Raúl Gomes

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Cronicando - Caos na nação, mês do coração

"Mês de maio, mês do coração” – um slogan tantas vezes repetido que, poucos serão os que não o memorizaram ao longo de anos. Estranhamente, neste ano, não consta que se tenha repetido e já o mês vai a meio. Na esperança que fosse uma desatenção da minha parte, cliquei na página da fundação que tomava as rédeas da iniciativa e pude constatar que, à data em que escrevo, a página da campanha brinda-nos com um “brevemente disponível” e o programa fica-se por uns torneios, umas jornadas e um peditório.

Tendo uma visão muito particular sobre estas campanhas de massas, e sendo um crítico assumido dos orçamentos que as mesmas absorvem, deveria estar tranquilo e pensar noutros assuntos. Poderia… não fosse conhecer outros projetos que, por falta de apoios, ficaram esquecidos e todo o potencial se foi perdendo. Refiro-me sobretudo a ações de formação, especialmente as que se centram nas áreas da saúde e da educação – pilares das democracias modernas e que, repetidamente, vão sendo relegados para segundo plano. Fica-se, por isso, na dúvida sobre o que terá acontecido neste ano para o impacto do evento ser tão drasticamente reduzido. Seria apenas mais uma campanha a esvair-se sem a opinião pública se aperceber dos seus efeitos, ou talvez não. Poderá, também, ser a metáfora do estado da saúde em Portugal. Uma saúde teorizada, excessivamente burocrática e onde em vez de se pedir ao corpo clínico que trate pessoas, exige-se-lhes a apresentação de evidências do desempenho, seja no hospital da província ou no central que recebe doentes de todo o lado. Exemplos não faltarão. Apenas dois.

Há cerca de duas semanas, um doente traqueostomizado, a necessitar de medicação específica, vê-se confrontado com a dificuldade de aceder ao medicamento porque às vinte horas, a farmácia do hospital estava encerrada. “— Somos um hospital pequenino!” – Desculpou-se a enfermeira “— Mas se for mesmo necessário vou ver o que posso fazer.”

Uns dias antes, uma doente, de oitenta anos, foi mandada para casa sem ter acesso aos procedimentos necessários, porque, depois de fazer duzentos quilómetros, tinha-se esgotado o tempo que o corpo clínico tinha para realizar aquelas intervenções e já não dava para mais. A médica que chefiava a equipa, ao contrário das outras vezes, foi incapaz de vir falar com a família da doente e mandou uma tarefeira. Passados alguns minutos viu-se a correr para o serviço de urgências.

Dois episódios reais. Um na ULS – Nordeste, outro no Hospital de Santo António. A mesma face da mesma moeda, onde de positivo se encontra apenas o humanismo de médicos e enfermeiros e a vontade de fazer melhor com os escassos meios que são colocados ao seu dispor. Obriga-se-lhes a justificar o motivo por que solicitaram exames de diagnóstico, avaliam-se se despenderam mais medicamentos do que é expectável e quer-se que haja sucesso nos tratamentos, como se de mecânica se tratasse.

Se maio é ou foi o mês do coração, também foi o mês das revoluções e das lutas pela dignidade do povo. Deve assumir-se a cidadania e, mais do que agredir médicos e enfermeiros, devem reivindicar-se a melhoria das condições em que trabalham e, sobretudo, que estes profissionais não sejam esmagados por mais um sistema que asfixia, única e simplesmente porque no lugar das pessoas colocou números

O TURNO DA NOITE

 Na casa de meu pai nunca existiu uma televisão. Hoje está fechada e por isso continua sem televisão. Das noites da minha infância recordam-se as rezas e as conversas sobre a terra que acabavam quando a avó se levantava, abria o postigo e via o tempo – uma previsão que nunca falhava. A única janela para o mundo de lá de fora era o rádio vindo de França. Ligava-se ao serão, baixinho e, por volta das onze desligava-se. Nunca entendi porque tinha de ser assim. Também não me recordo de ter perguntado se podia ser de outro modo. Anos mais tarde, quando já era eu a rodar o botão porque achava graça aos sons e, sobretudo à procura das estações de rádio, deparei-me com umas sons estranhos que cativavam pela musicalidade mas não entendia – música árabe. Anos mais tarde deduzi que, por essa hora, seria possível ouvir a Rádio Portugal Livre ou a Voz da Liberdade, essas vozes de Argel que apelavam à resistência contra a ditadura. Seria por precaução que se desligava rádio, não houvesse alguém que, vendo luz na casa, deduzisse sermos nós ouvintes de notícias subversivas. Era o tempo do medo e da escuridão.

