira pois que se queira tapar o “sol com a peneira” quando se propala a proteção de dados, se pedem autorizações para as pequenas coisas e se escancaram as portas para o essencial da vida.
Este afã da devassa da vida de qualquer um, não é só bandeira das televisões, mas o próprio estado passa a intrometer-se nos pormenores do quotidiano, repercutindo-se na vida de cada um, e condicionando a dinâmica social, sendo que, quanto mais reduzida for a comunidade, mais impacto tem o factor condicionante.
Nesta era de cruzamento de dados, lembrou-se a governação de alterar o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social mediante o Decreto-lei n.º2/2018 de 9 de janeiro. Em termos gerais, altera as taxas contributivas dos trabalhadores independentes mas também procede a alterações no que respeita à acumulação da atividade independente com a atividade por conta de outrem. Em linguagem corrente, pretende-se que quem trabalha por conta de outros mas, em vez de ir para o sofá depois das horas dadas ao patrão, considera que faz sentido fazer algo de útil e, ao mesmo tempo, daí tirar algum rendimento, passe a pagar mais uma contribuição.
Tendo uma perspetiva nacional, pode ter-se uma leitura não coincidente com a que se faz quando a análise se foca numa dimensão regional. Sem grande margem de erro, na realidade transmontana, mais de noventa por cento dos contribuintes que se encontram nesta situação são-no porque, ou por herança ou por amor à terra, são proprietários de pequenas parcelas. Das mesmas podem retirar um rendimento que, na maior parte dos casos, nem dará para pagar os custos de produção. Mas, o certo é que se o rendimento mensal médio for igual ou superior a quatro vezes o valor do indexante dos apoios sociais, fica o trabalhador sujeito ao pagamento de contribuições.
Em termos concretos os efeitos já se fazem sentir: recebida a informação da segurança social em julho, já há quem no mês seguinte tenha ido alterar a sua situação nas finanças. Agora que a entrada em vigor do diploma se aproxima quer parecer-me que muitos mais irão fazer isso. 
Se com esta prenda, é que o governo pretende dinamizar as terras do interior e combater o seu abandono, garantidamente errou a estratégia. Mais uma vez a discriminação positiva ou a atenção especial para com os territórios de baixa densidade não passam de figuras de retórica. Também não me parece que venha a ser criado um regime de exceção para quem trabalha a terra e ao mesmo tempo seja trabalhador dependente – não só não há dimensão, como quem nos representa não colocará esta questão na sua agenda.
Se as terras ficam a monte multam por não estarem cultivadas, se estão cultivadas pagam porque tiram proveitos. É caso para dizer: com prendas destas, o melhor é dedicarmo-nos à pesca.

Outro mundo

À medida que o tempo passa, aumenta a convicção de que, em vez de se falar de “mundo” faz mais sentido falar-se de “mundos”, mesmo quando nos referimos ao globo terrestre; pois se, por um lado ele é uno, por outro, a diversidade é a caraterística dominante em qualquer das latitudes. Na individualidade, cada um cria o seu mundo que toca o do outro num processo de desenvolvimento pessoal e de construção da personalidade, nem sempre linear mas sempre produtivo.

“Outro mundo” foi a expressão usada à mesa do café para traduzir o que as televisões faziam chegar, desde Borba e numa perspetiva apocalíptica. Em abono da verdade, a expressão foi “— Aquilo parece outro mundo.” “Aquilo” remete para uma situação diferente do habitual, mas ao mesmo tempo para algo distante e que, quanto mais longe estiver, melhor. Às imprecisões dos primeiros minutos sucediam as certezas de que havia vítimas. O resto é o dejá-vu de outras tragédias anunciadas e que não foram evitadas pela incúria de quem tem responsabilidades. Também neste campo, do que se ouviu foi mais do mesmo: a administração central não funcionou, os políticos não agiram e as empresas na mira do lucro omitiram a sua responsabilidade social. A dissonância veio do primeiro-ministro que, à semelhança do caso de Tancos, mais uma vez, veio dizer que nada sabia e do presidente da república ao falar da responsabilidade objetiva e subjetiva.

