Raúl Gomes

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LATCHO RAT!

Quem entende não lê, quem lê não entenderá, ainda mais que o título da crónica não faz parte de qualquer idioma fixado ou organizado em termos gramaticais. Construída no transcorrer dos séculos, é de todo conveniente que continue secretamente guardada por aqueles que a criaram, quais guardiães de um tesouro a conferir-lhe identidade e, tantas vezes, a livrá-los de perigos maiores. Tranquilize-se a comunidade que eu também não sei falar tal língua nem ninguém me irá ensinar… ouvi, simplesmente.
Ouvi hoje, pela vez primeira, o conceito de “racismo institucional” – expressão para a qual, confesso, nunca tinha olhado até ao momento em que o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE o usou para se referir ao modo como as escolas portuguesas se relacionam com os alunos de origem imigrante. E, se tal se pode aplicar a todos, em geral, é dada particular ênfase à situação dos afrodescendentes que entram no sistema escolar mais tarde, acumulam mais reprovações e são, maioritariamente, encaminhados para percursos, ditos, alternativos onde se incluem os cursos profissionais e as variantes que foram criadas na década passada. Esta tese é, segundo os autores, validada por outros estudos onde se evidencia que o racismo é uma componente com forte dimensão que obstaculiza a democratização do ensino.
Estudos são o que são e valem o que valem, mas é a única forma de aceder à realidade, refletir sobre ela e de a configurar de modo a que se torne perceptível à capacidade de entendimento do ser humano; na certeza, porém, de que nunca se abarcará a realidade toda e a sua complexidade. Por isso, para no estudo emergir tal constatação, foram esquecidas outras realidades similares e que, por certo, irão aparecer noutros projetos de investigação, embora possam vir a ser enquadrados na mesma realidade e debaixo do mesmo rótulo de “racismo institucional”. Sem grande margem de erro, somos levados a afirmar que qualquer minoria étnica está sujeita ao racismo e preconceito institucionais num país que, desde sempre, galgou fronteiras e foi acolhido na diáspora.
Assim, e extrapolando este estudo, levou-me a curiosidade a consultar o Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas de 2014, coordenado pela doutora Manuela Mendes para o Observatório das Comunidades Ciganas, onde se constata que, desde 1990, existiram diversos projetos para que estas comunidades fossem integradas no sistema escolar, estabelecendo uma ruptura com o passado, de forma a aumentar a escolarização. Efetivamente, africanos, ciganos e outras minorias foram chamadas à escola e gastou-se dinheiro para a implementação de programas como o Projeto de Educação Intercultural ou Programa Interministerial de Promoção do Sucesso Escolar (PIPSE), onde os agentes se sentiam realizados porque foi possível oferecer um bolo de aniversário ao menino que nem nunca tinha comemorado o dia em que nasceu. E viram que isso era bom mas não chegou para a promoção social e cultural.
O reverso ou inverso, é no entanto, apresentado no mesmo estudo de 334 páginas, quando aborda a questão das condições habitacionais dos ciganos e, por extensão, de outros grupos social e institucionalmente marginalizados: é que a este esforço do poder central para integrar minorias na escola, não corresponderam as autarquias, nem a tutela no que diz respeito às políticas de realojamento local. Nesta área, continuam a ser discriminados, seja no sector privado do mercado de habitação, seja no acesso à habitação social com base no preconceito e no estereótipo culturalmente veiculados. Por isso, concelhos houve em que nada se fez a este nível e, naqueles em que se fizeram intervenções tais não passaram de ténues apontamentos ou de realojamentos que afastaram as comunidades do acesso ao mais elementar: transportes, saúde, higiene e educação.
Por isto, não será de estranhar que as crianças ciganas ou os jovens afro não se enquadrem na escola ou cheguem a ela com roupas imundas e a tresandar a suores, quando se vem da barraca para o templo da sabedoria. Também não é de estranhar que não tragam cadernos quando a água entrou pela lona e a barraca tem mais buracos que um queijo suíço. Poderemos estar a assistir a um tempo novo, em que as autarquias reinterpretem o conceito de “políticas de proximidade” e se debrucem sobre aquilo que até hoje não quiseram ver e até ocultarem em larga medida – não aconteça que ciganos e negros ganhem consciência de que são povo e reivindiquem o que é por direito de qualquer ser humano. A miséria humana não se compadece mais com ideologias, é hora de agir.