Veio a era da palavra farta, do cântico e da afirmação. Os mais velhos continuaram fechados aos novos sons e os mais novos simplesmente não aprenderam a escutar. Escudados pelo estereótipo do “conflito geracional”, confundiram individualidade com individualismo e falta de civismo com educação livre. Redundou isto na incapacidade de educar numa cidadania responsável quando chegou a hora de formar os filhos que, ao mesmo tempo, são netos das gerações mais velhas. É a isto que se referem os psicólogos de hoje quando, de dedo em riste, acusam que mais do que crianças hiperativas, temos pais hiperpassivos.

Viver na democracia de abril será tudo menos fácil porque se cai no laxismo e se esquece do elevado custo que outros pagaram para que, se possa, inclusivamente, falar mal da democracia. No entanto, estes valores não estão garantidos e, cada vez que há uma crise, é este modo de vida que é posto em causa, quando ainda há tanto caminho a percorrer para que valores como justiça, equidade e solidariedade sejam apanágio de todo e qualquer cidadão. A crise recente já mostrou à geração de abril que direitos, liberdades e garantias dificilmente se recuperam. Também já constatou de que a um movimento de avanço corresponde um de retrocesso, obrigando o cidadão a definir-se de acordo com o lado em que se posiciona. Tem ainda de entender-se que, em tempos de prosperidade não se podem esquecer os de carência, porque nada é eterno e os sinais de ameaça à paz e à liberdade a este modo de viver são mais que muitos nos dias que correm.     

As tensões sociais e políticas, os radicalismos e fundamentalismos emergentes fazem-nos comprar o que não queremos e vender o que não desejamos, sendo o valor maior que se aliena o da liberdade. Cabe a cada um trabalhar nesta construção mediante uma participação democrática ativa para que o turno da noite não tenha de voltar e a última locução da RPL continue a fazer sentido: "Esperamos que nunca mais seja necessário haver uma rádio clandestina, para que o povo português saiba o que se passa no seu próprio país". Para que a Europa saiba o que se passa na própria Europa – diria hoje.

Cronicando - CHEGOU A HORA

Que as artes e as letras florescem em tempos de paz, já há muito se diz. Como estas duas áreas se associam à educação, é óbvio que, por arrastamento, também esta se desenvolve quando estão reunidas as condições de estabilidade social e forças opostas se confrontam tão-somente no plano ideológico e através de meras palavras inerentes à construção e ao fortalecimento da própria democracia.

Num tempo de paz duradoura, esperar-se-ia assistir ao apogeu das manifestações artísticas e que a educação formal tivesse progredido para patamares que colocasse os portugueses ao nível dos melhores da Europa. Aqui, é a própria educação que parece o campo onde se faz a guerra. Se as lutas estudantis dos anos 60 foram determinantes na construção de um pensamento e na mobilização para o que iria acontecer em 74, na verdade, é que quem deteve o poder a seguir, não conseguindo distanciar-se desse pensamento, continuou a fazer da educação em sentido lato, a bandeira de uma luta legítima, porque necessária, para arejar ideias, alargar conhecimentos e iniciar uma senda de verdadeira liberdade intelectual.

O problema terá surgido uma década depois, quando questões anteriores continuaram mal resolvidas e se quis repensar a educação formal e a função da escola, num momento em que a democratização do ensino dava efetivamente os primeiros passos e a definição dos currículos era um campo onde se confrontavam ideologias e se pretendia marcar território. A sociologia da educação ensina que não há currículos neutros. No entanto, tal princípio jamais legitimará qualquer força partidária a agir neste domínio como têm atuado desde a revolução de abril. Ao estaticismo sucedeu a avalanche de reformas, esquecendo os decisores a lei fundamental do Estado Português que, nos seus artigos 43º, 74º e 77º, salvaguarda a neutralidade do currículo e o direito universal à educação, incidindo no direito que professores e alunos têm em participar na gestão democrática das escolas. A lei orgânica foi-se alterando até que culminou na restauração da figura do diretor com poderes reduzidos face à anterior. Recentemente, um cidadão que fez carreira no ensino, recordava que, incumbido de abrir uma escola, a ele era assacada a responsabilidade de cumprir e fazer cumprir as leis e as regras disciplinares. Quando algum aluno as infringia, era levado ao seu gabinete e a receita era chamar os pais e perguntar se preferiam uns dias de suspensão para o filho – que ficava em casa  - ou uns tabefes aplicados no momento. Segundo ele, todos optavam pela segunda hipótese. Não se falava em indisciplina, nem em bullying e a classe docente não era aquela que apresentava mais índices de depressão.