Este conceito, por si mesmo, já é complexo. Ao adicionar-lhe um qualquer modificador é missão para titãs. No entanto, responsabilidade, independentemente do que a queiram travestir, é Responsabilidade e importa encontrar os responsáveis diretos deste drama e de tantos outros aos quais se perde o fio na busca do que ou quem esteve na sua origem. Em situações idênticas à de Borba onde factores ambientais estão subjacentes, poderá ser fácil encontrar os responsáveis; no entanto, se nos situarmos no campo da ética a responsabilidade poderá ser assacada a todos quanto tinham conhecimento da situação e na ausência de responsabilidade cívica nada fizeram para que a tragédia não ocorresse.

O perigo era visível a olho nu e não eram necessários conhecimentos geológicos para qualquer um se dar conta de que bastaria a alteração num vector para que toda a estrutura desmoronasse. Pode alguém duvidar de que foram realizados um ou mais reconhecimentos antes da Volta 2018 ter passado por aquele lugar? Quem trabalhava nas pedreiras não olhava para o que se via à luz do dia? – Tudo estava à frente dos olhos mas minimizaram-se os riscos e deixou-se estar até a tragédia acontecer.

Esta atitude tão tipicamente nossa é a mesma que conduz ao desleixo pela coisa pública e permite que situações se arrastem até ao limite, embora qualquer cidadão possa, nos dias que correm, alertar, informar e denunciar seja junto das entidades responsáveis, seja pelas redes sociais que cada vez mais se assumem como veículos de disseminação.

Nem tudo se pode evitar. O risco é inerente ao ato de viver. No entanto reduzir os riscos e minimizar consequências é dever de todo e qualquer cidadão e ninguém está livre de responsabilidade.

Assim, e porque este mundo é de todos e todos são deste mundo, antes de apontar o dedo a quem assume funções de governação seja a nível local, regional ou nacional, devemos interrogar-nos sobre qual é a quota parte de responsabilidade que cada um tem no estado a que se deixam chegar as situações seja qual for a área. Em democracia todos somos chamados a participar e se é necessário ter boas lideranças é imprescindível ter melhor povo.

Parece que...

Ouvir Bagão Félix dizer que o orçamento de 2019 não é eleitoralista soa a contranatura. Dada a reconhecida autoridade que lhe assiste, a família política a que pertence e a conjuntura nacional na qual são geradas as grandes opções do plano, eu, enquanto cidadão comum, pouco dado a contas e pouco dado a dogmas, devia abster-me de qualquer comentário. No entanto, esta “estranha tendência” de pensar nas coisas e de problematizar o que, por princípio, se aceita, não me larga desde a juventude. De facto, para além do gosto de ser livre, esta forma de estar nada mais me trouxe, sendo que por nada a trocaria. Honra, por isso, aos meus mestres que nunca me aprisionaram e me permitiram conservar esta essência.

Olhando para o orçamento, prevê-se um aumento generalizado das pensões que se situará entre os seis e os dez euros, para além do aumento regular o que irá abranger 5,1 milhões de pensionistas. A estas medidas associa-se um novo regime de reformas antecipadas por flexibilização, já reclamado há algum tempo, seja pela questão da equidade e justiça como defendem os partidos de esquerda, seja pela necessidade de renovação dos quadros como referem os da direita. O reforço da sustentabilidade da Segurança Social também é apontado como um desígnio para o próximo ano, diversificando as fontes de financiamento, sendo de destacar a consignação das receitas do IRC em um ponto percentual.

Numa outra área, o OE aponta para a redução de custos no financiamento das empresas e do próprio estado, reforçando o crescimento económico e a convergência com a zona euro, estando previstos incentivos à capitalização e ao reinvestimento dos lucros.

