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NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Gabriel Ferreira (n. Madrid, 1678)

Dias depois do auto da fé de 13.2.1667, onde seu pai saiu sambenitado e certamente com receio que o prendessem, Gabriel Ferreira Henriques apresentou-se na inquisição de Coimbra, onde o ouviram e mandaram em paz. (1) 
Dois anos depois, foi preso pelo mesmo tribunal, saindo apenas em fevereiro de 1673. (2) Posto em liberdade, rumaria a Espanha onde, por 1678, teve um filho de uma mulher cuja identidade se ignora. Enjeitado pela mãe e contando uns 4 anos, Francisco Gabriel Ferreira foi trazido pelo pai para Freixo de Numão, onde se criou, em casa de seu avô, Francisco Ferreira Isidro.
Da mãe, não saberia o nome e ao pai nunca mais o veria, pois logo se abalou para o Brasil, de onde não mais vieram novas. Em Freixo, seria o tio António Henriques Alvim que mais perto estaria e o introduziu na lei de Moisés.
Seria curta a permanência de Francisco em Numão, antes parecendo viver em deslocações constantes por este Portugal afora, conforme se depreende de suas declarações. Não se estranhará, assim, que fosse casar a Portalegre onde um primo paterno trazia arrendado o contrato da distribuição do tabaco, empregando vários parentes nos estancos.
Clara Fonseca se chamou a sua mulher, também nascida fora do casamento, uns 9 anos mais velha que ele, e que apresentava um estatuto empresarial digno de registo: negociante de sedas e chocolateira. Apresentada embora como filha de pai incógnito, este chamar-se-ia Domingos Fernandes Corcho, originário de Pinhel e assistente em Portalegre, também contratador do tabaco e de uma família extremamente rica e importante.
O casamento aconteceria antes de 1698, altura em que o casal se encontrava já com residência estabelecida no Porto, onde lhe nasceram duas filhas: Violante Maria, que casou com Manuel Pinheiro Nogueira, fabricante de meias de seda, natural de Freixo de Espada à Cinta e Mariana de Alvim, ou Fonseca, que casou com Luís Miranda de Castro, contratador de tabaco em terras do Alto Minho.
Seria uma família abastada, que tinha ao serviço de casa pelo menos duas criadas. Uma delas chamava-se Isabel Francisca, natural de Barcelos que os serviu por 2 anos e depois foi servir para Miragaia. A outra chamava-se Joana e havia 7 anos que saíra e fora servir para casa de um padre “mestre de capela da Sé”.
Em 24.7.1724, aconselhada pelo padre a quem fora confessar-se, Francisca dirigiu-se a casa de Francisco de Melo, familiar da inquisição, denunciando os antigos patrões, num extenso rol de práticas judaicas, acrescentando que Joana podia confirmar tudo.
Chegada uma carta de F. Melo a Coimbra, os inquisidores mandaram o comissário Carlos da Rocha Pereira ouvir judicialmente as duas criadas. A primeira repetiu e acrescentou as denúncias. A segunda “perguntada miudamente, respondeu muito pouco e ao mais respondia que não sabia, ou o contrário do que vinha articulado” – conforme escreveu o próprio comissário, acrescentando:
- Lhe dissera que, acabando o contrato em casa do mestre da capela, fazia conta de tornar para casa dos denunciados.
Embora houvesse apenas uma denúncia e algo suspeita, os inquisidores mandaram prender Francisco, Clara e a filha Mariana, que na casa paterna vivia enquanto o marido andava por Viana no trato do tabaco. (3)
No próprio dia em que foi entregue em Coimbra, Francisco começou a confessar as suas culpas e denunciar correligionários, tornando-se o seu processo num impressionante estendal de informações sobre famílias de judaizantes, não apenas do Porto, mas de meio Portugal, nomeadamente de Trás-os-Montes e Beiras. Ao ler este processo, fica-se com a impressão que Francisco conhecia todo o mundo, que andava bem informado - uma verdadeira central de informações de judaísmo. Perante os inquisidores, Francisco desdobrou a vidinha de muita gente, em especial rendeiros e contratadores, gente de trato grosso e muitos cabedais.
