Ter, 10/01/2017 - 10:13
O país está a viver o cerimonial do passamento de Mário Soares, figura que certamente, nos próximos séculos, terá lugar na história de Portugal, da Europa e do mundo.
Teve uma vida dedicada à política, num patamar de inegável nobreza, primeiro no combate, decidido e entusiasta, ao arcaico Estado Novo, com duro sacrifício de décadas, alimentando a esperança da liberdade e da justiça, depois, na batalha decisiva de 1975, contra o totalitarismo dito de esquerda, que deixou marcas de grande miséria humana num mundo que podíamos estar a viver com outra tranquilidade.
A democracia portuguesa dos últimos quarenta anos é obra também muito sua, mesmo quando lhe encontramos defeitos inegáveis, a par de reconhecidas virtualidades.
Ninguém lhe poderá negar a coragem e a frontalidade, que lhe granjearam o respeito da imensa maioria dos portugueses, conscientes de quanto foi decisiva a sua liderança desassombrada, que permitiu travar, em conjugação com sectores militares democráticos, a aventura sectária para instalação de um totalitarismo à moda soviética, que quase levou o país à guerra civil, depois de treze anos de desgaste no conflitos em África.
Os combates que Soares liderou foram decisivos, mas não arredaram para sempre as ameaças, mesmo se hoje tudo aparenta viver na paz do Senhor. Na verdade, no mundo continua a sentir-se o risco de bandoleiros da história poderem ter, em tempos próximos, oportunidades para dar largas à sua propensão sanguinária, que se alimenta do caos que a demagogia proporciona.
Nos últimos tempos a figura de Mário Soares deixou algumas perplexidades, mas haveremos de reconhecer que a natureza também é cruel quando torna exuberantes os sinais de finitude, que requerem o resguardo, nem sempre garantido, mas integráveis no processo sempre trágico da deterioração do nosso suporte fisiológico.
Porque o tempo gasta sempre a vida, a morte, para nosso sossego, é, há muito, entendida como uma passagem para um desconhecido fantástico ou para o inexorável esquecimento, mais dia menos dia, como lembrou Álvaro de Campos, essa declinação angustiada de Pessoa.
Se nos distanciarmos do natural individualismo e nos concebermos como grãos cósmicos no universo, uma construção infinita, atenuaremos, por agora, essa sensação de que, afinal, nada vale a pena, mesmo quando a alma é do tamanho de uma galáxia.
Conforta-nos a conquista, que cremos heróica, do conhecimento e a consolidação da memória que tem mostrado condições para que nos expliquemos, por enquanto, na medida das nossas ansiedades.
O essencial do legado de Soares foram quase setenta anos da dignidade dos que marcam a história para o bem da humanidade. Ele, que não teve esperanças de eternidades compensadoras, foi capaz de uma dedicação a causas comuns para que, depois do seu inevitável esquecimento, os vindouros possam fazer a viagem da felicidade possível.
Por isso, foi mesmo fixe, como dizia a malta que o apoiou na jornada memorável de 1985, que o conduziu à condição de presidente desta república, de gente com direito a ser feliz, apesar das lágrimas que lhe afloram aos olhos neste Janeiro frio mas também luminoso.
Por Teófilo Vaz