Raúl Gomes

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Efeitos colaterais

O último mês foi pródigo em factos sensíveis para a opinião pública. Todos eles saltaram para a primeira página dos jornais, sendo que mais uma vez ficou provada a capacidade de Brecht em compreender a psicologia dos homens e, sobretudo, a necessidade de existir um efeito de alienação ou distanciamento en-

tre quem observa e o observado.

Muito se falou do caso Giovanni; teve ecos na imprensa internacional e aclaradas as pontas soltas, restam apenas as ideias feitas e os estereótipos que, fixados em texto, irão perdurar indiferentes aos afectos da família ou de quem com ele privou. De tal modo assim é que, passado um mês, uma interveniente no programa Prós e Contras e à falta de melhor argumento trouxe o assunto à colação rotulando-o de “crime racista”, quando, entidades responsáveis, de diversos quadrantes, já descartaram esta tese reiteradas vezes. Depois da espuma dos dias acalmar e como o mundo parece ser binário, a atenção focou-se nos alegados homicidas que, em consequência das redes sociais, imediatamente foram expostos e a sua genealogia escrutinada até onde o senso comum entendeu ir. Dissecadas as páginas do facebook e afins concluiu-se que, afinal, os alegados criminosos não são monstros vindos de outro planeta, nem bárbaros que invadiram a cidade pela calada da noite, mas são jovens de famílias com quem se cruza e socializa frequentemente.

Perante isto, e porque a consciência coletiva assim o exige, não havendo já a necessidade de encontrar os responsáveis, procuraram-se as causas. Porque jovens, alguns deles ainda há pouco nos bancos da escola, foi sobre esta que recaíram, em primeiro lugar, as responsabilidades. Também aqui o dedo acusador cristaliza as frases feitas, questionando o papel da escola de hoje em dia e os milhões que se gastam para formar quem por ela passa e comete tais atrocidades. É um facto que à escola se lhe retirou a missão de formar cidadãos socialmente comprometidos. As panaceias aplicadas desde os anos 80 sob a designação de projetos, conteúdos transversais e afins mais não são do que isso mesmo; não só porque a ideia de escola enquanto transmissora de saberes caiu por terra, como os próprios alunos e as suas famílias vêm nesta quase e exclusivamente uma mera entidade certificadora de saberes académicos. Também não se pode exigir que a sociedade reconheça legitimidade aos agentes educativos quando os sucessivos governos os vão achicanando na praça pública, chegando-se a proferir: “Perdi os professores mas ganhei os pais e a população.” Aos que acusam a escola, permita-se, pois contestar que se até com a escola se cometem estes atos, como seria se não fosse ela…

Outros responsabilizam as forças de segurança já que, sendo um grupo conhecido na noite, nada se fez até que se atingiu um ponto de não retorno. Não se contesta que para os agentes da província seja preferível colocar radares ou chatear quem estaciona na via pública à espera que um sénior entre depois de ter ido cortar o cabelo. Contudo, são sobejamente conhecidos os casos em que a polícia atua e, por força de uma lei que mais parece proteger prevaricadores, os criminosos são ilibados e os que zelam pela ordem condenados.

Os mais interventivos não poupam a autarquia, o instituto politécnico e a própria igreja – sendo a ordem dos factores arbitrária. A falta de uma política de integração da comunidade estrangeira, a ausência de um centro local de acolhimento ao Imigrante (CLAI) ou a pouca atenção dada ao novo tecido social da cidade são razões apontadas e que colhem se devidamente exploradas. Lamenta-se, no entanto, que se assaquem responsabilidades institucionais e não haja quem assuma que falhou individualmente sobretudo e porque, se um histórico de atos de violência acompanhava estes jovens, duvido muito que alguém se tenha deles acercado e chamado à razão.

Em termos institucionais nem tudo terá sido feito, mas hoje é notícia que o caso Giovanni levou a polícia, em conjunto com outras forças locais, a estudar a noite de Bragança na medida em que o caso revelou um universo desconhecido das autoridades porque as pessoas não formalizam denúncias, segundo declarações do comandante da PSP ao JN. Estão bem as forças vivas do concelho ao reconhecer que é necessário fazer mais e melhor. Não é caso para dizer que casa roubada, trancas à porta, mas haja capacidade de convocar novos atores, porque o que se fez durante anos em termos de intervenção na realidade sociológica de Bragança mais não foi do que mera operação de cosmética.