O caudal de informações despejado foi tão grande que parece ter entupido os canais na mesa da inquisição. Imagine-se: no decurso do seu depoimento, Francisco contou que fizera duas viagens à Inglaterra e à Holanda. Normalmente uma tal confissão provocava um nunca mais acabar de perguntas. Pois, nem sequer uma pergunta lhe foi feita acerca do assunto! Dir-se-ia que a curiosidade dos inquisidores estava completamente satisfeita.
Homem de muitos contactos, em sua casa, no Porto, Francisco acolhia gente da maior importância e proporcionava a realização de eventos, os mais estranhos, como este:
- Há 7 anos (…) Brites Pinheira casou em casa dele confitente, por intervenção de sua mulher Clara da Fonseca, foi dotada com quatrocentos mil réis por Gabriel Lopes Pinheiro (…) e tem por certo que como observante da mesma lei, se lhe procurou o dote, o qual dote lhe veio entregar no dia do seu recebimento o médico Gaspar Dias Fernandes, (…) o qual é tio do mesmo Gabriel Lopes Pinheiro… Francisca Alvim, que era a dotada…
Gaspar Dias Fernandes é personagem central da narrativa de Francisco que o acusou de vários “crimes” como o de violar os segredos da inquisição trocando cartas com um irmão que estava preso na cadeia de Coimbra. E também o acusou de exportar clandestina e ilegalmente capitais pertencentes a gente fugida da inquisição. Veja-se um caso concreto:
- Neste inverno passado, Fernando Lopes da Costa, advogado de Trancoso, vendeu uma quinta que tinha na Anobra, termo de Coimbra (…) não sabe por quanto, mas sabe que todo o dinheiro da dita venda se entregou ao médico do partido, Gaspar Dias Fernandes (…) para o fim de o dito médico lho pôr seguro no Norte.
Gaspar Dias pertencia ao círculo de pessoas de relações mais estreitas com Francisco Gabriel, círculo onde se incluía João Lopes da Silva, natural de Trancoso e Salvador Mendes Furtado, de Bragança, contratador do tabaco. Aliás, na sua denúncia, Isabel Francisca disse que eles se juntavam frequentemente nas casas de uns e outros, deixando entender que faziam reuniões em sinagoga.
Uma família cuja vida aparece no estendal de Francisco é a dos Lotas, de Bragança. E entre as várias denúncias feitas contra eles, há uma em que o denunciante parece mais empenhado no sequestro de bens de António Mendes Álvares, Lotas, que os próprios inquisidores. Com efeito, tendo o Lotas fugido para Inglaterra e tendo a receber perto de 5 contos de réis, de rendas na comarca de Lamego, procurou que alguém lhos cobrasse, nomeadamente o nosso biografado que “lhe tratou dele em algum tempo”. Pois, não querem saber que ele foi contar aos inquisidores a existência de tais dinheiros, justificando que Maria Josefa, a mulher do Lotas, entretanto presa na inquisição “não daria tal dívida ao inventário”, com o que a inquisição perderia uma boa receita.   
Os medos da inquisição assombravam o Porto e, naturalmente, havia muitos que fugiam. Também nesse particular as denúncias de Francisco são significativas. Uma respeita a Brites Pereira, mulher de José Rodrigues Gabriel, originários de Bragança e moradores no Porto, a qual pediu “a ele confitente lhe quisesse pôr a dita moça, Maria, em Braga, em casa de Duarte Pereira D´Eça, estanqueiro, porque se temia das prisões do santo ofício, pois o pai da dita moça tinha notícia estava de presente preso…”
Outro caso sucedeu com uma filha de Francisco Rodrigues Brandão: dormiu uma noite em sua casa e “por razão de não ser presa” foi levada para Valença, por seu genro, Luís de Miranda Castro.
Como “judeu” e “passador de judeus” denunciou particularmente um primo seu, que então foi preso. Vejam:
- Seu primo, Henrique Vaz de Oliveira, em vários tempos, tem dado ajuda e favor a cristãos-novos para passarem para Castela e França fugindo às prisões do santo ofício, como foi há 14 anos a família de Fernando Lopes que fugiu do Porto, e também presume que o dito seu primo Henrique Vaz de Oliveira é circuncidado, não por que tenha ouvido falar nisto, mas pela grande assistência que o mesmo tem feito em Bayonne de França. Aonde tem uma irmã e um tio profitente da lei de Moisés e aonde ia muitas vezes.