O aumento do abono de família e a gratuidade dos manuais, até ao décimo segundo ano, inscrevem-se nessa linha de um orçamento eleitoralista sem margem para dúvidas, pois não se pode descurar o peso que as despesas com a educação têm no bolso dos portugueses. Esta, a par de outras medidas, sobretudo a que enquadra o mínimo de existência permitindo que os salários até seiscentos e cinquenta e quatro euros mensais não paguem IRS, serão benefícios a considerar em ano de eleições e quando se sabe que salários baixos é o denominador comum no mercado de trabalho. Se a factura da luz baixar 5% - algo que depende do que o regulador decidir – o ano de 2019 augura algo de bom para as famílias portuguesas, parecendo que uma página irá virar-se de vez. Se a isto se acrescentar que o trabalho suplementar deixa de se juntar ao salário para o cálculo da retenção na fonte, pode dizer-se que, efetivamente, vai haver um aumento real de dinheiro no bolso dos portugueses.

Independentemente de com quem se negociou, este orçamento parece que também vai agradar à função pública com aumentos que podem variar entre os cinco e os trinta e cinco euros, para além do descongelamento das carreiras.

No sector da saúde, também irá haver um aumento de 5%, havendo mais investimento no Serviço Nacional de Saúde, para além do alargamento da rede de cuidados continuados e o reforço dos cuidados primários, para além do investimento em algumas unidades hospitalares, algo que se conjuga com a redução do déficit.

Ou seja, numa primeira leitura, este será o orçamento ideal. Contudo, algo menos evidente existe, já que a comissão europeia – mais atenta do que o comum dos mortais – alerta para o aumento da despesa pública primária em 3,4% e a existência de um esforço orçamental abaixo o que se recomenda. Se a isto se juntar o facto de o governo estar a contar com 150 milhões de dividendos da Caixa Geral de Depósitos que podem não chegar porque é necessária a autorização da comissão europeia e do banco central, pode estar à vista uma derrapagem que será ainda maior caso a conjuntura externa não seja favorável à economia nacional.

Na verdade, o orçamento pode não ser eleitoralista e ser, efetivamente, realista. Dentro do que é possível tenta agradar a todos, falta-lhe, no entanto, arrojo e visão a médio e longo prazo. Não vai permitir que continuemos descansados, pois as ameaças à estabilidade orçamental são mais que muitas e o dinheiro continuará a não sobrar porque nem tudo se controla e neste caso há muitas variáveis que nos escapam.

Não é do A. D. N.

Desta vez os alarmes soaram na Grande Rússia: Putin prepara-se para alterar a idade da aposentação porque a população ativa não chega para cobrir as despesas com as reformas. Em resumo: o fosso demográfico está a aumentar. Face ao alarme, o presidente quer apresentar um pacote de medidas que, na opinião dos especialistas, poderão inverter a tendência verificada desde dois mil e oito. Segundo dados recentes, em 2016, houve uma queda de trinta e duas mil e duzentas pessoas no crescimento populacional o que, em termos globais, agrava o deficit para onze por cento em território russo.

Os especialistas apontam várias causas, que vão desde a insegurança ao alinhamento pró-ocidental, que se traduz em novos processos de socialização e em modelos diferentes das novas gerações se relacionarem. Outros factores contribuem para a baixa natalidade no país dos czares, sendo a pobreza e a crise económica que se instalou factores determinantes, não estando arredado o facto de 25% da população masculina morrer antes dos cinquenta e cinco anos – por consumo excessivo de bebidas alcoólicas, segundo estudos recentes.

Esta tendência, caraterística dos países ocidentais, alastra-se a outros de latitudes diversas e, os que eram considerados ‘nichos’ estão a viver o mesmo drama, sendo o paradigma desta evolução a França onde, são essencialmente, as camadas mais jovens da população (25 a 34 anos) a ter menos filhos. Segundo Laurent Chalard, numa entrevista ao Le Monde, se a crise de dois mil e oito teve influência nos anos subsequentes, não é menos relevante a decisão pessoal de cada um, associada a uma evolução das mentalidades.

Ora, se a questão fosse apenas de mentalidades, países como Portugal, Irlanda e Polónia – tradicionalmente conotados com a máxima do “Crescei e multiplicai-vos” deveriam inverter esta tendência, o que não se verifica. Logo, ou também aqui as mentalidades mudaram, alguém não se apercebeu, ou há variáveis que o mundo académico ainda não contemplou e, consequentemente, os políticos ainda não conhecem. Sem dúvida que os factores económicos são, em nosso entender, mais determinantes que tudo o resto.