NO PRINCÍPIO

No princípio era o Big Brother, e o Big Brother era o programa mais visto da televisão. De seguida vieram as Casas dos Segredos, as Quintas e uma série de réplicas até que o formato se esgotou. A suposta realidade tomava conta do ecrã e o espetador vibrava a cada pormenor que a ficção ia mostrando. A audiência aumentava quando o jovem provinciano dava de comer às galinhas e era alvo de chacota dos companheiros; disparava ao pontapé gratuito sobre uma concorrente e ainda subia mais às cenas de sexo comentadas em direto e quando a apresentadora anunciava o tempo que o ato demorou a consumar-se.
O cenário parecia real e as câmaras captavam o que ia acontecendo. Desde esse dia três de setembro de dois mil, salvo o erro, que, para continuar a captar o público, era necessário adensar o guião, mantendo a ideia de que tudo era realidade e improviso por forma a elevar os níveis de adrenalina e, essencialmente, de seratonina. Ao cenário chamavam “Casa” e aos pseudoatores “participantes”, pois o espetáculo já tinha sido montado quando os psicólogos estudaram os perfis, combinaram as personalidades e sabiam, de antemão, o que aquela mistura daria num espaço fechado e sem contato com o mundo exterior.
À semelhança do circo romano também aqui se exige mais espetáculo e mais ação. Lá por fora há novos formatos e a concorrência entre canais obriga à antecipação na compra dos direitos; se os reality show’s com jovens já aborreciam é necessário encontrar novos atores e um guião que continue a explorar o mais negativo do ser humano sem atender à idade ou às consequências, e o Grande Irmão criou o SuperNany! Se no formato espanhol se baixou a fasquia até à adolescência, em Portugal foi-se até à infância, não já num cenário criado mas escancarando as portas da intimidade daquilo que devendo ser um lar é, afinal, uma jaula exposta aos olhos do mundo.
A polémica que se seguiu é de todos conhecida, continuando o canal promotora somar audiências, agora com entrevistas, debates e intervenientes dos mais diversos quadrantes – incluindo o Ministério Público e altos representantes da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Como o que está em causa são juízos de valor, os debates terminaram sem vencedores nem vencidos – como convém nestas situações. Com efeito, se têm razão os que consideram que os superiores interesses da criança estão ameaçados com tal exposição e que não houve a sensatez necessária para acautelar os efeitos nestes seres em início de vida, também os que defendem a exposição destes casos na praça pública, porque eles existem, não deixam de ter razão. Ambas as facções perdem na análise quando abordam, superficialmente, a realidade que está presente no mundo ocidental e não vão ao âmago da questão: os pais perderam a batalha da educação.
De momento, não interessará muito abordar as causas nem olhar para os nichos familiares onde, ainda, parece existir harmonia e adultos que, balizados por valores religiosos ou da tradição genealógica, conseguem desempenhar o seu papel, porque acredito que, mesmo esses, têm as suas dúvidas enquanto educadores. A única é a de que não se educa por osmose nem por imitação e muito menos por catálogos de Nanys. Educar nos dia de hoje é fazer um número de trapézio sem ensaio, sem rede e sem possibilidade de voltar atrás.
Fala-se da formação ao longo da vida, mas escasseiam os momentos em que a educação parental está presente no rol das intenções dos responsáveis pela área. Na deliberação daqueles pais não consigo vislumbrar um laivo de exibicionismo mas um grito desesperado de quem expõe as misérias por falta de outros meios. A medicina familiar trata do corpo mas esquece a alma, as igrejas falam dos céus e esquecem-se da terra, e da escola é melhor não falar, porque tal como os pais, anda à procura do seu lugar no mundo. Eduardo Sá, o psicólogo da moda, diz que os bons filhos são os que nos trazem problemas, eu, limito-me a dizer que os filhos vêm ao mundo para educar os pais. No meio desta confusão, e emergindo do meu otimismo acredito que a única coisa que nos vais ajudar são os afetos verdadeiros que devem existir entre pais e filhos, e esses vão desparecendo.        