Hoje, apregoa-se o sucesso e todos são orientados para trabalhar em prol do mesmo sem sequer se definir o que é o sucesso escolar. Pior do que isso, é que não se permite, sequer, que cada unidade orgânica defina o seu padrão de sucesso, embora se lhe exijam políticas diferenciadas, quer na sala de aula, quer na organização. O culminar de tudo isto, é ainda a implementação de novos programas sem ter ainda havido tempo de avaliar os antigos, como é o panorama atual que irá colocar na mesma sala, lado a lado, alunos a realizar a mesma prova, salvo o erro a matemática (ensino secundário), tendo uns estudado pelo antigo e outros pelo novo. E como se resolve? -irão avaliar-se apenas os conteúdos comuns.

A suposta “revolução” ainda não acabou, o novo modelo da municipalização já mexe nas comunidades intermunicipais e lentamente vai fazendo caminho, pelo que em breve as escolas serão ainda mais coloridas na justa medida da paleta que governa o território. Lamenta-se que ainda não tenham percebido que a verdadeira mudança para o sucesso implica uma alteração na percepção do indivíduo no seu papel de aluno. Na verdade, a educação de hoje integra e desenvolve ou reproduz e silencia?    

Cronicando - O Retrocesso

Desculpem-me os leitores se o título induz em erro, mas não vou falar de Trump. Para nós, portugueses, ainda é uma ameaça longínqua e, olhando para o último século, constatamos que, quando os outros países fecham fronteiras ou a agressão entre os povos culmina na guerra, Portugal tem sido o porto de abrigo. Disso tem feito jus a História. Os valores humanistas que nos caraterizam têm-se perpetuado, e, felizmente, neste campo, tem havido mudança mas não retrocesso. Ao retrocesso, por norma, atribui-se-lhe uma carga negativa, mas é ele que ocupa o meu espaço mental, porque há medidas inovadoras que são verdadeiramente recuos civilizacionais, travestidos de modernismo e infamemente envoltos no embrulho da dignificação da condição humana. Tudo tem o seu tempo, e este não é decerto para experiências sociais.
É o caso da substituição das cantinas sociais por cabazes alimentares que se tornou agora numa das bandeiras do governo. Tal medida irá abranger cerca de trinta e dois mil beneficiários, a maioria entre os dezoito e os sessenta e cinco anos, segundo a secretária de estado da segurança social, como se a capacidade física fosse o critério único para integrar o novo programa por quem precisa de se alimentar. Desconhece-se quantos têm possibilidades materiais para confecionar os alimentos ou ainda se têm os conhecimentos básicos para o efeito, mas isso não é relevante. Quanto se sabe, a distribuição será semanal, mas ainda não se ouviu falar se o cabaz é individual ou familiar e como se vai definir quem comerá mais ou menos. Mais avançados estavam os patrícios romanos que, em troca das vénias, distribuíam a sportula aos seus clientes e de seguida iam todos ao fórum para mostrar o poder do seu senhor.
Por mais que tente enquadrar esta medida numa ideologia socialista, não consigo vislumbrar onde poderá assentar, sobretudo quando, quase em simultâneo, foi divulgado um estudo que englobou 5600 portugueses com mais de 18 anos, onde se concluiu que uma em cada cinco famílias não tem acesso a uma alimentação saudável e que 19,3 por cento se encontram em situação de insegurança alimentar.
Alterar situações sem modificar os contextos é o que se tem feito em todas áreas, nos últimos quarenta anos, e não basta dar o peixe se não se ensinar a pescar. Bastaria aos decisores políticos descer à terra, e aos fazedores dos estudos erguer os olhos do monitor e perguntar como é na realidade a vida das pessoas. Será que tais agentes não sabem, por exemplo, o que acontece aos milhares de cabazes que por este país são distribuídos no natal a famílias carenciadas? Não se pode suprir a carência material se não for acompanhada de formação na cidadania. Até hoje ainda não vi nenhum programa que se preocupasse verdadeiramente com isso e, por tal, os resultados são os expectáveis. 
A garantia dada é que tais situações serão acompanhadas pela Segurança Social e serão avaliados – refere a Secretária de Estado. Poder-se-á perguntar se será do modo como acompanharam a IPSS de Alijó, onde as imagens apresentadas na TVI nos remetem para os tempos dos hospícios sem regras, saúde ou dignidade.      
Afinal não será apenas um retrocesso mas vários.