Antes de mais, os índices da qualidade de vida são uma variável a considerar. Sendo um direito de qualquer cidadão ter condições de vida condignas, não se pode dissociar isso do direito à habitação, à educação e ao emprego. Ou seja, um longo caminho a percorrer no nosso país. Em termos de educação, ainda recentemente, ficou-se a saber que mais de 1500 crianças de quatro anos ficaram sem vaga no pré-escolar. Em agosto, foi notícia que 21 mil crianças, com seis anos, permanecem no pré-escolar por falta de condições no ciclo seguinte.

No que respeita ao parque habitacional, basta ouvir as notícias mais recentes sobre os custos do aluguer numa qualquer zona do país onde haja atratividade em termos de trabalho para qualquer casal se ver arredado.

Urge, por isso, mais do que multiplicar projetos, criar contratos-programa, onde o poder local se envolva e a sociedade civil participe com vista à assunção de respostas eficazes e localmente aceites. E já agora, tal como Putin, dar mais atenção às famílias jovens no apoio à aquisição da primeira habitação e no reforço das comparticipações familiares já que, hoje em dia, cada vez mais tarde, há condições para deixar a casa dos pais.

Considerando que se pode estar perante uma mudança de mentalidades, deve efetivamente estudar-se a questão da natalidade em Portugal e reforçar as políticas em função dos grupos sociais, sem carácter discriminatório, em vez de criar generalidades para o todo e, consequentemente, a ninguém aproveitam. Mais uma vez, as questões da imigração e das minorias se colocam, sobretudo, na forma como são acolhidas em território nacional. E, caso tudo falhe, que se promovam ou apagões ou se aumente a taxa do audiovisual já que, segundo as Tendências do Imaginário está provado que nos nove meses seguintes o número de nascimentos tende a aumentar. Também há quem reforce a ideia de que o mesmo se consegu após a vitória do clube do coração ou da seleção nacional, mas aqui as probabilidades poderão não ser tantas e, dadas as circunstâncias, é de todo conveniente jogar pelo seguro.

Um sistema quase perfeito

Voltou-se a falar de educação, melhor do sistema educativo, e das lutas que a classe docente tem travado para a recuperação dos nove anos, uns quantos meses e uns poucos de dias que o atual governo parece ter prometido recuperar mas, afinal, parece que já não. Uma luta justa. Para além das consequências que tem na vida de milhares de portugueses, o apagão deste tempo violará as mais elementares leis do código do trabalho, para não falar já nas questões éticas que aqui estão envolvidas. Se em vez da entidade Estado fosse um outro empregador, ou se em vez dos professores fosse uma outra classe profissional soariam alarmes de todos os lados, assim o ano acaba em julho, vêm as férias e o ciclo recomeça.

Com efeito, a diminuição da massa salarial dos professores não deverá ser motivo de preocupação nem para eles nem para a sociedade. Há décadas que têm sido constantemente acossados e continuam a desempenhar a sua missão estoicamente. Pagam as deslocações do seu bolso, ninguém lhes fornece o material de desgaste rápido e mesmo assim resistem… vá lá entender-se a razão. Por isso não será por aí que a reflexão irá, antes para o que o sistema absorveu, nos últimos anos, e não só o desqualifica como subverte o que de mais elementar existe em educação: a confiança. Não me refiro, obviamente, à confiança nas relações interpessoais dos alunos com os professores ou dos agentes entre si – essa ainda é o melhor que vai existindo. É ao que, em jeito de inovação se tem implementado de forma leviana, sem fundamento e com critérios dúbios. Ao grande público interessa apenas o visível e o que o ecrã vai mostrando, mas é no que não se vê que se subvertem as leis até que algo aparece aos olhos do senso comum como consolidado e sem alternativa. Isto está a passar-se com os exames nacionais.

