Ave Marcelo, desperati te salutant

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Ter, 05/07/2016 - 09:48


As presidências abertas de Mário Soares, já lá vão trinta anos, têm sido replicadas pelos sucessores, embora com a atribuição de designações derivadas, mais ou menos criativas. Do que temos observado a ideia base é a mesma. Proclamadas intenções, pias e veneráveis, que já soam a memorizada ladainha, num ritual onde não faltam ares incensados que, como sabemos, se podem tornar entorpecentes, por vezes enjoativos, quando do que precisávamos era do ar renovado, que suporta a esperança de mais vida para viver.
Marcelo Rebelo de Sousa, nestes primeiros meses, tem confirmado a sua fama de frenético incansável, homem sem sono, sempre disposto para mais uma palavra à velhinha ou ao menino, ao primeiro ministro ou à mulher de trabalho duro que lhe vinca o rosto, ou mesmo no fim de um jogo de futebol, por entre os depoimentos ofegantes dos heróis dos estádios.
Desenha-se um perfil presidencial que vai além da bonomia, até displicência, de Soares, mais mobilizador do que o calculismo encantador de Sampaio e quase nos antípodas do hieratismo trôpego de Cavaco. Claro que também nada tem a ver com essoutra rigidez, de que alguns já não se lembram, do primeiro presidente eleito, Ramalho Eanes, que durante algum tempo fazia dos óculos escuros a sua imagem de marca.
Há quarenta anos, a figura esfíngica de Eanes transmita uma gravidade que o respeito pelo novo regime requeria. Quando o primeiro presidente se deslocou pelo país ainda não se sentia a dor lancinante da agonia do interior, embora os sinais já não enganassem os mais atentos.
Dez anos depois, Soares passou uns dias no distrito, animando expectativas de um desenvolvimento equilibrado do país. Passaram os seus dois mandatos e acentuaram-se as diferenças, com a torrente das gerações mais novas a afluir aos grandes centros, que cresceram desmesuradamente, apropriando-se dos meios que se destinavam às regiões em risco de depressão.
Cantarolava-se, por então, a Califórnia da Europa, na voz de falsete do barão de Boliqueime, nesse tempo primeiro ministro, presidente nos últimos dez anos, que deixou alguns murmúrios sobre o interior que parecem lágrimas de crocodilo.
Entretanto, decorrera a década do very british Sampaio que, por duas vezes, também veio a este interior, sentenciou sobre desígnios inalienáveis, mas não denunciou o imediatismo eleitoralista e saiu, triunfal, com aplauso de todos os que nos viraram as costas, porventura avisados sobre as cenas chocantes que poderiam contemplar.
Agora, mais uma vez, estamos a ser distinguidos numa das primeiras deslocações do novo presidente. A um ritmo que as benditas auto-estradas permitem. Só que das auto-estradas vê-se pouco país, a gente que aqui sobra não estará nas bermas e, quando voltar a Cascais, depois de mais um saltinho a França, para ver a bola, Marcelo já terá agendadas milhentas iniciativas que o manterão na ribalta, enquanto dezenas de milhares de nordestinos se encaminharão para o reino das trevas, sem poderem sequer contemplar as promessas de futuro nos rostos das crianças e dos jovens. O presidente da República não tem funções executivas. Mas, tem a obrigação de, finalmente, exigir a quem governa a mudança de rumo, para bem do país e das gerações que hão-de vir.

PS – Marcelo defendeu, ontem, uma unidade de missão para o Douro. Como o governo já havia criado uma unidade de missão para o interior, fica-se à espera que a fartura de missões não redunde em coisa nenhuma.

Por Teófilo Vaz