 

Cronicando - OS IMPRESCÍNDIVEIS

Não sei se há diferença entre “indispensáveis” e “imprescindíveis”. Na esfera capitalista é provável que "dispensável" e “indispensável” sejam usados quando os patrões se reúnem para decidir quem são os que vão embora ou os que vão manter, por mais algum tempo, enquanto os sugam até ao tutano. Já o “imprescindível” será a única palavra que as elites devem usar quando se referem aos seus. Do “imprescindível” ao “tachinho” a distância é mínima por esses lados, porque o primeiro protege o segundo e o segundo alimenta o primeiro.
As previsões para dois mil e dezassete, segundo os astrólogos mais conceituados na praça, será um ano de virar de página, no qual a revisão de valores adquiridos ou o trabalho em grupo irão orientar os nativos de diversos signos. Os mais especialistas e, sobretudo, os que sondam os astros em busca da conjuntura nacional ou do que virá em seguida, não revelam ao comum dos mortais o que por aí vem. Quer parecer-me que o motivo por que tal continua no segredo dos deuses, é única e simplesmente porque não é segredo. Em termos sociais, as mudanças de ciclo demoram mais tempo; até mesmo quando acontecem fenómenos como as revoluções, eles acontecem após um processo lento e gradativo em que as massas, lenta mas progressivamente, tomam consciência de que é necessário mudar, e, de uma vez por todas, afastar dos centros de decisão os “imprescindíveis” que, naquele exato momento, só já o são para si e para o pequeno grupo que os sustenta.
Sem previsões, nem consultas de búzios ou tarot, é deveras fácil prever que muitos “imprescindíveis” vão saltar para as páginas dos jornais e outros vão querer aparecer nem que para tal tenham de abrir os cordões à bolsa ou se pague com outros “tachinhos” aumentando o círculo e corrompendo a sociedade. Em ano de eleições, e ainda por cima, autárquicas já começam as movimentações no burgo, mais que não seja para os indispensáveis mostrarem ao lado de que imprescindível se posicionam. Não é por acaso que a linguagem jornalística integrou o conceito de “contar armas” como se de um conflito bélico se tratasse: Já há quem esteja a fazer o inventário e, de facto, quem detém o poder tende a encontrar formas de se perpetuar, seja pela manutenção no cargo, pela obra feita com a respetiva placa evocativa, ou ainda pela indicação do sucessor. Em todas as situações tem de se saber com quem se pode contar.
Faz parte da natureza humana que assim seja. A ciência política tem estudado estas e outras movimentações e, ao contrário do esperável, cada vez mais as palavras se mostram acutilantes, as posições extremam-se e as massas tendem a seguir quem apresenta um discurso disruptivo com o discurso oficial. Esta tendência longe de fazer emergir verdadeiros líderes, tende a legitimar personalidades nonsense. No entanto, os tópicos são sempre os mesmos. Deixou-se de falar de pessoas e infraestruturas que o cidadão entendia e passou a falar-se de milhões e projetos que, mesmo que sejam apresentados como fundamentais para a melhoria da qualidade de vida, nada significam para quem está habituado a ter apenas umas dezenas e se preocupa com o básico do dia-a-dia.
Em termos pessoais, não sou contra a lei que obriga os “imprescindíveis” a abandonar as lideranças autárquicas após três mandatos, embora aceitasse que um desses me governasse por muito e longos anos, desde que melhorasse as condições de vida dos munícipes, defendesse os seus interesses e não se deixasse enredar nas armadilhas da vida política: nos favorzinhos, nos lugarzinhos na corrupçãozinha. Já me custa mais a aceitar que um “dispensável” se considere “imprescindível” seja por que motivo for, e vá criando o seu pequeno exército que a breve trecho o transformará num ditadorzinho da pior espécie. Com as devidas distâncias, veio-me à memória um poema de Guerra Junqueiro: “Como se Faz um Monstro.” Mas, para além do mais, quem pretenda desempenhar cargos de natureza política deve, acima de tudo, ter como referência e valor supremo a dignidade da pessoa, seja quando pensa em si ou olha para os outros. Tudo o resto é efémero e o tempo apaga.