À VOLTA DO MUNDO

Há as “palavras-chave” e há os “chavões”. O início do ano propicia-se ao uso de umas e de outras. O decurso do tempo vai delapidando a brutalidade das palavras, tornando as palavras-chave mais consistentes, ao mesmo tempo que os chavões são remetidos para o silêncio, sendo retirados do baú discursivo sempre que os ciclos se repetem e, à falta do melhor, lança-se mão do que já existe, seja a “Páscoa feliz”, o “Feliz aniversário” ou as “Boas férias” com que se sonha o ano inteiro.
Dois mil e dezoito começou a afastar-se dos “clichés” favorecido pelas novas tecnologias que oferecendo “emojis” e mensagens cintilantes, subtraem a criatividade e geram discursos impessoais em troca do grafismo atraente e da redundância da mensagem, chegando-se ao cúmulo desta incluir um texto onde pede para ser partilhada. Não é por isso de estranhar que a mesma pessoa receba as mesmas felicitações duas, três ou mais vezes conforme o número de amigos e os gostos sejam semelhantes. Conclui-se por isso que, a este nível, tudo se mantém, o que muda é apenas a forma como chega o conteúdo.
Às imagens dos fogos-de-artifício sucedeu uma outra tirada na mesma altura e no mesmo lugar, no exato momento em que os foguetes iluminavam os céus e as trevas cobriam a terra. Era meia noite nas areias de Copacabana. Lucas Landau, fotógrafo a trabalhar para a agência Reuters, captou através da sua objetiva a imagem de um menino negro, de nove anos, sozinho, a assistir ao fogo-de-artifício enquanto, ao fundo, uma multidão vestida de branco se abraça e comemora a chegada do novo ano. Deve ter sido a fotografia que mais comentários suscitou querendo, uns, ver nela a metáfora da pobreza e do racismo que grassa em Terras de Vera Cruz, onde quinhentos anos de convivência inter-racial e quase duzentos do grito do Ipiranga não conseguiram por fim a este fenómeno. Outros, embora menos, viram poesia naquele abandono, limitando a análise a apenas uma criança deslumbrada, numa noite de verão, na praia de Copacabana a assistir à passagem de ano, como apenas as crianças conseguem vê-la. Por mim, alinharia na segunda interpretação envolta numa estética contemporânea onde os contrastes convergem numa tela ímpar. Infelizmente, há muito tempo, ensinaram-me a ver para lá do evidente, “do outro lado do espelho” – como me diziam, e por esse prisma vejo mesmo solidão, abandono e fome e onde alguém vê uma criança “encantada com o fogo-de-artifício” eu vejo um olhar triste, de alguém com fome e frio e sem ninguém para o amparar.
Mais ao lado, somos presenteados com King Jong-Un e Donald Trump a travar-se de razões sobre quem tem o botão maior, como se nesta situação fosse relevante o tamanho. Os contornos desta novela picaresca deveriam servir para deixar no ano velho o ar sisudo que afugentou o sorriso dos nossos rostos, sobretudo, se a estes dois “botões” acrescentássemos o “botãozinho” do extraterrestre imortalizado na voz de Amália. Carlos Paião, o compositor, atribuiu a esse pequeno comando a capacidade de o E.T. a falar o que, em abono da verdade, serve os mesmos fins no que respeita aos dois anteriores protagonistas. Contudo, neste caso, mais do que colocá-los a falar, serve para outros falarem deles o que, na esfera política é sempre conveniente. Agora, escolher o dia em que o mundo teima em comemorar o Dia Mundial da Paz para colocar na agenda a eminência de uma guerra nuclear é de tão mau-gosto que apaga qualquer esperança num ano melhor, em que as convergências dos líderes mundiais pudessem servir para superar as misérias e os conflitos que grassam há mais ou menos tempo, ceifando vidas, adiando projetos e arruinando sociedades.
Por isto, lá teremos de voltar aos chavões que circulam por aí e nem sempre com a devida vénia aos seus autores: “Se queres mudar o mundo, começa por mudar-te a ti mesmo.” – Mahatma Gandhi. De facto, perante a voragem do tempo e a irreflexão dos loucos, a cada um resta apenas olhar para si e reinventar-se sem perder o essencial.

Roubaram-lhe o coração

“Roubar o coração” ou “roubar a alma” eram expressões típicas do meu povo que por gerações as dizia e todos sabiam o significado independentemente do contexto. Mais recente é a mania das “palavras sazonais”, aquelas que aparecem fulgurantes à boleia da comunicação social, fazem uma estação e depois desaparecem. Ainda há poucos meses dava gosto ouvir os nossos políticos aderir à moda e abusar da palavra “narrativa” qual adorno do estilo discursivo, para, de súbito, dar lugar ao “foco” e às múltiplas derivações: “focagem”; “focar”...
A aproximação do final do ano pode ser um factor condicionante até porque todas as atenções estão concentradas, digo, focadas, no orçamento do próximo ano. Este documento mais do que orientador, define as linhas de atuação do governo para os próximos trezentos e sessenta e cinco dias e condicionará a vida de cada um, em maior ou menor grau, conforme o olho dos eleitos recaiu sobre um ou outro prisma da vida profissional, económica e social de cada grupo, tendo como referência a necessidade de gerar receitas para fazer face às despesas. Por mais que se diga, e embora as promessas vão sempre noutro sentido, é sobre a classe média que todos os anos recai a parte mais onerosa da questão pois aí, seja de forma direta ou indireta, é que todos os governos têm vindo a coletar a maior fasquia: a taxa das renováveis não avançou, o Bloco ergueu a voz, mas medindo as consequências votou a favor. Os argumentos eram válidos, e mais uma vez A. Costa, hábil político, conseguiu fazer valer as suas ideias e aprovar um orçamento que não gerando consensos corre o risco de deixar a todos quantos o aprovaram um certo amargo de boca.
Sendo um orçamento de consensos, cada uma das partes teve de abdicar de princípios fundamentais da sua matriz que possibilitaram a elaboração de um documento sobre o qual, findo o período de vigência, se poderá dizer que foi um mal menor embora, e à partida, se fique com a sensação de que, quem mais teve de abdicar, foi efetivamente o Partido Socialista. Só assim se entende que os grandes investimentos e obras públicas que caraterizaram outros orçamentos deste partido, sejam agora uma ténue amostra e desiluda quem aguardava melhores infraestruturas rodoviárias onde ainda não existem, ou mais investimento na área da saúde numa perspetiva descentralizadora. A educação, tão propalada em governos anteriores, esmorece e nem o descongelamento das carreiras foi capaz de cativar a classe que se verga ao peso das burocracias e do agora inventado “Plano de Ação Estratégico” dos agrupamentos. 
Se os chavões continuam a estar presentes, do tipo: “dinamizar a competitividade, o crescimento económico e a coesão social” falta-lhe o brilho de outrora e, sobretudo, a correspondente concretização que é do que o povo necessita. As novidades de última hora, como o Público, intitula, ficam-se pela satisfação das pretensões menores dos parceiros: o fim do corte de dez por cento do subsídio de desemprego, sendo que se no dia dezassete de novembro, sexta-feira, o Bloco dava a medida como certa, já antes o PCP tinha garantido ter acordo com o governo sobre esta medida. O congelamento do valor máximo da propina de licenciatura é outra medida inscrita à última hora sendo uma proposta já repetida nos dois últimos orçamentos. A medida que desperta mais curiosidade é, sem dúvida, a que irá permitir à CP a aquisição e reparação de material circulante que a nós transmontanos tanto nos diz e, no meu caso particular, faz-me pensar no tempo de Garrett e nas suas viagens vá-se lá saber porquê.
O Orçamento 2018 não sendo uma manta de retalhos, não será também uma colcha que poderá dar algum aconchego é, sobretudo, o possível resultante de convergências ideológicas que, díspares, teimam em manter-se unidas, sob pena de se virem a aniquilar sem brilho nem fulgor porque o coração mais forte já não bate porque, povo, de bom grado dispensaríamos os cêntimos a favor de um Estado que nos garantisse melhor saúde, cultura e educação sem para isso termos de pagar mais.