Haja saúde

Considera-se que o último mês do ano deva ser, em termos pessoais, um tempo de balanço e reflexão sobre o que foram os trezentos e muitos dias anteriores. Para o mundo empresarial e, também, para as associações, para além do cumprimento das obrigações fiscais, é altura de aprovar os planos de atividades e orçamentos previsionais do ano seguinte. Como os tempos não são de silêncio, pouco se irá refletir sobre o que se fez, e como a maioria não tem empresas nem associações também não necessita de se preocupar com o novo ano em termos orçamentais nem necessita de ver as atividades aprovadas por um punhado de associados, havendo tempo para ouvir falar do protagonismo de Greta Thunberg, em detrimento das conclusões da cimeira do clima, e da análise que o líder do PSD irá fazer do orçamento. Pelo meio, continuam a aparecer os problemas da área da saúde com a sobrelotação dos hospitais, a falta de enfermeiros e a carência de médicos. Sobre os últimos é de facto incompreensível para a opinião pública ouvir falar da falta de recursos em saúde, há mais de uma década, e não se conseguirem implementar políticas de fixação nas zonas de maior carência. Em consequência, já não se permite pensar em não haver vontade política, mas fica-se com a sensação de que há forças dentro da própria classe que pretendem não ver resolvida esta situação, independentemente das consequências que possa ter para milhares de portugueses. Por isso, não só não se compreende porque não aumenta o número de vagas nas universidades, como é possível questionar o chumbo ao novo curso de medicina que a católica queria abrir já no próximo ano letivo, sendo este (o chumbo) fundamentado no facto do sistema de saúde não possuir capacidade de absorção do número de alunos que concluem os cursos e o risco que instituições e ofertas formativas já acreditadas correm dada a proximidade entre a católica e tais institutos ou faculdades. Também o modelo de gestão hospitalar que vigora, desde a década de noventa, não conseguiu corresponder às expectativas, acentuando as assimetrias e prolongando os tempos de espera, seja da primeira consulta ou das seguintes, seja dos exames de diagnóstico ou terapêuticos. Com efeito, o modelo de gestão empresarial aplicado à saúde apresenta tão bons resultados quantos os que se verificam no sector da educação quando se discute o custo do aluno bem como o preço da reprovação ou do sucesso refletido nas estatísticas. Também o modelo de gestão integrada ficou aquém das expectativas e, ao que parece, o que melhores condições oferecia os utentes seria a concessão a entidades privadas o que, por questões ideológicas, não mereceu aprovação da maioria dos partidos de esquerda que continuam a ver neste modelo uma forma de financiar os interesses dos grandes grupos económicos. O modelo de gestão empresarial parece ser o que, em termos políticos, mais consensos agrega. Todavia, é também aquele que mais falácias apresenta desde a sua concepção face aos propósitos para que foi criado. Com efeito, se há um conselho de administração ao qual se atribuiu um presidente com funções claramente definidas e responsável pelas dinâmicas implementadas, desde os cuidados de saúde primários, não é menos verdade que a inexistência de autonomia financeira impede a concretização de todas as medidas que se pretendam implementar em cada região de acordo com as suas especificidades. Por outro lado, as cativações que têm sido feitas apenas têm contribuído para a degradação dos serviços e a desmotivação dos recursos humanos que não veem as suas reivindicações satisfeitas, os horários de trabalho alargados e as equipas cada vez mais reduzidas. Por isso, e quando se afirma que o próximo orçamento de estado vai apresentar um reforço de oitocentos milhões de euros para o sector da saúde, dando um primeiro passo para acabar com a suborçamentação nesta área, não poderemos olhar para esta rubrica como uma medida positiva que irá, finalmente, colocar o SNS no caminho da modernização e da qualidade. Quando muito, este valor irá reduzir em algumas décimas o valor percentual da dívida, já que no momento em que for alocado a cada uma das áreas irá verificar-se que resta apenas uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma.

Impõe-se

Passado o período eleitoral e não havendo factos significativamente relevantes, impõe-se a reflexão sobre o novo figurino parlamentar e sobre aquilo que o mesmo traduz.

A gerigonça, pelo que se sabe, mudou-se para Espanha com o PSOE e o PODEMOS a ensaiar os primeiros passos num tango que não se augura muito feliz. Em primeiro lugar porque não sendo original, pretende ser uma cópia do que por cá se fez. Contudo, nem nisso foram bons já que ao escolher par, Sánchez esqueceu-se de que o primeiro-ministro português, ou porque não terá muito jeito para a dança, ou porque é um estratega nato, preferiu um joguinho de sueca que lhe permitiu estar relaxado, piscando o olho ora a um ora a outro dos parceiros, sem nenhum deles poder dizer que fez batota. Durante quatro anos, foi-os contentando e a legislatura, contra as expectativas, chegou ao fim para gaudio de todos, sobretudo do presidente da república. Quem conhecer melhor as cartas do que eu e estiver mais familiarizado com os jogos de mesa, pensará que a ignorância me leva a considerar que para a sueca só são precisos três jogadores em vez dos habituais quatros; no caso convém recordar que o PCP trouxe o amigo Verdes para a mesa.     

O PAN caminha a passos largos para a institucionalização e, por mais que reafirme o contrário, está bem patente, no seu discurso, esta nova forma de estar e de fazer política. Basta comparar o programa eleitoral de 2019 com o apresentado há quatro anos para constatar que suavizou o discurso e onde antes punha os animais, coloca hoje as alterações climáticas. Onde antes se falava dos animais não humanos que deveriam ter estatuto jurídico equiparado a menores, fala-se agora em animais simplesmente. Lamenta-se que um partido desta natureza tenha deixado cair a bandeira da caça desportiva, um claro sinal de que o aburguesamento já chegou ou, então, os cheiros da capital não lhe permitem ver os efeitos que a caça tem na natureza e nos animais que dela fazem a sua casa.

Face a isto, não admira que tenham surgido três novos partidos com assento parlamentar. Querendo parecer distintos entre si, e sendo-o de facto, também eles podiam reinventar uma gerigonçazinha capaz de dar dores de cabeça à governação. Contudo, porque não são partidos de causas mas de factos, não conseguem ir para além da circunstância e da espuma dos dias, sendo que o mais irónico é haver quem se diga antirregime e não só tomou assento no parlamento, como passou a financiar-se com o erário público.