Impossível focar os múltiplos aspetos do processo de Francisco Gabriel. Chocante que, para além dos factos e das provas que apontava, ele até “presumia” culpas, como se fora um inquisidor. Mas há uma declaração deveras interessante. Depois de dizer que como judeu, não acreditava na Santíssima Trindade, “contudo sempre em seu coração teve grande amor à pessoa de Cristo Nosso Senhor como homem justíssimo (…) e continuadamente entre os seus erros tinha muitos despertadores que a sua consciência lhe punha”. Aqui está o drama dos marranos: viver em permanência com os despertadores da consciência. Muitos encontraram a saída desse drama no ateísmo e no livre pensamento. Tê-la-ia encontrado Francisco Gabriel Ferreira? Atente-se nesta última declaração que parece antecipar a tese da lei natural e do bom selvagem, proclamada pelos Enciclopedistas e pela Revolução Francesa:
- Teve sempre consigo o bem de que lhe parece vivia muito conforme a lei natural, ao menos fazia quanto podia.

Notas e Bibliografia:
1-ANDRADE e GUIMARÃES – Os Isidros, a epopeia de uma família de cristãos-novos de Torre de Moncorvo, pp. 89-98, ed. Lema d´Origem, Porto, 20012.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 9191, de Gabriel Ferreira Henriques.
3-IDEM, pº 9669, de Francisco Gabriel Ferreira; pº 3139, de Clara da Fonseca; pº 6475, de Mariana de Alvim (da Fonseca).
 

A Praça do meu descontentamento

Já teve vários nomes. Praça da Cruz de S. Pedro, Praça do Seixo, Praça Almeida Garrett e actualmente Praça da Sé. Claro que só tenho memória para este último mas lembra-me de, e  já íamos nos anos 80, o Sr. Júlio Coelho exibir orgulhosamente a Praça Almeida Garrett como domicílio da sede social da sua empresa. O actual nome é um rebaptismo conseguido nos anos 30 do passado século quando o Dr. Raúl Teixeira solicitou à Câmara que procedesse à restituição do nome de Praça da Sé. Quando se chamou Praça da Sé pela primeira vez não sei mas foi antes de 1902 porque nessa altura passou a chamar-se Praça Almeida Garrett. Bom, a habitual dança de nomes que as conjunturas políticas sempre ditam.
Também já conheceu vários desenhos. Uns, fruto de concepções urbanísticas, outros, do ego do Presidente da Câmara. A Praça deve ter atingido esse estatuto quando em 1689 os Jesuítas aí colocaram o Cruzeiro. Em 1875 o Presidente da Câmara, naturalmente um fogoso liberal, mandou retirar o Cruzeiro e redesenhou a Praça colocando aí um coreto, bancos de jardim e árvores. Em 1931 um grupo de Bragançanos conseguiu convencer a Câmara a recolocar o Cruzeiro no centro da Praça dentro de uma plataforma mais ou menos elíptica elevada do chão com altura de passeio. Havia também um candeeiro de dois braços na parte de cima da Praça em frente aos ”Coelhos”. Foi esta a primeira Praça da Sé que conheci. Depois o Sr. Adriano Pires, Presidente da Câmara dos anos 60, fez alterações e deu um desenho à Praça muito parecido com o que tem hoje. Chamaram-lhe a “eira de Espinhosela” por causa das ligações que ele tinha a essa aldeia e pelas que a Praça tinha a uma eira. Mas o Sr. Adriano Pires num acto de humildade reconheceu o erro e devolveu a Praça ao anterior figurino. E foi assim que em 2000 o Procon a veio encontrar e a pôs no estado em que está. O que agora vemos não é uma Praça mas antes uma extensão da Igreja, um adro. Mesmo a circulação automóvel não se faz no sentido directo, como é usual nas Praças, mas sim no sentido dos ponteiros do relógio também chamado sentido retrógrado. Ironia.
Foi aí, numa Praça cujo desenho, em 70 anos, nunca ninguém questionou, que muitos jovens fizeram o tirocínio para adultos; foi aí que esperámos, com ansiedade, a saída das pautas de exame; foi aí que começámos a falar de futebol; foi aí que nos iniciámos na política; foi aí que experimentámos o nosso fervor Mariano, embora isto se resumisse à apreciação das do “Lar das grandes” a caminho do “Mês de Maria”; foi aí a nossa feira de vaidades; foi aí que bebemos os primeiros “finos”; foi aí que contámos histórias de caça e pesca; foi aí que, de nervosismo, esfregámos uma mão na outra à espera de uma oral; foi aí que, timidamente, abordámos algumas colegas; foi aí que sentimos o amargo de alguns insucessos; foi aí que começámos a falar de “outras coisas”; foi aí, ”onde me sento e confundo com gente de todo o Mundo…”.