POR FAVOR, NÃO COZINHE O MEU GATO

Confesso: não li nem investiguei sobre o tema. Tal, porém, não me confere o direito de usar o argumentum ad ignoratiam, na medida em que existem pré-requisitos e vivências potencialmente capazes de me conduzirem à reflexão. Formularia votos para que todos iniciassem a discussão a partir dos mesmos princípios que eu, o que, em última análise, me converteria num déspota dentro de uma concepção racionalista o que tornaria o meu pensamento ainda mais absurdo. Assim, convictamente defensor dos valores democráticos, jamais defenderei o pensamento único nem, tão pouco, resistirei a uma boa argumentação que me convença do contrário do que afirmo.
Assumir a ignorância nos tempos que correm, parece-me ser um ato digno. Legislar sem refletir e sem explicar os princípios e os fundamentos da lei raia o indecoroso. Foi o que, no meu ponto de vista aconteceu no dia treze de outubro na Assembleia da República. Compreende-se que, para nós portugueses, esse dia já tenha um significado especial e que, enfim, amoleça ainda mais os corações de manteiga que palpitam pelos corredores de S. Bento. Mas daí a votar uma lei que deixa nas mãos dos proprietários dos restaurantes a decisão de cães, gatos e outra bicharada poderem entrar nos espaços, parece-me ir além do espectável sobretudo e quando, apenas o PSD não votou a favor ou, pelo menos, ter-se-á abstido.
Nada tenho contra cães e gatos. Pouco dado a falar da minha vida pessoal, não me coíbo de dizer que aprendi a andar com um cão e, desde sempre, houve animais destes em minha casa. Mas, por mais que queira, não consigo ver-me sentado à mesa e um pelo volátil aterrar no molho da deliciosa francesinha. Se, por desleixo, na travessa vai um cabelo lustroso da jovem empregada, seria censurado se, de dedo em riste, não apontasse a incúria; ainda não sei como me comportar se tal for pelo de cão… talvez seja considerado um bruto, um bárbaro ou um retrógrado assentimental se rejeitar a comida. 
Suponha-se agora, que uma criança almoça calmamente com a família e está a meio da refeição, num desses restaurantes onde é permitida a entrada dos animais de estimação (diferente dos cães de assistência já autorizados por lei de 2015). Entra um cliente com um gato e a criança começa a ter reações estranhas porque é alérgica ao pelo do bicho. Quem tem de sair? - A criança porque o bicho cumpre a lei. Como ouvi que há projetos de lei que nem sequer salvaguardam o incómodo que tais alimárias possam causar e, poderão circular livremente pela sala, a qualquer momento pode o bichano entrar na cozinha pelo que, pelo menos, deverá o dono o animal advertir o cozinheiro para que não o confunda com lebre… ainda nasci no tempo em que o gato luzidio da professora era servido em lauto banquete da rapaziada, numa fria noite de inverno.
Se conselhos posso dar, é que os donos dos restaurantes adiram imediatamente à lei porque se o cliente pode levar o animal que quiser, também eles podem ter no seu estabelecimento o bicharoco que melhor o servir. No meio de tudo isto, quem não terá a vida facilitada são os agentes da ASAE, a menos que se dê mais um arranjinho à lei. Estou a imaginá-los com aquele ar sisudo, a entrar na cozinha, e a preparar-se para passar a multa porque viu umas baratas a esconder-se por detrás da fritadeira. Face ao exposto, sempre se pode alegar que são os animais de estimação.     
Melhor é não falar em ratos porque estes levar-nos-iam a outro tipo de elucubrações. Só não entendo porque, passado um mês, os dejetos de ratos encontrados no Pólo 2 do agrupamento de escolas de Macedo de Cavaleiros serviram para abrir o noticiário das vinte, numa rádio nacional, quando se num sítio se alimenta o corpo, no outro alimenta-se o espírito.  