Estando longe de entender como vai ser o caminho que os estreantes irão fazer, até agora, a relevância vai para a gaguez da deputada e para as saias do seu assessor que, não só conseguiram tomar conta dos canais mediáticos, como conseguiram que a opinião pública falasse dos políticos e esgrimisse argumentos ora a favor ora contra. Se sobre saias não me pronuncio, não me parece que a combinação de cores tivesse favorecido o manequim, mas, como gostos não se discutem e acredito que alguém lhe tenha dito que estava impecável… por aqui me fico. Já sobre a gaguez, num espaço em que a palavra é instrumento de trabalho e a oratória é a base do parlamentarismo ousaria apresentar o meu ponto de vista se para tal houvesse espaço. Não está em causa a legitimidade da deputada eleita democraticamente e, como tal, com poderes para representar quem nela votou, independentemente dos mecanismos que presidiram a tal escolha. Identificação? Desafio? Ou simplesmente um voto de protesto? – não se saberá; mas, seja qual foi o critério, receio que se esteja de novo perante um facto mediático, inconsistente e incapaz de se fortalecer no tempo. Prova disso, é que de todos os partidos com assento parlamentar, este é o único a não apresentar qualquer iniciativa legislativa, nem sequer um projeto de resolução que seja capaz de confrontar o governo com algo que já tenha feito. Como se tal não bastasse, já se ouvem as vozes do seu próprio partido a pedir que alinhe a sua agenda política por aquilo que são as causas do Livre. O palco mediático que lhe foi dado provoca engulhos no grupo de contato (direção) que queria ver uma agenda que fossa além da militância feminista e das causas racistas, com uma reinterpretação da história excessivamente livre para que seja levada a sério. Nem a ecologia nem o europeísmo – temas significativos para o fundador do partido, figuram na agenda. Podendo ser esta uma estratégia da deputada para se manter na sua zona de conforto, não será sustentável a médio prazo.

Como o tempo é bom conselheiro, e a época do natal se avizinha, mantenhamos a esperança de que a lufada de ar fresco que entrou pelas portas do parlamento não saia pela janela entreaberta dos gabinetes.

A democracia é chata

Mas é a consciência do mundo. Talvez por isso, nos momentos em que se reorganiza entra-se num período de catálise onde apenas reina a expectativa do dia seguinte, e quem escreve fica sem factos. A seguir às legislativas, optou-se por abandonar a tradicional futurologia do elenco governativo para traçar cenários sobre o modo como se iria constituir governo para os próximos quatro anos. Ao todo, creio que foram criadas oito possibilidades sendo que nenhuma delas confere à governação a estabilidade dada pela anterior “gerigonça”. Certo, para alguns comentadores, é que nenhum dos partidos estava interessado em reativar o anterior modelo, pelo que teriam respirado de alívio quando se aperceberam de que já nada havia a fazer. O irrealista caderno de encargos apresentado pelo Bloco, a irredutibilidade do PS e o fechamento do PCP nas suas fileiras que esmorecem, geraram apenas um cenário de duvidosa continuidade onde nem as suposições mais sui generis conseguiram alcançar o âmago da questão.

Mas, independentemente dos cenários, o certo é que só se chegou a eles por vias da democracia que tem tanto de deslumbrante como de temeroso num tempo de incertezas e conflitos que, deixando de ser latentes passaram a emergir de forma quase espontânea aos nossos olhos. Bastará pensar no que está a acontecer na vizinha Catalunha, na tão próxima Turquia ou no não tão longínquo Reino Unido para entender que há sinais claros de que se vive um tempo em que nada se pode dar como adquirido em termos geopolíticos e de estabilidade social. É que a democracia tem destas coisas… Nós por cá, vamos fazendo mudançazinhas porque ou somos de brandos costumes ou não estamos para grandes atos de heroísmo – é cansativo e nunca se sabe como terminam.

Talvez seja por isso que a democracia é mesmo chata. Não é que seja chata, mais me parece que é matéria sujeita às leis da Física: ou se expande ou se retrai. Ou seja, a democracia é um processo e, como tal dinâmico; não pode viver num estado que permita o estaticismo, terá de ser um fluir contínuo em equilíbrio no qual o movimento terá de ser uniforme e retilíneo sob pena das forças atuantes se anularem e este corpo permanecer em repouso. Por mais que se queira, o regime democrático exige uma constante interpelação dos cidadãos para se manter dentro dos valores que o definem, pelo que o esmorecer ou o afastar dos seus ideais conduz a distorções que resultam nos mais variados acontecimentos disruptivos, incluindo a emergência de ideologias contrárias a esta.

Num momento em que os extremismos fazem a sua assunção dentro do sistema político português e os fundadores da democracia se vão extinguindo, é de questionar se os paladinos destes valores souberam compreender verdadeiramente o que instituíram ou, pelo contrário, com o passar do tempo, cederam à tentação do conformismo e descuraram a necessidade de fazer chegar a todos os ventos da mudança que começaram a soprar num tempo em que se acreditava que o fosso entre ricos e pobres iria desaparecer e a melhoria das condições de vida iria chegar aos lugares mais recônditos deste país. Acima de tudo, a democracia é um sistema de tal forma frágil que facilmente cede lugar à oligarquia que, a curto prazo, pode deslumbrar o povo, mas a médio prazo ou se torna anarquia ou se converte em tirania e ambas oprimem.

Como nada é garantido e o que hoje é, amanhã já não é, ninguém deve querer hipotecar a sua liberdade apenas porque agora até a procrastinação na defesa de direitos considerados adquiridos é permitida. Ora se a democracia é chata por ser exigente, continuemos a abrir espaço a outras formas de governação e saberemos o que é ser escravos na própria terra.  