Depois veio o Cruzeiro (café) e o 25 de Abril e a Praça potenciou os ritmos, os sons, as cores, a alegria transmitindo-nos uma vontade frenética de viver. E quando me lembram estes tempos assalta-me uma vontade irresistível de dar os parabéns a “nocês”. (Apanho a boleia desta “boutade” de O´neill para camuflar a imodéstia do auto elogio. Porque eu também estava lá). Claro que estamos a falar da Praça- sociológica, da Praça- centro cívico e essa Praça morreu, não existe. Quando comparada com a Praça desses anos a actual só faz lembrar a amargura do Natal de Torga. Porque esta Praça “…do que prometeu, só bonito na lembrança…”. E porque chegou a este extremo de decadência? Muita coisa há-de ter contribuído mas o arranjo urbanístico que agora patenteia não é de forma alguma alheio a isso. Repare-se que a partir do Procon a Praça desertifica, os comércios fecham e outros abrem falência. Coincidência? Não sei. Mas sei que sociologia não é para tecnocratas. E isto levanta a questão: deve ou não, haver limites à intervenção da Câmara nas zonas antigas da Cidade? Se as intervenções em “casco histórico”, feitas por particulares, estão sujeitas a regras apertadíssimas que a própria Câmara se encarrega de escrutinar porque razão não são as obras da Câmara sujeitas a qualquer tipo de controle? E “Quem julga o Juiz”? perguntariam os Kafkianos. Mas devia haver controle, sejam normas-travão, cláusulas de salvaguarda ou veredito de um painel de peritos, sobre as obras da Câmara em zona antiga esteja ela classificada ou não a fim de evitar desmandos de um que se arroga no direito de pensar que pensa melhor que todos os outros. Note-se que o Estado Português se sentiu na necessidade de reeditar o Conselho Superior das Obras Públicas (Órgão consultivo que se pronunciará sobre as grandes obras do Estado) porque tem medo que o voluntarismo, a força dos “Lobbys” ou tiques de moda possam influenciar negativamente as decisões do Governo. E se essas obras são importantes pelos montantes envolvidos, algumas obras das Câmaras, à proporção, não o são menos com a agravante de envolver diretamente pessoas e isso torna o assunto delicado porque elas são vulneráveis a ligações afectivas com as coisas do seu espaço. Num espaço urbanizado, de há já dezenas de anos, todas as pedras têm uma história, as esquinas um sussurro e até um vidro partido num caixilho empenado fala connosco sem estar lá. São estas ligações, estas raízes, ou antes, a sua ausência que os sociólogos entenderam por responsável nas angústias dos habitantes de Brasília nos anos 70. (como se sabe Brasília era na altura uma cidade nova, sem história) Diziam eles que os Brasilienses viviam, materialmente, muito bem mas angustiados, deslocados como se estivessem numa nave espacial sem qualquer ligação às coisas. “Entre eles e as coisas não havia vizinhança”. É esta vizinhança que é desfeita quando das grandes intervenções em zona antiga.
E tendo a Câmara tanta urbanização recente para dar asas ao obreirismo, à criatividade, à inovação, aos novos conceitos urbanísticos, como se entende esta atracção por intervenções em espaços há muito urbanizados? Mais parece uma pulsão irresistível de apagar o que lá estava. Resquícios medievais de não deixar pedra sobre pedra na cidade conquistada com o medo que o espírito dos anteriores habitantes, presente nas suas construções, contaminasse o espírito dos actuais? Ou como aconteceu há bem pouco tempo em Palmira que o DAESH dinamitou ícones religiosos só porque de uma religião que eles não professam (em tudo parecido com a retirada do Cruzeiro da Praça da Sé pelo Presidente da Câmara em 1875 por este ter sido posto pelos Jesuítas). O Mundo reagiu indignado e eu associei-me a essa indignação sem esquecer, no entanto, que os meus ícones estão em Bragança. Mais modestos mas, ainda assim, ícones. Há, em todos estes casos, uma repulsa pela herança quer material quer espiritual.