Ao nosso olhar, os ditos exames que irão seriar os alunos no acesso ao ensino superior, surgem como o elemento envolto em mais rigor e sigilo do sistema educativo. Efetivamente, as provas são levadas à escola pela PSP, todo o processo interno decorre com a atribuição de números confidenciais, enfim, uma série de procedimentos para que tudo seja o mais coerente e rigoroso possível, culminando com o envio das provas para um agrupamento de exames que faz a sua distribuição, sob anonimato, para uma série de professores-corretores a quem é atribuído um número confidencial que os identifica. Até aqui há coerência, rigor e objetividade. Acontece, porém, que ultimamente, e fruto desta voragem inovadora, alguém se lembrou que os corretores têm, obrigatoriamente, de se registar numa plataforma moodle pois só desta forma poderão esclarecer as dúvidas que surgem durante a correção. O que intriga em tudo isto, é que se exija ao corretor – que nada recebe por este acréscimo de trabalho – que se identifique mediante o seu nome, identificação da escola onde exerce funções, código da prova que corrige e número de provas que lhe foram atribuídas e tudo isto numa página onde se poderá expor perante duzentos ou mais professores que poderá ou não conhecer. Ora, ao colocar uma questão perante esta plêiade poderá estar em causa não só o anonimato do corretor, mas a identificação das provas que está a ver pois face à questão poderá alguém dizer do outro lado:

“— Os meus alunos…”.

Este procedimento é ainda mais controverso, quanto, entre esses cem ou duzentos professores, possa estar um que, por razões diversas, tenha a sua identidade protegida pela justiça. Ao que parece ninguém pode recusar corrigir exames desde que tenha sido convocado e nem mesmo o facto de o IAVE ser um instituto público que, por acaso, é tutelado pelo Ministério da Educação, é fundamento para tal ou seja, o anonimato não está efetivamente garantido. Se a isto se acrescentar a advertência que a plataforma emite quando se digita um código: “Esta é uma ligação não segura…” dir-se-á que nada do que parece é pois juntando todas as peças do puzzle e com a ajuda das montras digitais também não é de todo impossível que o professor conclua a que escola pertencem as provas e, se for numa disciplina de línguas, o trabalho nem sequer chegará a ser detectivesco. E aqui a lei da proteção de dados parece ainda não ter chegado.

O melhor é mesmo continuar a dizer que o sistema é perfeito, a modernidade é uma mais-valia e os professores é que são os culpados pelas alterações climáticas, pela camada do ozono e o efeito de estufa, pois, por cá, ainda há papel para a realização das provas ao contrário do que está a acontecer na maior parte dos tribunais deste país onde, segundo o JN (on-line) há secretários judiciais a dar instruções para as reservas serem usadas apenas para situações urgentes e que não possam ser adiadas. Tudo acabará bem.

DEPOIS DELES… seremos nós

Por toda a parte ouve-se dizer que os tempos estão a mudar, as pessoas também e da educação nem se fala. Para ser sincero, desde que me recordo sempre ouvi dizer isto, sobretudo no que se refere ao tempo. Nesse campo, quis acreditar que só dali a muitos anos é que se veriam as mudanças e, quando ouvi dizer que Portugal iria passar para um clima tropical achava graça a tais previsões, sobretudo quando vinham acompanhadas com a apocalíptica frase: “Caras ao fim do mundo…”. Parece que os anos não passaram e, efetivamente, tudo mudou.

Nos dias de hoje, associa-se o conceito de “mudança” a “transformação” e este a “desenvolvimento”, jamais a “retrocesso”. Talvez a desvalorização das ciências sociais e humanas tenha conduzido a um raciocínio unidirecional, esquecendo-se que na vida só há duas certezas: o nascer e o morrer. Para o resto há sempre mais que um caminho ou, se quisermos num pensamento mais filosófico: mais do que uma via.

Da altura em que escutava: “Caras ao fim do mundo…”, recordo uma história, inúmeras vezes repetida pelos mais seniores que, já libertos dos campos, sentavam-se nas soleiras das portas, vestidos de negro, contrastando com as paredes caídas de branco. Em traços gerais, contavam eles:

“Tempos houve, em que havia um povo, onde, quando os pais estavam caras a morrer, (caras significava perto de…), quando os pais estavam caras a morrer, o filho mais velho tinha a obrigação de pegar no pai às costas e levá-lo para um cabeço onde o deixava, só, com uma manta para se cobrir.