 

Nota: O título foi censurado à nascença por uma democrata convicta que se pôs a espreitar o ecrã do computador. Apelo, por isso, a que o leitor seja compreensivo e permita o uso da liberdade de expressão.

Cronicando... Livre-nos Deus

É apanágio de algumas terapias que têm invadido o ocidente referir que nada do que se deseja falar deve ser retido; caso contrário, o paciente sujeita-se aos transtornos da garganta. Já a raiva contida reflete-se no fígado e causará transtornos hepáticos. Como não tenho vontade de apanhar um resfriado nesta época do ano e dispenso a azia, não poderia demorar por muito mais tempo a apreciação ao programa eleitoral do CDS. Se motivos não faltassem, assistem pelo menos dois: a participação que tive na iniciativa Ouvir Portugal (ao que se dizia base deste programa) e as propostas apresentadas para a educação (no momento em que se inicia mais um ano letivo), com os problemas de sempre.

Se ao primeiro motivo não aportam razões por aí além, quando ouvi as medidas para a educação, achei, em primeiro lugar, que fossem fake news ou algo projetado a partir de uma das crónicas do Ricardo Araújo Pereira. É que de tudo o que há para fazer na educação, os pontos mais relevantes a apresentar, têm a ver com o aumento do número de vagas no privado e a avaliação dos professores. Uma garantia posso dar: não foi das terras transmontanas que levaram tal ideia; pode, por isso, aventar-se a hipótese que foi na metrópole que tal alinhamento foi cozinhado. Por aqui não há tantas crianças quanto isso, nem tantas creches particulares que se necessite desta linha. Já o segundo, não só assenta num duvidoso critério meritocrático, como apresenta as instituições de ensino superior (a serem escolhidas) como referenciais da avaliação dos professores. Em resumo, a par da revisão da carreira que faria sentido desde que todos os interlocutores estivessem representados, a proposta inclui ainda que a progressão decorra da prestação de provas públicas a realizar em instituições do ensino superior. Não me restam dúvidas de que a medida colhe junto dos professores que aspiram a ser doutores e acham “chique” a deambulação pelos corredores universitários. Todavia, os professores que valorizam ser professores, que manifestam verdadeiro interesse em estar na sala de aula e junto dos seus alunos irão entender tudo isto como desperdício de tempo e, mais uma vez, um processo burocrático que não só não irá testar a capacidade científica, como nem sequer permitirá aferir das competências pedagógicas e didáticas que estão presentes na sala de aula e, essencialmente, na relação direta estabelecida entre o professor e o aluno de acordo com o contexto real em que ambos se inserem.

Também não é necessário proceder a uma análise muito aprofundada para concluir que os planos de estudo apresentado pelo ensino superior, inclusivamente para os cursos via ensino, são, de tal modo, desfasados do que é ministrado nos outros níveis de ensino que, a um professor em início de carreira resta apenas a esperança de que os programas sejam iguais aos que ele frequentou e que, num assomo de liberdade, não tenha mandado os apontamentos para a reciclagem, Na verdade, uma vez em que um professor universitário foi questionado sobre esta discrepância limitou-se a dizer que a universidade não existia para preparar ninguém para ser profissional mas competia-lhe dar as ferramentas que capacitassem, neste caso o professor, a refletir e a ser capaz de procurar os saberes de que iria necessitar junto dos seus alunos. Assim, quando se refere que, no âmbito do pacto para a educação se irá propor o perfil do professor para cada área disciplinar, não serão necessários quatro anos, mas dez ou doze, dado que tal implica a reformulação de todo o sistema e encontrar o ponto por onde se lhe quer pegar.

Na década de oitenta, o boom das novas pedagogias estava no auge e a investigação aproximou os investigadores das escolas, ainda que de modo pontual. Porém, esta tendência foi-se esbatendo e, passadas quase três décadas, deixou de se fazer reflexão sistematizada aumentando o fosso existente entre universidades e escolas do ensino básico e secundário. Por isso, eleger um avaliador que não conhece o contexto do avaliado é ideia que não colhe em nenhuma corrente pedagógica, mas admissível num pensamento retrógrado ancorado na saudade dos exames nacionais de quarta classe, que trazia as crianças das aldeias até às capitais de distrito onde, sob olhar ameaçador, resolviam exercícios e esperavam resultados.       

Em abono da verdade, há países onde a avaliação dos professores segue esse modelo. Porém, esses já há muito que arrumaram a casa e cedo entenderam o que é a coerência, a coesão e a visão processual na educação. Por cá… e com propostas destas, resta-nos fazer o sinal da cruz e repetir o que nossos avós nos ensinaram: “Livre-nos Deus, (…) dos nossos inimigos.” Sobretudo dos que se querem fazer passar por amigos.