Praticamente todas as últimas grandes obras que se fizeram em Bragança sofrem desse mal. Um profundo desrespeito pelos cidadãos e pela herança que a cidade carrega. Mas há uma que particularmente me impressionou. A forma como foram tratados os moradores da rua de vale de Álvaro ou, como também era conhecida, a Av. da Adega Cooperativa. Essa Av. que era uma extensão da Av. João da Cruz deixou de sê-lo por corte do cordão umbilical que a ligava à Bragança antiga provocando um rombo na coesão social, uma alteração dos ritmos do quotidiano dos moradores numa despromoção social que não devia ser possível. A ligação ao “núcleo duro” da Cidade é feita agora apenas por interpostos bairros, como bairro periférico que é, com perdas de bens inegociáveis sobretudo o da consideração. Esta segregação, esta ostracização, esta pena de banimento são, no mínimo, de um iluminismo tardio e assustador.

À VOLTA DO MUNDO

Há as “palavras-chave” e há os “chavões”. O início do ano propicia-se ao uso de umas e de outras. O decurso do tempo vai delapidando a brutalidade das palavras, tornando as palavras-chave mais consistentes, ao mesmo tempo que os chavões são remetidos para o silêncio, sendo retirados do baú discursivo sempre que os ciclos se repetem e, à falta do melhor, lança-se mão do que já existe, seja a “Páscoa feliz”, o “Feliz aniversário” ou as “Boas férias” com que se sonha o ano inteiro.
Dois mil e dezoito começou a afastar-se dos “clichés” favorecido pelas novas tecnologias que oferecendo “emojis” e mensagens cintilantes, subtraem a criatividade e geram discursos impessoais em troca do grafismo atraente e da redundância da mensagem, chegando-se ao cúmulo desta incluir um texto onde pede para ser partilhada. Não é por isso de estranhar que a mesma pessoa receba as mesmas felicitações duas, três ou mais vezes conforme o número de amigos e os gostos sejam semelhantes. Conclui-se por isso que, a este nível, tudo se mantém, o que muda é apenas a forma como chega o conteúdo.
Às imagens dos fogos-de-artifício sucedeu uma outra tirada na mesma altura e no mesmo lugar, no exato momento em que os foguetes iluminavam os céus e as trevas cobriam a terra. Era meia noite nas areias de Copacabana. Lucas Landau, fotógrafo a trabalhar para a agência Reuters, captou através da sua objetiva a imagem de um menino negro, de nove anos, sozinho, a assistir ao fogo-de-artifício enquanto, ao fundo, uma multidão vestida de branco se abraça e comemora a chegada do novo ano. Deve ter sido a fotografia que mais comentários suscitou querendo, uns, ver nela a metáfora da pobreza e do racismo que grassa em Terras de Vera Cruz, onde quinhentos anos de convivência inter-racial e quase duzentos do grito do Ipiranga não conseguiram por fim a este fenómeno. Outros, embora menos, viram poesia naquele abandono, limitando a análise a apenas uma criança deslumbrada, numa noite de verão, na praia de Copacabana a assistir à passagem de ano, como apenas as crianças conseguem vê-la. Por mim, alinharia na segunda interpretação envolta numa estética contemporânea onde os contrastes convergem numa tela ímpar. Infelizmente, há muito tempo, ensinaram-me a ver para lá do evidente, “do outro lado do espelho” – como me diziam, e por esse prisma vejo mesmo solidão, abandono e fome e onde alguém vê uma criança “encantada com o fogo-de-artifício” eu vejo um olhar triste, de alguém com fome e frio e sem ninguém para o amparar.
Mais ao lado, somos presenteados com King Jong-Un e Donald Trump a travar-se de razões sobre quem tem o botão maior, como se nesta situação fosse relevante o tamanho. Os contornos desta novela picaresca deveriam servir para deixar no ano velho o ar sisudo que afugentou o sorriso dos nossos rostos, sobretudo, se a estes dois “botões” acrescentássemos o “botãozinho” do extraterrestre imortalizado na voz de Amália. Carlos Paião, o compositor, atribuiu a esse pequeno comando a capacidade de o E.T. a falar o que, em abono da verdade, serve os mesmos fins no que respeita aos dois anteriores protagonistas. Contudo, neste caso, mais do que colocá-los a falar, serve para outros falarem deles o que, na esfera política é sempre conveniente. Agora, escolher o dia em que o mundo teima em comemorar o Dia Mundial da Paz para colocar na agenda a eminência de uma guerra nuclear é de tão mau-gosto que apaga qualquer esperança num ano melhor, em que as convergências dos líderes mundiais pudessem servir para superar as misérias e os conflitos que grassam há mais ou menos tempo, ceifando vidas, adiando projetos e arruinando sociedades.