Um dia, já o verão ia quase no fim, chegou a vez do filho de um homem, considerado o mais sábio da aldeia, também o levar para tal monte. Quando lá chegaram, o filho pousou o homem sábio no chão e ia dar-lhe a manta, cumprindo a tradição. Tranquilamente, o velho sábio, sentado no chão, levantou os olhos e disse:

- Não filho, leva a manta e guarda-a para quando o teu filho te trouxer para aqui. Como dizes, e é verdade, a mim pouco tempo me resta de vida. Já tu, nunca saberás quanto tempo terás depois de aqui chegar.

Reza a história que, com os olhos rasos de lágrimas, o filho pegou no pai, e regressaram a casa, acabando assim com a tradição de abandonar os pais no tal cabeço.”

Quando hoje tanto se discute a proteção de dados, os direitos dos animais e o direito ao próprio corpo que se baseia num princípio básico da liberdade individual, ainda não vi nas sociedades democrático-liberais a necessária sensibilidade para discutir os direitos que o sénior tem em relação ao seu projeto de vida ou à apropriação a que tem direito de ser dono e senhor do seu corpo e dos seus afetos. Que princípio ou direito pode um filho evocar para internar um pai num lar ou que legitimidade tem uma residência geriátrica de acolher um cidadão, consciente, de pleno direito, contra a sua vontade? Que legitimidade tem um filho de decidir como os seus progenitores devem viver os seus afetos ou, direi, mesmo a sua sexualidade, apenas e só porque têm setenta ou mais anos? Onde estão salvaguardados os direitos, as liberdades e as garantias destes cidadãos?

A maior contradição deste tempo passa, sobretudo, porque durante uma vida apregoa-se o amor, a partilha, o direito à liberdade, mas a mentalidade dos decisores e de quem concebe o modelo de sociedade atual, recusa aceitar que os que hoje são institucionalizados é a geração que viveu a sua juventude nos anos 60 e que lutando por esses valores abriram caminhos novos para os filhos e netos que hoje lhe negam esses direitos. Ironicamente, os adultos de hoje orgulham-se de prolongar a vida dos mais velhos dando-lhes mais conforto, melhor alimentação e melhores cuidados de saúde e é louvável. Sarcasticamente, ou nem isso, continua-se a considerar que “esta peça de roupa não lhe fica bem por causa da idade” ou que “não o(a) vamos levar para a praia connosco porque…” mas até insistimos para que participem no encontro de idosos que a autarquia organiza nos mesmos moldes que juntou as crianças no dia um de junho. E, então, dormirem os dois em cama de casal, nem pensar! - É provável que velhinha psicanálise freudiana ajude a explicar tais reações. No entanto, o tempo é que não espera, e os que hoje decidem pelos seus pais, são os que amanhã irão fazer o mesmo percurso, talvez ao empurrão ou em camisas-de-força porque serão levados contra a sua vontade.

Vendo os últimos dias de um homem nesta perspetiva, talvez seja mais fácil entender porque se quis legalizar a eutanásia: é que sempre é mais fácil por fim à vida, mesmo que de forma consciente, do que viver privados de afetos e sem ser donos do nosso destino seja pelo tempo que for. Mas cuidado porque depois deles, seremos nós…

NÃO GOSTO DO BLOCO

Ponderei seriamente dar outro título a este texto: “Até gosto do Bloco” poderia muito bem encabeça-lo e tal não feriria a minha sensibilidade nem beliscava as minhas convicções democráticas, que convivem muito bem com a diversidade desde que os outros sejam capazes de respeitar os meus valores. O B.E. enquadra-se perfeitamente nesta lógica, até porque o ar desempoeirado dos seus membros e a imagem desajustada nos Passos Perdidos fazem-me recordar tempos de juventude nos quais, o sonho maior era pastorear ovelhas recitando poemas de Caieiro, ou, mais tarde, ir para Cabo Verde em busca do paraíso perdido.