Racistas e xenófobos

Ainda recentemente foi-me enviado o Relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-Racial em Portugal elaborado no âmbito da Subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação, tendo como relatora a deputada Catarina Marcelino. O documento de cento e quarenta páginas resulta da atenção que o Partido Socialista pretendeu dar a assuntos, melhor, factos sociais ocorridos nos dois últimos anos e que colocaram na agenda política a questão do racismo e discriminação. O espancamento de uma colombiana impedida de entrar num autocarro no Porto, o caso da Urban Beach são referenciados a título exemplificativo. 
Face às e evidencias, o PS, e bem, apresentou em 26 de setembro de 2018 um requerimento, aprovado por unanimidade na 1.ª Comissão Parlamentar – Assuntos Constitucionais Direitos, Liberdades e Garantias, que visava a execução de um conjunto de iniciativas (audições, visitas,…) que permitiu a elaboração do relatório e o contato mais próximo com estas realidades. Sendo o fenómeno complexo, as audições públicas incidiram em seis áreas consideradas significativas para a análise do objeto em questão, sendo que, a cada um dos participantes foi pedido que refletissem e evidenciassem apenas um dos domínios: participação política, justiça e segurança, educação, habitação, emprego e saúde.
O documento metodologicamente irrepreensível, cientificamente bem fundamentado e conceptualmente aceitável, apoiando-se num vasto leque de argumentos está longe de poder ser considerado o instrumento de trabalho ideal ou, pelo menos, o repositório de verdades incontestáveis. Desde logo pelas limitações que o próprio objeto coloca não permitindo abarcar a realidade no seu todo pelo que plasma a percepção de quem observa. De seguida, porque foi incapaz de ir mais além relativamente a estudos anteriores. Após uma primeira leitura, fica-se com a ideia de que os implicados basearam as suas intervenções em estereótipos que se perpetuam, não havendo nada de novo em qualquer das áreas, nem mesmo quando se refere ao “aumento do discurso do ódio em Portugal” em linha com o que se verifica em toda a europa (pg.20). Este discurso esteve sempre presente e de tal forma que faz parte daquilo que passarei a designar de “subcultura nacional” refletida em inúmeras expressões xenófobas e racistas cada vez menos mais em desuso. O que muda é, essencialmente, a forma como se dissemina e o tempo que demora a propagar-se a reboque das redes sociais e da celeridade com que circula a informação. 
O mesmo se aplica quando o domínio é a educação à qual, em meu entender é dado um peso excessivo relativamente às outras áreas. É sobejamente conhecida a realidade das minorias e dos imigrantes – são eles que frequentam os percursos ditos alternativos ou as vias profissionalizantes e também são estes que mais reprovam no segundo e terceiro ciclos, sendo um número residual de jovens ciganos ou afros que frequentam o ensino secundário. Neste item perpassa a ideia de que o sistema até é eficiente e responde de forma igual para todos, o que falha são os recursos no terreno, sobretudo os humanos, que formatados numa determinada visão das coisas, são incapazes de promover os jovens destas comunidades. Ou seja, implicitamente dá-se a entender de que a culpa do insucesso é dos professores e das estruturas locais que continuam a discriminar. Mais longe foi o secretário de estado da educação, João Costa, quando, em Bragança, no dia 6 de setembro de 2018, disse, no estilo que o carateriza, que os alunos ciganos são mais inteligentes que os outros, pois aos primeiros, os professores nem sequer exigem que assistam a metade das aulas para aprovarem, enquanto que, aos outros, se obriga ao cumprimento integral da carga horária. Efetivamente, as variáveis para a promoção do sucesso educativo são muitas e destas não se pode dissociar a habitação e as expectativas familiares e sociais. Decerto não serão mais estudos sobre o etnocentrismo ou a discriminação em meio escolar que irão resolver a questão das reprovações, enquanto estes alunos não tiverem um espaço onde possam tomar banho, uma mesa para estudar e uma cama para dormir.
Também não me parece que seja a sensibilização dos partidos políticos para integrar minorias étnico-raciais nas suas listas que vai alterar este quadro quando há todo um trabalho prévio que continua por fazer. Pondo de lado o “politicamente correto” fica-se com a ideia de que o relatório mais se assemelha a um libelo que incrimina a sociedade civil pelas práticas racistas e xenófobas e iliba o poder político e institucional (sobretudo autarquias) daquilo que nesta matéria vai prevalecendo. É que mesmo para quem faz a sua vida à custa de minorias é mais fácil fazer congressos e escrever textos do que catar piolhos e cheirar misérias. 

Cronicando - Morra mais um

Há pouco tempo, à mesa do café, comparavam-se os cronistas de segunda a serial killers: começam a escrever a medo, mas, com o passar do tempo, tornam-se mais ousados até perderem a vergonha e deixarem de se preocupar com o que se possa pensar do que escrevem. Já os de primeira, impõem-se desde o primeiro instante e mantêm sempre o mesmo estilo. Apontava-se Lobo Antunes como o expoente máximo desta categoria porque, desde sempre, fiel a um estilo desbragado assim se conserva até hoje. Os de segunda serão, pois, os que garatujam na imprensa regional, escrevem por devaneio e ninguém os leva a sério. É a estes que pertenço. Porém também estes têm um estilo. Desde o início, pesquiso e procuro fontes antes de publicar, e se o texto está mais acintoso resulta apenas de uma maior sensibilidade às causas e de uma liberdade que me tornou associal, privilegiando a solidão, ao mesmo tempo que me devolveu o prazer de um bom café com excelentes amigos, ou de um copo noite dentro, e se envolto em boas anedotas é o mais próximo da perfeição que, simples mortal, poderei desejar. Mas vamos ao que interessa…