Sou gaiato

Faz agora um ano que neste espaço falava da professora-mestra e dos rapazes voluntários de calças rasgadas capazes de rebolar no chão com miúdos sem natal. Pelas minhas contas, já vai em ano e meio que me propus nunca abordar assuntos relacionados com a igreja, não só porque me vou apercebendo de que a minha espiritualidade cresce inversamente proporcional à religiosidade, como sou um defensor de que se deve dar à divindade o que é da divindade e ao mundo o que é do mundo. O problema surge quando as pontas se tocam e o passado nos obriga a assumir posições, sob pena de lançarmos por terra os valores que nos definem e configuram o modo como estamos em sociedade.
Quero acreditar que a notícia transmitida pelos jornais e televisões sobre alegados maus tratos a doentes internados, por um sacerdote da Obra do Calvário em Beire (Penafiel), tenha passado despercebida a muitos leitores e espetadores, fosse pelo alinhamento dos telejornais, fosse ainda porque a figura do padre ancião em nada condiz com os crimes que lhe são imputados. Convirá recordar que esta Casa do Calvário deve o nome à Quinta onde foi erigida pelo Padre Américo para, numa altura em que a assistência social era uma miragem, poder acolher seres humanos com doenças incuráveis e rejeitados por todos. Desnecessário será dizer que a Quinta do Calvário está intimamente relacionada com Paço de Sousa, uma obra do mesmo padre destinada a crianças e jovens abandonados. Não menos relevante é dizer que, desde 2012, a comunicação social tem feito eco de alegados crimes e maus tratos, quer aos jovens, quer aos idosos destas duas instituições implementadas no Vale do Sousa, e localizadas em vários hectares de terrenos ricos no solo, na história e na cobiça que despertam e para a qual fui alertado aos dezanove anos.
Com essa idade, fui convidado a passar um fim de semana em Paço de Sousa. Iniciado em Rilke e fazendo parte de um clube que discutia literatura tendo por “presidente” Daniel Faria – o rapaz raro – como lhe chamaria o Público em 2001, acedi ao convite e lá fui com o Carlos Santos – um gaiato de origem transmontana. Foi em Maio. Hospedado na casa grande de Paço de Sousa, tive de imediato acesso à cozinha onde as “senhoras” (voluntárias) ajudavam os rapazes a preparar o jantar e logo me ofereceram um pedaço de broa confecionada por eles. O sábado foi de convívio com a bola, a quinta, os animais, as rezas e toda aquela vida partilhada.
Domingo era para o Calvário, o que só pelo nome me arrepiou. Chegámos por volta das dez. O padre, talvez o que agora está a ser acusado, disse à Maria que me mostrasse a casa. E Maria, de trinta e três anos, foi a anfitriã. Subiu e desceu escadas, levou-me ao jardim e estendeu roupa na varanda. Ao meio dia, foi comigo ajudar nos almoços dos acamados. Depois foi a nossa vez de comer. Durante a refeição, Maria disse: “- O dia está lindo!”, ao que o padre contestou: “- Ó Maria, o que te dizem os teus olhos que não veem sobre o dia?” E ela: “É primavera. O sol está quentinho, as flores cheiram bem e os pássaros cantam mais.” O almoço continuou, falou-se de outras coisas, mas a pergunta do padre pairava na minha cabeça.
Ao entrar no carro para regressar a Paço de Sousa, ganhei coragem e perguntei ao sacerdote porque tinha feito aquela estranha pergunta. “- Então não se apercebeu?”; “- De quê?”; “- A Maria é cega. Veio para aqui muito pequenina. Foi encontrada numa gruta numa dessas serras daqui. Passou tanta fome e tanta miséria que a córnea dos seus olhos cegou. Mas como está aqui há tanto tempo, faz as tarefas, conhece todos os espaços e é feliz!”   
Compreende-se que à luz dos valores de hoje, em que crianças passam horas nos computadores, e os designados “incuráveis” são arrumados em salões e camas com a pomposa designação de paliativos e continuados, compreende-se que faça confusão que haja quem seja capaz de devolver esperança e crie projetos para alguém se poder realizar dentro das suas limitações. Quem não vive os valores do Padre Américo não os poderá entender, seja agora ou quando for. Mas, pelo menos, não se cobice Paço de Sousa ou a Quinta do Calvário por causa dos euros que possam render. O melhor que têm é o potencial humano que ninguém quis e ninguém quer, e esse, só os poucos que foram escolhidos – mesmo dentro da igreja – poderão entender o seu valor. Boas festas e que muitos renasçam pelas obras porque de fé está o mundo cheio.    