(IN)DIGNIDADE

Cinco de outubro é também o Dia Mundial do Professor. Durante séculos, os dias assinalados no calendário serviam para, em clima festivo, venerar a divindade e, em alegria, a comunidade esquecer-se dos trabalhos rotineiros. Já o século XX foi pródigo na criação de dias especiais não para que os cidadãos festejassem, mas para que tomassem consciência dos problemas e os transformassem em causas. Não será por acaso que o Dia Mundial do Professor foi criado pela UNESCO já no final do século (1994) para que as sociedades ganhassem consciência da importância desta profissão no desenvolvimento das sociedades.
No que a Portugal se refere, bastou uma meia dúzia de anos para que a imagem do professor fosse levada par as ruas da amargura: foram as passagens administrativas, os saneamentos, o desrespeito pela dignidade do professor enquanto pessoa que rapidamente o destronaram do pedestal. Se, antes de 74, era obrigatório qualquer um levantar-se à sua passagem e as crianças pedirem a bênção – o que seria excessivo, o sarcasmo que se seguiu em nada dignificava os intervenientes. Os anos passaram, e cada vez faz mais sentido que o dia cinco de outubro continue a ser o Dia do Professor: a populaça arvora-se o direito de mandar nas escolas, nos professores e impor regras; as sucessivas tutelas, numa onda de populismo balofo, acompanham-na e reforçam esse sentimento com políticas discriminatórias e intervenções pouco abonatórias. Não valerá a pena referir factos passados, basta olhar para o presente.
Ao congelamento das carreiras há mais de dez anos, ao imbróglio que têm sido os últimos concursos juntam-se agora as declarações da Secretária de Estado da Educação que, embora reconhecendo terem errado, deixa para o próximo ano a resolução de um problema criado pelo próprio ministério, sendo que a fundamentação do erro é ainda mais sui generis, dado considerar que os professores do quadro, já que recebem um salário completo, têm de ter um horário completo. Esqueceu-se a Secretária de Estado que os professores do quadro de que dispõe, são, na sua maioria, profissionais com mais de cinquenta anos, e que os horários completos que hoje lhe atribuem correspondem aos horários que há duas décadas eram dados aos professores em início de carreira. Como se tal não bastasse, a invenção da “componente não letiva” é mais um embuste usado para haver trabalho direto com alunos, seja por imposição das direções, seja porque a moda da “preparação para os exames” já chegou a todos os cantos e é preciso agradar.
Também o descongelamento prometido pelo governo para 2018, ao que parece, vai deixar de fora os professores porque o tempo de serviço prestado desde 2011 não irá ser contado para efeitos de progressão, o que, na prática, se traduz em mais uma desvalorização da carreira à luz da lei evocada. No entanto, e em abono da verdade, o artigo 38º da lei do Orçamento de Estado não poderá ser aplicado a uma classe onde  a progressão  não depende apenas do decurso de determinado período de prestação de serviço, na medida em que qualquer professor tem de apresentar um relatório anual da sua atividade, frequentar ações de formação, ter aulas assistidas e ser avaliado por uma comissão eleita entre os membros do Conselho Pedagógico.
A dignidade começa no reconhecimento, embora o mais relevante seja o modo como cada professor age na sua profissão. No Japão, o professor é o único que não tem de se curvar diante do imperador, em Portugal obrigam-no a curvar-se diante de tudo.

Meia página

Não é a voz do diretor a pedir que se respeitem os limites da mancha gráfica, também nada tem a ver com aquela característica que dizem tipicamente portuguesa de encontrar no lado negativo da vida uma zona de conforto; trata-se de constatar que, quando há dois anos, o eleitor depositou o seu voto queria, mais do que uma mudança na governação, virar uma página da história recente do país. Decorridos dois anos, até o cidadão mais distraído verifica que nem meia se virou. E tudo isto seria menos gravoso se se resumisse a mera demagogia; no entanto, tal ilação decorre do que o cidadão comum vive, observa e sente pelo que, contra tais evidências resta formular votos de que, no que resta da legislatura, se inverta o ciclo que nada aportou de bom. Não admira pois que os índices de popularidade tenham caído tanto no último mês.     
Num regime democrático consolidado, pretende-se que a dinâmica social se alicerce na saúde, na educação e na economia. Sendo a ordem dos factores arbitrária, há pois governos que privilegiam mais um sector do que outro, sendo que persiste a ideia de que, tendencialmente, a educação e a saúde saem a ganhar com governos de esquerda, enquanto a economia, numa perspetiva liberal, assenta à governação da direita. A ser verdade que a economia já recuperou e que o crescimento económico está a uma velocidade de cruzeiro, era suposto que, neste momento, quer na saúde quer na educação todos sentíssemos melhorias consideráveis. Deixemos de parte a educação, pois ainda a procissão vai no adro, e, que me recorde, será a primeira vez que os professores irão avançar com providências cautelares para travar o concurso de mobilidade interna.
Na saúde, nada sopra de feição. Se ainda há pouco tempo era notícia o aumento da dívida do sector hospitalar, sendo que há meio ano a dívida, só ao sector farmacêutico, rondaria os 844,6 milhões de euros, o certo é que deixaram de se ouvir as reivindicações das administrações hospitalares, não sendo este silêncio acompanhado pelo sentimento dos utentes do serviço nacional de saúde que vivem o drama da negação sistemática dos cuidados básicos. Porque de realidade se trata vamos aos factos.
1.Utente do SNS, 78 anos, queda no banho, sem traumatismos aparentes. Encaminhada para as urgências da unidade local de saúde, realizam-lhe uma TAC à cabeça. Regressa ao domicílio com dores no cóccix; volta ao hospital; administram-lhe analgésicos e só por insistência de familiares é que, passados mais de trinta dias, é submetida a um exame que deteta lesões ósseas. Mera negligência ou indicações para reduzir custos nos exames que o médico pode prescrever?  
2.Sala de cirurgia obstétrica encerrada no hospital de S. João por causa de uma praga de piolhos. Fez manchete. A notícia culpa os pombos. Nós, utentes, responsabilizamos a falta de recursos, do mesmo modo que, na ignorância do senso comum, se pode afirmar que a proliferação de bactérias em meio hospitalar resulta da escassez de profissionais que possam realizar um trabalho com qualidade e possam prevenir situações gravíssimas para a saúde pública. Estima-se que em Portugal morram doze pessoas por dia vítimas desta praga.   
3.Dia vinte e um de agosto, o paradigma do que acontece por terras de Trás-Os-Montes: dia de festa e noite de arraial em Bragança, capital de distrito. No serviço de urgências dois médicos de clinica geral, e três ou quatro enfermeiros à beira do esgotamento. Uma urgência a abarrotar com casos graves que foram chegando e a impossibilidade de reforço das equipas por falta de recursos. Gritam os seguranças, berram os médicos e correm os enfermeiros.             
É do conhecimento geral que o SNS sofre, desde há muito, de um subfinanciamento que o coloca longe dos patamares de excelência que seriam desejáveis. Contudo, sendo uma tarefa fundamental do estado promover o bem-estar e a qualidade de vida dos cidadãos, espera-se menos propaganda, mais democracia e que na doença haja, pelo menos, o conforto de um tratamento adequado. Bem queríamos ver a página virada, mas nem sequer meia se virou e, cada vez mais, há a sensação de que o conteúdo continua igual, o que mudou foi a forma de se fazer política. 