No entanto, o meu “gosto” ficar-se-á por aqui pois na procura de uma identidade ideológica do Bloco não consegui aceder a uma matriz que demostrasse efetivamente as orientações que segue, nem tão pouco se, dizendo-se de esquerda, é uma esquerda mais para a esquerda ou uma esquerda mais para a direita. Por inferência, sou levado a pensar que dá jeito a alguns dizer que é mais da esquerda-esquerda (os políticos dizem radical) porque assim a esquerda existente preserva o espaço que já ocupava, e a direita-direita dirá o mesmo pois nem de longe nem de perto quer ser maculada por ideais revolucionários ou jovens inconformados.

Perante a forma como o Bloco tem atuado, desde que se tornou suporte do governo socialista, ancoro o meu pensamento nos eruditos de outros tempos que, da experiência, extraíram máximas: “Se quiser por à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder.” – Abraham Lincoln ou, séculos antes, “Dê o poder ao homem, e descobrirá quem realmente é.” – Maquiavel. Neste caso substituir-se-ia a palavra “homem” por “partido” e o resultado será idêntico.

 Quando se voltou a falar da aplicação dos decretos saídos em 2006 e 2009 que obrigavam à limpeza dos terrenos por causa dos fogos, considerei, como tantos outros, que era uma medida excelente face aos acontecimentos do ano passado. Porém, dada a psicose vivida e ampliada pelos órgãos de comunicação, fui-me apercebendo de que autarquias e particulares foram muito além do estipulado por lei, e se antes vários hectares de terreno estavam abandonados mas com vida, agora estão definitivamente mortos. Tudo isto porque neste afã de limpezas, não só se destruíram habitats da avifauna, como se cometeram verdadeiros atentados contra a flora e exemplares protegidos ou em vias de extinção. Lá que a direita continuasse vesga até se tolera, que o partido socialista não veja, já é habitual, agora que o B.E. não ouça nem fale vai muito além do que é expectável de um partido dito de esquerda. A mesma posição foi assumida quando a questão dos aumentos aos assessores políticos veio para a praça pública, não tendo também havido qualquer tomada de posição sobre relatórios e auditorias não divulgadas, digam elas respeito a assuntos nacionais como o caso dos grandes incêndios ou a resultados das auditorias à Santa Casa da Misericórdia sejam eles favoráveis ou não ao anterior provedor.

Já em termos de políticas de educação, o pacto de silêncio mantém-se no que respeita aos programas de disciplinas nucleares seja em que nível de ensino for, os exames nacionais são unanimemente aceites e mais grave do que isso é que, se em círculos restritos já se fala que o governo se prepara para entregar de vez os cursos de dupla certificação a escolas privadas – e orçamento para o próximo ano aponta para isso – o certo é que o B.E. mantém a mesma posição silenciosa.

Por tudo isto e muito mais, sou levado a pensar que o B.E. não será verdadeiramente um partido mas sim uma agregação de vontades, com pessoas intelectualmente capazes mas em busca de uma identidade enquanto partido que não definiu, a priori, o seu espectro ideológico nem qual a missão, a visão e os valores pelos quais se pretende afirmar.

Para ser partido não basta a contestação sem ideologia, nem agarrar causas que de ideológicas pouco ou nada têm. É para isso necessário conhecer a realidade, não se deslumbrar com a proximidade do poder e, sobretudo, estar próximo dos contextos nacionais. Caso contrário, os membros do B.E. quedar-se-ão na contemplação onírica de uns instantes fugazes, sem se aperceberem que o tempo passa, e, quando caírem na realidade já terão cabelos brancos, rugas na testa e terão perdido todo o encanto porque deixaram a poeira cair-lhe nos ombros e não souberam sacudi-la a tempo.

Já agora, as questões ambientais não deverão ser ideologia e a preservação das espécies terá de ser um desígnio de todos para o nosso bem, dos que vierem e da humanidade, com a certeza de que, se cada um fizer o que lhe compete e pode no seu mundo, em breve haverá um Mundo diferente.        