A pretexto de querer tirar a carta de trator, dirigi-me a uma escola de condução. A surpresa da administrativa foi só uma. Não esboçou um sorriso porque é profissional, mas lá foi dizendo que aqui, capital de distrito, não é possível e muito menos fazer exame, simplesmente porque não se fazem. Se quisesse, a escola levar-me-ia a Braga onde, obrigatoriamente, teria de demonstrar as minhas habilidades a conduzir um trator com atrelado. Com ar ingénuo, sempre fui dizendo que nunca estive em cima de nenhuma dessas máquinas e, quando muito, a uma distância de segurança de dois metros pelo que me seria impossível mostrar tais habilidades nem que fosse em sob a proteção do Bom Jesus. Perante isto, pedi informações noutro lado de onde recebi missiva a dizer que, como tenho carta de condução de ligeiros, e até já conduzi pick-up e carrinhas de nove lugares, não necessito de me preocupar com carta de trator. Repito que quero mesmo aprender e que nunca conduzi tal máquina. Menos amistosos, sempre disseram que há quem desde os cinco anos conduza essas máquinas sem problemas. Uma maneira simpática de me chamarem incompetente, parvo e tudo o que possa estar neste campo semântico.Fico na mesma. O certo é que, como filho da terra, e descendente de Anteu pela origem transmontana, começo a sentir necessidade de ocupar os fins de semana com algo mais que não seja o deambular pelos campos. Procurei ainda uma daquelas ações de formação de trinta e cinco horas: fiquei a saber que candidatos há, o que é difícil é encontrar formador e máquina.

Dados saídos recentemente colocam Portugal no 3º lugar dos países europeus onde mais se morre em acidentes de trator. Entre 2013 e 2017 foram registadas 358 vítimas. Os dados de 2018 ainda não foram disponibilizados mas, com toda a ce1rteza, a linha será ascendente e 2019 continuará a negra trajetória já que, só numa semana, foram, pelo menos 3 os acidentados. Os peritos apontam sempre as mesmas causas: idade, cansaço, declives e, sobretudo, excesso de confiança. Poucos ou nenhuns se referem à idade das máquinas pois, de acordo com os dados disponibilizados, mais de 50% têm mais de vinte anos, não tendo estruturas de proteção nem automatismos de que tratores mais novos são dotados.

Também não será por mero acaso, que estas incidências ocorrem em regiões de minifúndio, estando Bragança, Viseu e Guarda no top dos acidentes. Não deixa de ser irónico que, a todas as variáveis, se junte ainda a falta de recursos económicos que possibilite a renovação do parque e a impossibilidade de quem quiser adquirir conhecimentos ter de ir a… Braga.

Entretanto, ficou a saber-se que o Despacho n.º 1819/2019 de 21 de fevereiro regulamenta a obrigatoriedade de formação para quem pretenda conduzir veículos agrícolas, ao mesmo tempo que elenca, em anexo, os conteúdos modulares. Dos seis módulos, apenas dois se orientam para a prática, fruto das novas formas de entender o conhecimento que se esquece de que se aprende a fazer fazendo.

Independente do que se ensina, como se pode aprender se não há mestre nem escola? Teremos de continuar a ser autodidatas e a aprender a não morrer numa terra para a qual se fazem leis que é impossível aplicar. E se o fim é a morte, que importa se acontece aos 50, 60 ou setenta anos? Quantos menos estiveram nestas terras abandonadas, menos gastos para a metrópole. E, enquanto se aliviam consciências, que toquem aos finados por mais um.

O ensaio

Há momentos em que a reflexão nos coloca num processo metacognitivo ao qual corresponde um questionamento do “eu filosófico” e da implicação do mesmo no devir do tempo. Já ando por cá tempo suficiente para constatar que os registos de língua sofrem variações geracionais e o próprio sotaque altera-se de acordo com fatores circunstanciais e variáveis diversas. Ora se a linguagem condiciona o modo como nos relacionamos, e esta modifica o pensamento, numa era em que a palavra adquiriu particular relevância, seria de todo conveniente que cada um cuidasse o modo como se expressa e, sobretudo, o que verbaliza, “pois a boca fala do que está cheio o coração.” (Mateus 12:34) já diz o sagrado livro.

Como em tudo, o ser humano desvaloriza o que se torna massificado. Talvez por isso, se desvalorizem as palavras e o que expressam, se vejam imagens mas não se observam e as ocorrências secundarizam-se a menos que, no imediato, nos condicionem. Dado que valores como a educação, o civismo e a intervenção social só apresentam efeitos a médio e longo prazo, numa era de imediatismo são, por isso, considerados obsoletos. Talvez, por isso, o déficit democrático esteja tão alto e a passividade face à conjuntura seja o que se vê. Como certo há apenas a contradição dos tempos e discursos que se sobrepõem dourando uma realidade potencialmente perigosa, porque, se é verdade que as sociedades evoluem em espiral havendo pontos que replicam os anteriores, pode estar a iniciar-se um novo ciclo de contração, não só em termos económicos, mas em valores e de organização social. Os sinais são preocupantes para quem viveu na ditadura e conhece este modelo democrático construído ao longo de quarenta e cinco anos. Nunca como hoje as liberdades e garantias foram tão ameaçadas e os exemplos repetem-se sistemática e continuamente.