Cronicando - Em setembro é tarde demais

Conselhos avisados devem ser tidos em conta. Num texto publicado na revista VISÃO de seis de julho, Rentes de Carvalho plasma um aviso que lhe fora dirigido e peço licença para transcrever: “Bem me avisaram: se era meu intento escrever sobre Trás-Os-Montes, levasse em conta que o caminho seguro seria não me desviar dos trilhos, dos carreiros e atalhos de cabras que gente de nome tinha palmilhado”. Efetivamente este é o modo mais confortável de fazer caminho. Com toda a certeza que o autor não estaria a pensar na maré eleitoral que se avizinha nem nos que, por terras de Trás-Os-Montes, são notas dissonantes e assumiram como ideário o lema de D. António Ferreira Gomes, em tempos de feroz ditadura: “De joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens.”; mas que no seu jeito de escrita acutilante, Rentes de Carvalho faz recomendações com sentido, sem dúvida que faz.  

O artigo centra-se na ideia de que esta região se acomodou a uma forma de estar que a impede de se queixar e a aceita ser discriminada perante o fausto de uma capital que a espezinha e a esquece. É de facto esta a realidade, mais revoltante ainda, quando, se quiséssemos pedir contas aos eleitos pela região sobre o que fizeram em defesa desta terra enquanto permanecem na Casa da Democracia, nos surpreenderíamos com as suas parcas intervenções e as reduzidas ações em prol dos que dizem defender. Tempos houve em que, esporadicamente, até as rádios locais faziam ecos de uma ou outra intervenção em defesa da terra transmontana; nos tempos que correm, os ventos da Europa trazem o esquecimento do torrão.

Silêncio, pacatez, acomodação, seguidismo podem ser atributos de um povo que cansado de lutar se resigna à sua condição. Até ao século XVII não houve guerra a sério em que os transmontanos não tivessem entrado, dois séculos depois, eram apenas um punhado de valentes, agora a guerra é outra mas ninguém ousa combater o bom combate. Há ainda os políticos de balcão que, servindo-se dos meios de que dispõem, parece quererem elaborar o programa eleitoral dos candidatos. É uma maçadora tentação. Em maré de autárquicas, e ao jeito desses políticos, se algo poderia acrescentar seria o respeito dos candidatos por três conceitos que tão arredados têm andado da concepção programática: Inovar, Integrar, Modernizar.

Inovar no sentido de ser capaz de apresentar projetos diferentes para uma região que continua imersa na ideia de que é periferia porque tem como ponto de referência Lisboa, quando deve olhar para a sua proximidade da Europa. Quem vier a ser eleito tem atrás de si um legado de gerações. Todavia, os séculos de História não podem ser grilhões para que se ouse e se lancem desafios em áreas que economicamente viáveis permitam potenciar o que já existe e trazer novidade em articulação com as escolas superiores da região.