PLENAMENTE DE ACORDO

De acordos está o mundo farto e do seu incumprimento ainda mais. Felizmente para o país e surpresa dos céticos, que os acordos de esquerda se mantêm em vigor e, quando se previa que a engrenagem da geringonça deixasse de funcionar, ganha novo impulso e há orçamento aprovado para 2017. Resultado da política de bastidores ou de intensas negociações nunca se saberá, a única certeza é a capacidade negocial do primeiro-ministro e da sua equipa, aliada a uma coerência e frontalidade que parece caraterizar os parceiros.
Tendo-se estranhado como PCP e BE optaram em não ir para o governo, começa agora a ser mais claro que terão compreendido não ser ainda este o seu tempo e o que aconteceu à direita, em 2013, mostra que decisões “irrevogáveis” são o resultado de uma série de frustrações e pactos falhados ao longo de um tempo de coabitação governativa. Assim é melhor prevenir do que remediar e ficar pelos consensos de incidência parlamentar. O Boletim Económico do Banco de Portugal, referente a outubro de 2016, mantém uma perspetiva otimista do crescimento do PIB e uma relativa moderação no que respeita aos índices de empregabilidade nacional em linha com o que se projeta para a zona euro. Seja como for, os gráficos aproximam-se mais dos de Centeno, afastam-se dos de Cristas, e a a dissonância é dada pelo Conselho de Finanças Públicas que se tem pautado por demonstrar que o crescimento não passará tanto pelo consumo privado mas pelo investimento e exportações.
Tudo estaria bem, pelo que a comparação do “Parece Deus com os seus Anjos” faria todo o sentido, não fosse o estranho caso de alguns anjos que para ter asas, tiveram de perder a cabeça. Dito de outro modo, a trípode que sustenta o governo, desde sempre, baseou a sua ação em três eixos fundamentais - educação, saúde e emprego, mas, agora, foi largando tais valores e ainda não se conhece pelo que serão substituídos ou se serão substituídos, não ficando a este nível um buraco maior do que o das contas públicas. As evidências estão no próprio OE de 2017: na educação há um corte de 281 M€ destinados aos recursos humanos no ensino básico e secundário, o que levou a Fenprof a exigir explicações ao governo, dado contrariar tudo o que até aqui foi anunciado em termos de vinculação de professores, contratação de assistentes operacionais e reposição de salários. Perante isto, surgiram artigos a defender o orçamento e a rubrica da educação, acusando os supostos delatores de desinformação e estarem ao serviço da direita. De facto, comparando as propostas de orçamento para a educação, verifica-se que em 2015, era de 5540 milhões de euros, em 2016 passa para 5843 e em 2017 será de 6023. Não se referirá que a estimativa de execução, que nos dois primeiros anos, se fixou em 5925 M€ e 6122 M€ respetivamente, já que a proposta de orçamento parece ser uma coisa e a estimativa outra.
Mas o problema não são as contas, é a realidade das escolas. Se às turmas de 30 ou mais alunos, associarmos professores com horários semanais de 22 ou 25 horas, com aulas de manhã, à tarde e à noite – alguns a terminar às 23.30 de sexta-feira, mais as aulas de apoio pedagógico ao abrigo do artigo 79º do Estatuto da Carreira Docente, consegue reduzir-se os custos, cumprir a legislação, implementar planos de melhoria e até considerar que houve um aumento no orçamento, ao contrário do tal corte de 1,6%. Se juntarmos a isto, o facto de haver escolas por este país que, à hora dos almoços, retiram os funcionários dos corredores das salas de aula e os concentram nas cantinas, com todos os problemas de segurança e de qualidade de serviço, é possível dar a entender que houve efetivamente um aumento de verba que irá cobrir as despesas porque o corte nos recursos humanos já foi feito, ajeitou-se o volume de formação e espera-se que os programas operacionais façam o resto.
Uma proposta de orçamento é, efetivamente, uma intenção política que privilegia umas áreas em detrimento de outras; a execução orçamental também reflete a gestão do orçamento ao longo do ano. É verdade que propostas devem ser comparadas com propostas, e execuções com execuções. No entanto, e perante os que são como Jesus Cristo que não nada sabia de finanças, como dizia Pessoa, não falem de dotações provisionais que se vão incorporando, porque, como diz o povo: “Quem torto nasce…”. Plenamente de acordo que se regresse às origens e sem falácias nem silogismos hipotéticos, que a educação volte a figurar nos paradigmas de quem nunca a deveria ter abandonado.        