Quando nas redes sociais se multiplicava a notícia de que a máquina fiscal tinha ido para as autoestradas cobrar dívidas, pensei que se tratasse de uma fake news. Quando os noticiários fizeram a cobertura, tomei consciência de que algo está a mudar na relação do Estado com o cidadão, sob a batuta da esquerda. Por uma dívida de centenas de euros confiscam-se os meios de trabalho a um pobre, mas, ao mesmo tempo, perdoam-se milhões a quem tem milhares de milhões e nem sequer se questiona a dignidade da pessoa que é exposta na via pública: está dado o primeiro passo para se voltar aos julgamentos e aos açoites na praça pública. Com menos alarido mas a mesma eficiência também a Segurança Social tem mandado cartas com o mesmo objetivo e as mesmas ameaças.

A promiscuidade entre o Estado e os grandes interesses tipifica-se no papel que a Autoridade Tributária exerce na cobrança coerciva das portagens. Sendo as autoestradas concessionadas a particulares, como pode um organismo estatal estar ao serviço de interesses privados? Por outro lado, não gostariam as pequenas e médias empresas de poder aceder ao mesmo mecanismo para arrecadar dividendos que andam meses e anos sem serem cobrados e alguns nunca chegam a ser resolvidos?

Também a sindicância à Ordem dos Enfermeiros, anunciada previamente num jornal nacional, para além de ser caso inédito na democracia, é um sinal claro de que algo está a mudar no panorama nacional e até onde o Estado está disposto a imiscuir-se em campos que até agora tinha respeitado. A sete meses das eleições para a Ordem, esta exposição mediática não será inócua nem as declarações da atual ministra da saúde permitem ver neste enredo um ato irrefletido ou a determinação em averiguar acautelando o princípio das relações institucionais e a presunção da inocência, até prova em contrário.

Assim, quando Marcelo considerou haver uma grande probabilidade de a direita entrar em crise profunda nos próximos anos, independentemente das razões subjacentes, e das críticas que se seguiram, mais não fez do que alertar para o fim do multipartidarismo e para a necessidade de se refletir sobre o rumo que a democracia está a seguir em tempos de popularismos e de derivas eleitoralistas, onde começa a ser cada vez menos provável que se possa falar de “partidos do arco do poder”. Na sua crónica de 14 de junho, Vitor Raínho, no jornal Sol, adverte para a vaga proibicionista que está a tomar conta do país, não sem deixar de questionar onde se encontra agora a geração do “é proibido proibir”, o que torna este tema ainda mais relevante e vê sinais de um retrocesso ao Estado Novo e às práticas do mesmo.

Bem podem os Berardos sorrir nas comissões parlamentares, os Espírito Santo fazer vidas de luxo porque nós, povo, continuaremos por aqui deslumbrados com o circo e à espera do pão enquanto permitimos que o ensaio continue até que os grilhões e a mordaça nos sejam colocados.  

Uma questão de ética

Se o mundo girasse ao ritmo das notícias e os problemas se resolvessem de acordo com o alinhamento, a realidade seria diferente e as probabilidades do ser humano concretizar os seus sonhos aumentaria exponencialmente. Se daí decorreria um acréscimo no índice de felicidade, já não seria tão linear, embora em alguns momentos seria o que de melhor poderia acontecer à humanidade.

No momento em que o incêndio da catedral de Notre-Dame centra as atenções do mundo e o acidente da Madeira preocupa os portugueses, tudo o que alimentou a comunicação social nos últimos dias, deixou de existir. Há, no entanto, outros assuntos que nem sequer fizeram parte do alinhamento dos noticiários ou, se tal aconteceu, a abordagem ficou-se pela superficialidade não havendo, por isso, a desejada proporcionalidade entre o impacto na vida das pessoas e o desenvolvimento dado. Na altura em que o país viveu um dos momentos mais tensos em termos energéticos, deparamo-nos com a comunicação social a alimentar a histeria coletiva e a contribuir para um clima de alarmismo reforçando a ideia de que está iminente a ruptura de stocks. De norte a sul, as filas para abastecer foram intermináveis, havendo quem não só tivesse atestado o depósito como adquirisse bidões de reserva, quadruplicando, em setenta e duas horas, a despesa mensal de combustível. Este surto tão caraterístico das massas desinformadas alastrou-se aos bens de primeira necessidade com receio que o transporte de mercadorias pudesse ser afetado. Perante tal cenário, impõe-se questionar quem ganha e quem perde numa situação que revestindo-se de alguma gravidade não foi, porém, catastrófica e irreversível. Como se viu, bastou que as partes se tenham entendido.

A fazer fé no Expresso de 17.04.2019, desde um de abril havia o pré-aviso de greve pelo que, a onze do corrente, o governo decretou serviços mínimos para o sector. Não sendo, porém, uma das partes envolvidas no conflito tinha, no entanto, o dever de salvaguardar o bem comum e de gerir de outro modo a tensão que, previamente, se sabia resultar neste tipo de ocorrências. Não se pretende com isto dizer que a tutela foi conivente com os grupos maioritários do sector. Contudo, ao segundo dia de greve, os preços dos combustíveis dispararam e, desta vez, nada teve a ver com a cotação da matéria-prima nos mercados internacionais nem com o aumento das taxas sobre os produtos. Ou seja, alguém comprou barato e, em resultado da conjuntura, vendeu caro e nem a comunicação social nem a maioria dos consumidores se aperceberam de que se está a pagar mais por menos. Não será também fruto do acaso que, nos postos de algumas das marcas, se encontra afixada informação dizendo que determinado tipo de cartão (frota) se encontra suprimido por motivos alheios à própria marca.