Integrar. Provavelmente o conceito mais desafiador e mais difícil de concretizar porque ainda pensamos na ideia do uno quando na verdade nunca o fomos. Cresci a ouvir falar do “cigano” e do “aldeano”. Séculos antes acrescentava-se à coabitação o Evangelho e a Torah. Receio bem que, neste momento, se tenha apagado este percurso e pese embora cheguem cada vez mais nacionalidades e religiões a Trás-Os-Montes não me parece que se estejam a integrar devidamente. Veja-se por exemplo, que Bragança não tem ainda um Centro Local de Apoio à Integração de Imigrantes, quando só num agrupamento de escolas foram assinaladas cerca de vinte nacionalidades no curso de português para maiores de dezoito anos.

Modernizar em todas as áreas sobretudo na económica, cultural e social. Modernizar na agricultura, na indústria ou na área tecnológica afiguram-se como caminhos seguros para um futuro a curto prazo, devendo, por isso, dar-se os primeiros passos de forma coordenada, permitindo à iniciativa privada que também faça o seu percurso. Já em termos culturais, encontram-se municípios que começaram a desvendar novas sendas que lhe granjeia reconhecimento e dividendos. O Freixo Festival Internacional de Literatura realizado há mais de um mês, ainda recentemente foi comentado no Programa Hotel Babilónia da Antena 1 associado à uma referência à praia da Congida e às excelentes condições que oferece. Gastronomia e feiras de produtos podem ser entendidas como cultura, mas se já existe um ou dois eventos de referência na região na área da literatura e do teatro porque não diversificar e multiplicar as ofertas para um público igualmente diversificado? 

Os dias que correm são de regeneração e essa consegue-se com boas lideranças e atos de cidadania ativa; caso contrários poderá aplicar-se aos que se orgulham de viver para cá do Marão, aquilo que José Eduardo Agualusa diz sobre quem vive em Angola: “Muitas pessoas para sobreviver apuram a cegueira, por um lado, e a invisibilidade por outro. Como aquelas borboletas que para sobreviverem nas novas urbes industriais perderam a cor e se tornaram cinzentas. Dói ver, então ficamos cegos. É perigoso que nos vejam, que percebam a nossa singularidade, então confundimo-nos com as paredes.”(in Somos Livros n.º16; Bertrand). Pensemos em agosto porque em setembro já é tarde demais.

Onde estão os planos?

Era com esta frase que os inspetores dos anos oitenta se faziam anunciar nas escolas do primeiro ciclo, aterrorizando professores que se iam adaptando a um outro método de ensinar e fazer pedagogia. Os alunos já estão em férias, os professores continuam nas escolas e não é sobre tais planos que se irá refletir, pese embora, o campo da educação esteja minado por casos que colocam em causa a credibilidade da equipa ministerial. Não bastava a fuga de informação do exame de português, vem ainda a Sociedade Portuguesa de Matemática afirmar que há um erro no de matemática e, sem fonte, mas com constatação, a impressa informa que há diretores a pressionar os Conselhos de Turma para que passem os alunos com cinco ou mais negativas. O gabinete do ministro nega; a imprensa reitera; e a realidade confirma: sem sucesso não há crédito; sem crédito não há financiamento e o conceito empresarial chega à escola pública tão ou mais sub-repticiamente do que a municipalização dos estabelecimentos escolares. Certo e sabido é que a educação deixou de ser prioridade socialista, as expectativas defraudadas e cada vez mais o espectro político e a identidade ideológica se vai esbatendo para mal dos cidadãos.

Os planos que nos preocupam são outros. Todos os anos, por esta altura, ouvimos falar do ordenamento do território como uma necessidade imperiosa para por cobro a tantos hectares queimados e a tantas vidas que já neste ano se perderam. Com tantos organismos envolvidos, e com a fé que nos carateriza, devemos acreditar que muitos planos já estão concebidos, bens e populações salvaguardados. Tudo estará elaborado, mas tudo está no segredo dos deuses porque esta é a matriz com que as instituições da nossa democracia estão habituadas a trabalhar. “— Quando ocorrer um fenómeno destes, todos os agentes sabem o que devem fazer. Está tudo coordenado e devidamente planificado” – com esta ou frases semelhantes afagam-nos o ânimo e os dias vão passando. Já assim não é quando, efetivamente, as coisas acontecem, as populações estão isoladas e sem planos de contingência ou de ordenamento capazes de lhe salvar as vidas porque não estão efetivamente elaborados, há um total desconhecimento dos mesmos e em momentos de catástrofe não há ninguém que seja capaz de, calmamente, se debruçar sobre os rabiscos e as linhas de evacuação ou tenha paciência para aguardar que o socorro chegue quando estradas estão cortadas e do céu não vem ajuda.

Não sendo saudosista, mas correndo o risco de ser apelidado de retrógrado, quer parecer-me que se a classe política conhecesse um pouco mais da história contemporânea, e os organismos responsáveis pela prevenção e combate a incêndios assumissem verdadeiramente a dimensão pública da sua missão, bastaria retomar aquilo que foram as campanhas de dinamização cultural e ação cívica dos anos setenta promover, com outras metodologias é certo, as necessárias ações de sensibilização e de promoção dos valores ecológicos e ambientais, neste caso, junto das populações que, resistindo ainda, ocupam os recônditos lugares deste Portugal profundo. Comparado com a eternidade, o tempo que medeia entre o momento em que os helicópteros paravam nos adros das igrejas e o agora é nada; evoluíram as técnicas de comunicação e de divulgação da informação, mas regrediram os agentes e os protagonistas no terreno. Antes, criava-se, decidia-se e executava-se; ia-se às aldeias, às vilas à rua e ao bairro e intervinha-se. Hoje, formula-se em Lisboa, aplica-se no gabinete e avalia-se entre quatro paredes. E a diferença fundamental é esta: já não se sabe vestir a camisola por causas públicas.