ESCREVER À ESQUERDA

De tal forma a escrita se vulgarizou que, se fosse realizado um inquérito sobre o que é “escrever”, poucos iriam além da primeira entrada que o conceito apresenta num qualquer dicionário. Se “produzir” ou “criar” são apresentados como sinónimos do verbo, também “vacilar” ou “ziguezaguear” se inscrevem mais abaixo não deixando, por isso, de ser menos interessante tais significados.
A este propósito, a revista Sábado da segunda semana de outubro destaca um artigo de Filomena Mónica e António Araújo onde refletem acerca do que une e separa as duas grandes ideologias políticas (esquerda e direita) no Portugal contemporâneo. O texto, a merecer uma leitura atenta, refere que, se por um lado, as ideologias se confrontam, por outro, aproximaram-se em consequência da crise económica e das ameaças que pairam sobre o mundo. Ao mesmo tempo, não deixa de ser interessante que o artigo faça eco das críticas trocadas: a esquerda lamenta-se da hegemonia que a “gémea separada à nascença” tem no mundo dos negócios e a direita a aponta o dedo afirmando que a esquerda domina a imprensa, a cultura e as artes, sendo o maior agravo o de estar presente em tudo o que seja comentário e opinião. Dado o contexto atual, assistiu-se, segundo o artigo, ao esvair dos pilares destes dois campos, tendo a esquerda de admitir e apoiar medidas de segurança e vigilância até aqui impensáveis, e a direita a reconhecer que a confiança liberal na autorregulação dos mercados, com as falhas grosseiras da supervisão, conduziu ao descalabro financeiro de que ainda não se conseguiu sair. Como consequência, os movimentos partidários mais moderados perderam fulgor, e os mais radicais deixaram de se apresentar como alternativa e de confronto com o sistema, decidindo integrá-lo e influenciá-lo diretamente, estando, se não dentro, pelo menos, próximos do poder.     
Sendo eu povo, e partilhando do ponto de vista dos citados autores, não ficaria com as expectativas goradas se a Esquerda que agora nos governa revisitasse os seus valores e resolvesse, pelo menos, três das situações sociais e profissionais que se estão a tornar insuportáveis.
A primeira tem a ver com a educação. Sempre acreditei que o sistema educativo público, ganha quando a governação é socialista. Já tivemos a experiência frustrada com alguém que, encarregue da pasta, apenas teve o mérito de unir os professores em manifestações como nunca antes vistas. Nesta legislatura, o que vai sendo anunciado nem a remendos chega. São medidas avulsas, com um reduzido impacto nas escolas e esquecendo os agentes principais: os professores e os alunos. O fazer “a vista grossa” ao facto de um professor atender por dia cerca de trezentos alunos (tendo as turmas uma média de trinta alunos), mais a carga burocrática, está a levar uns e outros à exaustão, sem falar no envelhecimento dos primeiros e do que tal acarreta. A falta de operacionais em quase todos os estabelecimentos, em breve, dará lugar a um caos com consequências imprevisíveis. Para não falar dos currículos e da carga horária dos alunos.
A segunda decorre da reportagem TVI de oito e nove deste mês sobre o modo como a Inglaterra retira as crianças aos emigrantes portugueses, colocando-os num sistema de adoção marcadamente capitalista onde o que impera é a libra. Sempre vimos na Inglaterra um aliado, mas, desde sempre, este país se serviu em função dos seus interesses. Não ficou bem ao Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas dizer o que disse sobre o que Portugal pode (neste caso não pode fazer) para que crianças portuguesas, retiradas à força por uma tutela estrangeira, possam voltar aos braços dos seus pais também eles portugueses.
Em terceiro lugar, o sector do táxi. Quem conhece os taxistas transmontanos, de facto, não se revê na classe lisboeta, nem na sua verborreia, nem tão pouco no cheiro a tabaco e no pouco asseio que têm nas viaturas. Ninguém contesta que é necessário modernizar o sector e dar-lhe realmente formação, mas daí a desregular o mercado permitindo a concorrência de outros com o argumento de que “com os motoristas da Uber se pode ter uma conversa de jeito e andam limpinhos” vai uma distância considerável mesmo quando se trata do pagamento de impostos. 
Retomo, por isso, o pensamento de José Ferreira Pinto Basto, o visionário que construiu uma nação dentro de outra nação: “O capitalista inteligente é aquele que dá as melhores condições aos seus funcionários”.