A reivindicação do reconhecimento de uma categoria profissional específica e uma diferenciação salarial dos restantes motoristas até pode ser legítima e facilmente compreendida pela população em geral. Porém, deve-se refletir se é legítimo um grupo profissional, com cerca de mil membros, ter um país em suspenso e a cada hora que passa mais paralisado. Para minimizar o impacto, agiu bem António Costa ao criar a rede estratégica de postos de abastecimento destinada a abastecer sectores prioritários na área da segurança e da saúde.

Destas setenta e duas horas devem retirar-se as devidas ilações, sendo que a primeira é a necessidade premente de rever a dependência do país em relação à energia fóssil, a segunda é a legitimidade em interromper as prospecções de petróleo que estavam em curso. Parecendo duas linhas contraditórias, o certo é que uma deve complementar a outra. Por um lado, é imperativo a diversificação das fontes energéticas, sobretudo, com uma aposta séria na chamada “energia limpa”, por outro, e porque a diversificação dos recursos é fundamental, deve dar-se oportunidade ao petróleo, sendo capazes de entender que já passaram mais de setenta anos da primeira tentativa de o encontrar em território português. Hoje há estudos de impacto ambiental e, enquanto não se atinge a neutralidade carbónica, teremos de nos governar com o que aparecer.

Entretanto, nós, transmontanos, mais uma vez olhamos para lá da fronteira e, andando mais uns quilómetros, abasteceremos tudo quanto quisermos. A vantagem da interioridade.

Enredados

Muito antes da existência de redes sociais, já o povo falava dos “enredeiros” e dos que só sabiam “enredar”. O enredeiro caraterizava-se por ser mesmo isso: um enredeiro – alguém incapaz de levar um propósito até ao fim; um ser que não avançava nem retrocedia. Quando chegou a altura de estudar Garret, já tinha dúvidas sobre o significado do verbo e, sinceramente, não entendi muito ou quase nada das metáforas à volta da Barca Bela e do cuidado que o pescador tinha de ter para que a rede não se enredasse na sereia. Tudo passa, o significado do verbo ficou para trás mas os enredeiros continuaram.

No momento em que a torneira dos fundos europeus, finalmente, se abriu, e algumas gotas vão chegando ao comum dos mortais – tal como já aconteceu com outros quadros – fica-se com a percepção de que longe de se avançar anda-se mesmo a enredar. A criação dos quadros de apoio comunitário tinha por base a convergência das regiões mediante a criação de eixos estruturais que capacitem cada estado através da implementação de medidas, essas de acordo com a estratégia de cada país. No caso português, o caminho da coesão é ainda mais complexo dado que não se conseguirá esbater o diferencial com os outros países, quando as assimetrias internas são por demais evidentes. Ao longos destas duas últimas décadas, não se poderá dizer que não se tenha feito um enorme esforço no sentido de alcançar níveis de desenvolvimento e de bem-estar mais próximos do padrão europeu do que de países do, até há bem pouco designado, terceiro mundo. Contudo, os índices de bem-estar ainda se afastam dos que os países de referência apresentam e, quer se queira quer não, continua-se a olhar para o outro lado da fronteira e a constatar que o nível de vida, aqui ao lado, é superior ao que se consegue criar por cá. Ora, se Portugal tem uma zona económica exclusiva de 1,72 milhões de quilómetros quadrados – a terceira maior da União Europeia, que poderá duplicar em 2021com o alargamento da plataforma continental, caso a CLPC (Comissão de Limites da Plataforma Continental das Nações Unidas) assim o decidir, o que falha para os desequilíbrios estruturais perdurem ao longo de tanto tempo?

Os analistas poderão elencar uma série de factores que poderão ser mais ou menos explicativos; os políticos apresentarão outros, muito mais previsíveis, variáveis conjunturais, factores externos e uma série de outros argumentos que os ilibam da responsabilidade que só cabe a quem exerce cargos de governação seja a que nível for. 

Por aquilo que pude observar na execução do anterior quadro e no que agora vigora há, essencialmente, mas não exclusivamente, dois factores: o politicamente correto e os enredeiros. O politicamente correto é a primeira força de tração que impede qualquer mudança. Ao ser aplicada no terreno político, esta força faz com que o problema se alongue e fique mais fino mas não se resolva, O politicamente correto não deixa ver a realidade como ela é e faz opções que fiquem bem mas não gerem conflito. Ora, ao não haver conflito não haverá verdadeiramente mudança.

E aqui entram os enredeiros que dão jeito aos políticos. Elaboram os planos de ação e conhecem o modo como os indicadores, devidamente trabalhados, darão resultados positivos sem, contudo, mudarem nada de substancial na vida dos que mais necessitam. É que o enredeiro não vai ao terreno, não suja as mãos nem sabe estar próximo de quem precisa. O enredeiro projeta, planifica mas não executa.

A agravante na aplicação deste quadro comunitário é que, ao invés do anterior, o financiamento, pelo menos em algumas áreas, não é entregue ao beneficiário direto como se não soubesse ou não tivesse capacidade de gerir as verbas, embora seja o único que sabe do que precisa. Por isto, esgotados os fundos, continuaremos a ouvir falar de assimetrias, de falta de coesão e de que nunca chegaremos ao pelotão da frente. É provável que a solução seja encontrada quando Portugal, bem na cauda da Europa, tenha a capacidade de dar meia volta e olhar em frente. Deste modo simplificado, o último será o primeiro.

Na verdade, também eu me deixei enredar… a ideia era abordar a força das redes sociais na formação de opiniões e acabei a olhar os enredeiros de uma forma politicamente correta.