Por isto, lá teremos de voltar aos chavões que circulam por aí e nem sempre com a devida vénia aos seus autores: “Se queres mudar o mundo, começa por mudar-te a ti mesmo.” – Mahatma Gandhi. De facto, perante a voragem do tempo e a irreflexão dos loucos, a cada um resta apenas olhar para si e reinventar-se sem perder o essencial.

O maior sucesso de todos os tempos

Esta crónica não pretende ser uma prédica religiosa e muito menos uma lição de moral. Deverá ser entendida, tão-só, como uma inócua reflexão natalícia, mais apropositada depois que esmoreceu a alegria das festas familiares, se digeriram os acepipes de consoada e se silenciou o chinfrim dos festejos da passagem de ano.
Muito se fala, hoje em dia, de sucesso e de fracasso, de riqueza e de pobreza. Os meios de comunicação social bombardeiam-nos diariamente com notícias de humanos que alcançam feitos retumbantes no desporto, no espetáculo ou na política, a ponto de os converter em seres de outro mundo, deuses (com letra pequena) do nosso tempo.
Aureolados de fama sobrenadam em dinheiro, estravagâncias e luxúria porque multidões fascinadas os vitoriam, compram produtos a eles relativos e de alguma forma os procuram imitar.
Esta poderá não ser a grande marca da besta apocalíptica mas é, seguramente, um sinal dos tempos, um estigma da Civilização vigente que constrói vidas de sonho para meia dúzia e de tristeza, desilusão e desgraça para milhões.
Civilização que cada vez mais confunde a verdade com a mentira, tudo dependendo da força e arte com que a comunicação trata as notícias. Civilização que já não separa o bem, que reduziu ao prazer, do mal, que se apropriou da liberdade.
Não é de espantar, portanto, que a mensagem de verdade, de amor e de paz de Jesus Cristo, o expoente maior da História do Humanismo e da Humanidade seja, nos tempos que correm, sistematicamente ignorada ou adulterada.
O próprio Papa Francisco se enredou num lamentável equívoco quando, numa homilia proferida em Nova Iorque há dois anos atrás, afirmou referindo-se a Jesus Cristo: “a sua vida, humanamente falando, acabou com um fracasso: o fracasso da cruz". Isto levou a que, talvez injustamente, muitos e insuspeitos seguidores de Cristo tenham acusado o Papa Francisco de ser herético.
Até eu, que nutro pelo actual Papa especial admiração e simpatia, também estou em total desacordo com ele neste ponto. Porque, mesmo se não tivermos em conta o mistério insondável da Ressurreição, Jesus Cristo ao morrer na Cruz cumpriu, gloriosamente, a Sua missão, que no Seu próprio dizer, era essa mesma: morrer para nos salvar.
Por isso, nenhum crente poderá aceitar que o Papa ponha em causa este facto de ânimo leve e muito menos sugira que Jesus Cristo não nos salvou.
Apesar de não ter sido promovido a bispo ou sido eleito Papa, não ter batido recordes, ganho qualquer prémio, tão pouco o Nobel da paz, vendido milhões de discos ou enriquecido, a vida de Jesus Cristo constitui o maior sucesso de todos os tempos. Mesmo humanamente falando.
Tanto assim é que, volvidos mais dois mil anos, acima de mil milhões de almas continuam a seguir a Sua doutrina, considerando apenas a Igreja Católica, a maior organização global que alguma vez operou sobre a Terra.
Muito embora o mal e a dor não tenham desaparecido com a morte de Jesus Cristo crucificado no Calvário, a Sua missão salvífica continua a cumprir-se hora a hora no coração daqueles que seguem os Seus ensinamentos e que acreditam que se consumará apoteoticamente no final dos tempos.
Ninguém é fracassado só porque não é rico, líder político ou campeão numa qualquer modalidade e apenas é bem-sucedido quando ultrapassa as suas limitações e bem cumpre as suas missões.
A competição fundamental de cada um é consigo próprio. É a si mesmo que cada um se deve vencer. Humanamente falando.