OUTRA VEZ NÃO!

Na verdade, começa a fazer sentido pensar-se que os acontecimentos têm a importância que se lhe pretende dar, podendo, em alguns casos, deduzir-se que, mais do que o seu impacto na vida das pessoas e, consequentemente, das sociedades é a relevância atribuída que determina a dimensão do mesmo. Provavelmente, nem sempre foi assim. Tempos terão havido em que uma calamidade era mesmo calamidade porque vitimava milhares de pessoas ou uma guerra era mesmo uma guerra porque semeava o caos, destruía cidades e matava pessoas. Nos dias de hoje, continua a morrer-se, a haver catástrofes mas, ou são notícia de horário nobre ou nem sequer têm força capaz para mobilizar quem mais próximo se encontra dos factos.

O maior paradoxo da comunicação nos tempos que correm poderá ser precisamente a valorização que é feita da mesma, e, simultaneamente, as barreiras criadas aos princípios fundamentais, sobretudo à coerência do conteúdo e ao enfoque da mensagem. Num determinado nível dir-se-ia que é desta violação que nascem as “fofocas”; como seres limitados que somos, e porque não se pode abarcar o todo, a mente humana prega partidas que levam a comunicar apenas o que de mais prazeroso se pode apresentar ao entendimento do outro. O paradoxo adquire particular relevância porque, estando numa era de comunicação, e estando convencidos de que toda a sociedade é comunicacionalmente capaz, o cidadão é levado a aceitar como verdade o que não passa de um ligeiro apontamento do conceito, sobretudo quando se depara com espaços onde o critério de clareza e objetividade devem estar presentes: os serviços noticiosos. Em tais espaços informativos, cada vez mais se recorre aos artifícios linguísticos sem ficar claro se é para embelezar o discurso ou para escamotear a realidade. Realidade essa que, independentemente dos tons com que a pintam, continua a ser isso mesmo – realidade. Num noticiário curto, ninguém pode esperar grandes reportagens, porque se assim fosse em vez de notícias haveria outra coisa. Espera-se, isso sim, informação relevante e de interesse para o leitor/ ouvinte.

Pouco pode interessar à região transmontana os recentes acontecimentos que se têm vivido na Venezuela; transmontanos a residir nesse país serão uma minoria. No entanto, já das Beiras há comunidades significativas; seja em Caracas, seja noutros estados como Carabobo ou em Portuguesa com a capital em Guanare onde madeirenses são maioritários, e só pelo nome se fica a saber da importância dos portugueses nessa região.

Em abril, a conselheira das comunidades portuguesas nesse país, alertava na reunião do Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas para a gravidade da situação: “Estamos a passar uma situação crítica de desabastecimento, tanto a nível de medicamentos como alimentar, e a insegurança que tem avançado dia após dia. Agora, as ruas estão incendiadas, dos dois lados, o que ainda é pior”. Falou ainda da fuga dos jovens e da expropriação de que os portugueses são alvo no sector da panificação e do comércio em geral. Disto nem ecos na imprensa televisiva nem na escrita. Mais recentemente, já o Público noticiava que a fuga de portugueses da Venezuela para a Madeira fizera aumentar as despesas de saúde em meio milhão de euros no erário da região autónoma. Os que chegam trazem uma ou duas malas, projetos de vida desfeitos e incertezas quanto ao futuro. Os pedidos para habitação social, rendimento social de inserção e emergência alimentar mais que duplicaram, tendo já sido gastos meio milhão de euros em medicamentos, desde janeiro.

Na Venezuela estarão a viver meio milhão de portugueses, sendo trezentos mil da região madeirense. A crise social e política, segundo os analistas, tende a agravar-se não só porque a tensão entre as partes não dá sinais de diminuir mas também porque há líderes da oposição presos, as forças militarizadas continuam a matar e, a única organização interna, a igreja católica, que poderia mediar o conflito foi afastada pelo governo de Nicolás Maduro. Perante isto, o cenário não poderá ser mais catastrófico.

Com as devidas distâncias, tal panorama traz à lembrança dos mais antigos os anos de setenta e quatro e seguintes, em cidadãos nacionais espoliados do ultramar faziam filas para receber alimentos e cobertores nas capitais de distrito e dormiam em palheiros e casas de terra batida um pouco por todo o país.  Ninguém quererá que este quadro se repita, até porque se deve aprender com os erros e ainda há tempo para preparar planos de contingência que vão para além da mera diplomacia ou da possível carreira aérea, Compete ao governo avaliar realisticamente a situação e planear a resposta adequada, é direito dos cidadãos serem devidamente informados do que realmente se passa e no mês em que se celebram as comunidades portuguesas, saibamos acolher quem teve de regressar à pátria na incerteza do dia seguinte.