UM LUGARZINHO AO SOL

Agora que a época estival desapareceu e meio mundo regressa ao trabalho, seria bom continuar a ter este sol magnífico das praias e o descanso que o mês de agosto propicia. Há quem se contente com guardar recordações, outros realizam-se através das selfies que postam nas redes sociais divulgando aos quatro ventos por onde andaram nem que seja por, apenas, alguns minutos. Também há quem se alegre com o sonho de poder guardar um pouco do calor do verão para os meses de inverno. Se ainda há quem assim pense, não é menos verdade que a estação estival está cada vez mais atípica, e não falamos apenas de clima.
Este verão, para além do que já é habitual, apresentou como novidade uma nova espécie de político que, a propagar-se, irá dar origem a uma classe, pelo menos diferente, e para a qual a palavra rentrée deixará de ter significado. Esta nova espécie é aquela que nem no mês de agosto se cala e continua presente à hora dos telejornais e das antenas abertas como se não houvesse amanhã. Também é verdade que estão aptos a comentar os mais variados assuntos já que o jornalismo também se perpetua com as mesmas perguntas. Recordam-me um amigo, político, que em momentos pós-eleitorais e de indecisão quanto aos lugares a ocupar na máquina do estado, dizia a cada instante que era da sua natureza estar preparado para assumir qualquer cargo, fosse qual fosse o ministério. Pior do que isso, é chegar setembro e apercebermo-nos de que os discursos já não mobilizam, a Atalaia perdeu o fulgor, o Pontal diluiu-se no fumo das matas e  as promessas duram menos que uma lua.
Até agora, os portugueses iam para férias descansados e regressavam sabendo que iam encontrar tudo na mesma. Mas este agosto, como se sabe, abriu com surpresas. Numa dimensão de que poucos se aperceberam, agosto serviu para, no distrito aparecerem mais uma ou duas escolas de formação profissional, privadas, quando em julho os governantes juravam a pés juntos, e em Conselho Municipal de Educação, que nada disto iria acontecer até porque a densidade geográfica não se coaduna com tais necessidades.Com maior impacto foi a notícia de que as casas com maior exposição ao sol e qualidade ambiental assim-assim iriam pagar mais imposto. Temos de concordar que, em termos de timing, não podia a governação escolher melhor mês, já que em agosto o sol entra em todo o canto deste nosso país. Acredito também que tal notícia terá evitado imensos escaldões pois, qualquer cidadão cumpridor, ao sentir o sol a bater-lhe no dorso, enquanto se estirava na praia, não hesitaria em recolher-se debaixo do guarda-sol ao lembrar-se do que o esperará quando receber o IMI com o acréscimo do astro-rei para pagar. 
Em tempos não muito distantes, para tratar da tísica, os médicos aconselhavam os pacientes a terem longos períodos de repouso, de preferência no campo e em zonas ensolaradas evitando os locais mais frios e húmidos. Hoje, parece que já não importa as condições de salubridade e tão habituados estamos ao artificial e aos remédios que consideram desnecessária tanta preocupação com a localização do sítio onde descansamos. Numa era de super-homens quem se importa com o modo como o cidadão comum vive, desde que continue a pagar o que se perdoa às grandes multinacionais? A estas sob a designação de “incentivos fiscais” ou a coberto das interpretações mais enviusadas da lei não só se lhe constroem fortes alicerces, como também se lhes permite ter todos os lugares que queiram e, de preferência, ao sol e acima das nossas cabeças.
Curioso não deixará de ser que a mesma governação que introduz este coeficiente a sancionar os imóveis com maior exposição solar, pertence ao espectro político dos que apresentam incentivos fiscais para quem opte pelo uso de energias renováveis e instale painéis solares. Concordo que é pouco estético ver aqueles retângulos espalhados pelos telhados. Era preferível os gatos ou até as pombas… mas, a menos que se esteja a pensar numa solução semelhante à adotada pela aldeia de Rjukan na Noruega, não prevejo como podem ser conciliadas duas medidas tão díspares na sua essência.  
Para nós, povo, ainda há soluções. Uma será continuar a morar na casa dos pais, a outra pagar o imposto, ou caso nenhuma destas esteja ao alcance teremos de nos contentar com um buraquinho que, quanto mais escuro for, melhor será. Não se admirem depois quando for notícia que famílias inteiras cavaram uma toca no subsolo e, qual cena kafkiana, se transformaram em toupeiras. No entanto, para alegria de todos e uma pontinha de inveja de alguns, há quem procure um lugarzinho ao sol por outras bandas; seja na Goldam-Sachs, na mexicana Pemex ou ainda na Arrow-Global. “-Estes sim, são cá dos meus!” – Diria um professor dos tempos idos e que também já partiu… para eternidade.