Este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico.

 

CONTRATAÇÃO PÚBLICA (Notas de reflexão)

Entrou em vigor, a 1 de janeiro do corrente ano de 2018 o novo Código dos Contratos Públicos de acordo com a redação que lhe é dada pelo Decreto Lei 111-B/2017 de 31 de agosto. Numa altura em que está na ordem do dia o tema do financiamento dos partidos e a sua respetiva regulação é oportuno abordar este assunto de forma direta, clara e sem qualquer escamoteamento. Sendo a última alteração significativa de 2012 (DL 149/2012 de 12 de julho) deve atentar-se, por um lado nas alterações introduzidas, enquadrá-las nas justificações inseridas no preâmbulo do diploma e olhar para o passado recente de vigência legal que, temporalmente se sobrepõe ao último quadriénio autarquico.
Comecemos por aqui. Em consulta ao portal da contratação pública, verifica-se que, no distrito de Bragança, que é o que interessa para o caso, (nada indica que tenha sido diferente no resto do país) o recurso à contratação pública por parte das autarquias atingiu valores notoriamente exagerados. Não é preciso recorrer ao estafado adágio de que à mulher de César não basta ser séria, para ter como certo que o uso dos dinheiros públicos deve ser criterioso, transparente e parcimonioso. Ora, dos procedimentos habituais para adjudicação de obras e fornecimentos, o Concurso Público e o Ajuste Direto é aquele e não este, que cumpre esta norma que deveria ser a diretiva primordial dos responsáveis das autarquias. E tanto assim é que se atentarmos nas declarações públicas de Presidentes de Câmara, sobretudo na apresentação de contas às respetivas Assembleias Municipais, usam e abusam de terminologia onde abundam qualificadores de rigor, transparência e equidade. Curiosamente, tal acontece quando na respetiva Câmara o Ajuste Direto foi regra quando devia ser exceção. No nosso distrito as adjudicações diretas ultrapassaram, em valor, as concursais e se é certo que houve municípios em que não chegaram aos 32%, outros houve em que ultrapassaram os 80% o que é, notoriamente, exagerado!
Ganha pois significado a intenção do legislador expressa no preâmbulo legislativo de melhoria da transparência e boa gestão pública sendo uma delas, precisamente a limitação do uso do Ajuste Direto. Assim é pois os limites para esta modalidade já que os anteriores valores de 150.000 euros nas empreitadas e 75.000 euros nos fornecimentos baixam drasticamente para 30.000 e 20.000 respetivamente. Igualmente se acabam com os malfadados CPV cuja manipulação habilidosa “permitia” aos cotratantes ultrapassarem os limites cumulativos de adjudicações à mesma entidade. Apesar da nítida melhoria, neste aspeto não se foi tão longe quanto se podia e devia, na minha modesta opinião. Os valores acumulados deviam ter um âmbito temporal superior e abranger a totalidade da legislatura autárquica precisamente para prevenir outros riscos que, como é sabido, mesmo que não admitido, têm a ver com o financiamento das campanhas eleitorais.
É sintomático que o legislador tenha a preocupação de para a necessidade de introduzir “medidas para prevenir e eliminar conflitos de interesses nos procedimentos de formação dos contratos” e ainda que o convite a apresentação de propostas esteja proibida a entidades que tenham feito fornecimentos, a título gratuito, no ano em curso e nos anteriores o que parecendo um nonsense, em boa verdade não o é. Então receber gratuitamente bens não é vantajoso para o erário público? Com toda a probabilidade, não. Como não se cansa de repetir João César das Neves, não há almoços grátis e a esmola, quando gorda, leva o pobre a desconfiar. Neste aspeto também penso que se deveria, se possível, ir um pouco mais longe. Os convites a apresentação de propostas deveriam ser igualmente vedados a todas as entidades que tenham contribuído em dinheiro ou em géneros, para as campanhas eleitorais das entidades que governam as respetivas autarquias. Seria aliás relevante que todos os presidentes de Câmara tivessem a iniciativa de divulgarem publicamente a lista completa de todos os contribuites privados das atividades partidárias. Igualmente deveria ser sabido quem foram os fornecedores dos materias de campanha, onerosamente ou não (sobretudo neste último caso) para que fosse afastada a suspeição de “compensação” posterior com recurso a adjudicações futuras pagas com o dinheiro público.