Em defesa da alma

Quando em 2015 me propus colaborar regularmente com este jornal, desconhe-
cia por completo quanto tempo duraria a parceria, nem tão pouco qual o rumo das temáticas a abordar. Tive algum receio, admito, mas segui em frente. Recordo, no entanto, que o único propósito que assumi para comigo foi o de nunca escrever sobre assuntos relacionados com a igreja católica. Parece que, mais uma vez, o “nunca digas nunca”, levou a melhor e vejo-me na iminência de quebrar a promessa.
Em Semana Santa, um jornal italiano publicou uma suposta entrevista com o Papa Francisco, onde terá dito que o Inferno não existe e a alma pecadora apenas se encontra afastada da presença de Deus. Isto terá bastado para que a comunicação social fizesse eco das supostas palavras e o Vaticano viesse desmentir o La Republica e o jornalista Eugenio Scalfari dado este não usar apontamentos nem gravador nas entrevistas que realiza. Mas, mais uma vez, o foco situa-se no acessório deixando o que é fundamental para um mundo onde alguns dizem que a espiritualidade aumentou mas diminuiu a religiosidade, e eu digo que a cultura religiosa, se é que existiu alguma vez, está extinta e, porque a tradição deixou de fazer sentido, qualquer afirmação que soe a estranho se é replicada, também, com a mesma rapidez, é contestada.
Ora se a metáfora do fogo infernal se impôs ao longo de séculos e povoou o imaginário que traduziu nas mais belas expressões artísticas uma determinada visão de uma realidade transcendente, também há quem entenda que a imagem bíblica é para ser levada à letra. Esta realidade designada por sheol em hebraico, hades em grego ou infernus em latim designa nas três culturas uma mesma realidade de afastamento da Luz e de sofrimento porque a alma privada do contato com Deus não consegue, portanto, realizar-se. Por isso, sem grandes teologias ou filosofias, e com toda a humildade científica que me assiste, mesmo que o Papa Francisco tivesse feito tal afirmação não me parece que tenho colidido com os ensinamentos da doutrina católica, podendo, simplesmente, ter beliscado a memória cultural de alguns que agarrados ao passado o tomam como presente.
Mais preocupante é, quanto a mim, o facto de, no seio da igreja haver tanta contestação a tomadas de posição a Bergoglio enquanto arcebispo de Buenos Aires, e agora como Papa, chegando a haver páginas da internet, identificadas como de inspiração católica, que o apelidam de antipapa com base nas suas ações ecuménicas e nas palavras proferidas, nomeadamente, quando se refere a judeus e muçulmanos, na continuação do que preconizava o concílio Vaticano II, nos idos de 1962. Ora se nem o próprio Cristo agradou a todos e foi traído por um entre apenas um punhado de crentes, não admira que, sendo agora milhões, o seu representante na terra seja alvo de censura por parte dos que dizem crer.
Também por cá os exemplos se vão repetindo, sendo que, não atingindo a profundidade teológica dos iluminados vaticanistas, a censura fica-se mais pela perspetiva ideológica, construindo epítetos que vão desde “bispo vermelho” em alusão a D. Manuel Martins ou “frade cripto-comunista” por referência a Frei Bento Domingues, quando e porque, segundo ele, mais do que a divisão entre católicos e ateus, é necessário pensar no que se encontra entre opressores e oprimidos.   
Em abono da verdade, as maiores preocupações da igreja católica não serão os ateus, os agnósticos ou as outras religiões e seitas que vão ocupando o espaço que esta deixou, ao que parece envolta em querelas internas. Lamenta-se que quem as alimenta se tenha esquecido do que Marcos adverte: “se um reino se dividir não pode subsistir” e mais significativo do que a forma é o conteúdo. E porque tão esquecidos andamos do que é a verdadeira igreja, permita-se recordar as sábias palavras de D. António José Rafael que, com a frontalidade tão caraterística, repetidamente advertia: “a igreja é vida, e a vida ou se renova ou morre…”.
Da minha parte, prefiro sentar-me à mesa com todos, orar com a minha igreja e sentir a vida com todos os irmãos, crentes e não crentes, brancos, negros ou amarelos porque, enquanto não nos provarem para onde se vai verdadeiramente, o melhor será acreditar no Deus de nossos pais… pelo menos dá esperança.