class="html not-front not-logged-in one-sidebar sidebar-second page-frontpage">

            

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos: Gonçalo Lobo Guedes (n. Vila Real, 1620)

Na comunidade marrana de Vila Real, a família Lobo Guedes seria das principais, ligando-se aos Espinosa-Mesquita, através do casamento de Gonçalo Lobo Guedes com Beatriz Rodrigues da Mesquita, ao findar do século de 500.
Um neto destes, também chamado Gonçalo Lobo Guedes, nasceria por 1620, quando a cidade foi varrida por uma vaga de prisões. E nessa vaga foram apanhados vários membros de sua família, nomeadamente o pai, João da Fonseca e o citado avô materno. E 3 anos depois, também a sua mãe, Maria Guedes, foi arrastada para as masmorras da inquisição.(1) Em paralelo, outros fugiriam, como foi o caso de António da Fonseca Guedes, irmão mais velho de Gonçalo, que abalou para a França. 
Não sabemos se aquela vaga de prisões que assolou Vila Real originou a mudança temporária da família para Braga, terra natal de seu pai. Sabemos é que, nos anos seguintes, a morada de Gonçalo se repartiria entre Vila Real e o Porto. E na cidade do Porto estariam no ano de 1635 quando o seu irmão António veio de França, em curta visita(2) e viagem de negócios. E no regresso levaria consigo a tia materna, Branca Loba. 
No Porto, com o mercador António Mendes de Leão estava casado a sua irmã Branca da Mesquita. E tudo isto nos deixa adivinhar uma rede familiar de negócios ligando a cidade de Hamburgo (para onde se passou António Fonseca Guedes), o Porto e a Baía – terra para onde abalou Gonçalo Lobo Guedes ao início da década de 1640, ainda solteiro. 
Na Baía, Gonçalo tornou-se um verdadeiro homem de negócios, importando e exportando mercadorias, não apenas para o Porto e Lisboa mas também para outras grandes praças europeias. E na Baía recebia capitães de navios e homens de trato de várias partes, com eles negociando mercadorias.
A título de exemplo, diremos que em 1645, ele recebeu na Baía o seu conterrâneo Vilarealense Diogo Luís que foi de Holanda à dita cidade, certamente a vender fazendas e ferragens e comprar açúcares. Em simultâneo, chegou a sua casa Manuel Fernandes da Silva com um navio carregado de negros que fora buscar ao Cacheu, no Golfo da Guiné, “por conta de um tio que tinha na Holanda”.
Naturalmente que, num e noutro caso, Gonçalo Guedes não se limitou a recebê-los, antes se tornaria parceiro nas compras e nas vendas. Anos depois, indo Gonçalo em negócios à capitania do Espírito Santo, trouxe dali uma letra que havia sido passada pelo dito Diogo Luís para ser cobrada a um Francisco Soares, morador na Baía. 
Menos informação temos sobre uma viagem que Gonçalo Guedes terá feito a Angola, mais particularmente Benguela durante aqueles anos. E não sabemos também se foi então que ele viajou para a ilha da Madeira, onde igualmente estabeleceu contactos comerciais.
Os anos em que esteve na Baía coincidiram com a existência do chamado “Brasil Holandês” em que os “homens da nação” assumiram papel primordial nas relações internacionais. O próprio D. João IV se esforçava em conseguir o apoio da “nação”, para isso criando a Companhia de Comércio do Brasil, cujas ações foram na grande maioria subscritas por “homens da nação” aos quais o rei passou salvos-condutos para viajar em Portugal e suas Conquistas. Um dos contemplados com esta medida foi António Fonseca Guedes, irmão de Gonçalo, que entretanto casara na cidade da Guarda(3) e estabelecera morada definitiva em Hamburgo.
Lobo Guedes era homem rico quando regressou a Portugal e assentou casa em Lisboa. Trazia mais de 6 contos de réis em dinheiro contado (cruzados). O dia 11 de Outubro de 1654 passou-o ele ainda no barco ancorado ao largo, não presenciando o horroroso espetáculo do auto de fé celebrado naquele dia, com 9 pessoas queimadas, uma das quais o sogro de seu irmão, o advogado Simão Rodrigues Nobre. Dias depois, conversando sobre o assunto com Fernão Mendes da Costa, casado na mesma família da Guarda,(4) este lhe diria:
— Que fora venturoso em o não ver porque tremiam as carnes vendo a quantidade de pessoas que nele fora a queimar.
Não sabemos se António da Fonseca Guedes cheirou a carne queimada do sogro, sendo certo que por aquele tempo chegou a Lisboa, passando antes pelo Porto e dali trazendo a sua mãe, a viúva Maria Guedes, que depois levou para Hamburgo. E também quereria levar o irmão Gonçalo, ainda solteiro. Este preferiu ficar, tratando de casar e assentando em Lisboa a sede da sua empresa, essencialmente virada para a importação-exportação e venda por grosso de mercadorias. 
Entretanto, ao início de 1658, a inquisição assolava mais uma vez a Invicta, especialmente a sua classe mercantil. Um dos prisioneiros arrastados para Coimbra foi António Gomes Salzedo, natural de Vila Flor e que na Baía conviveu com Gonçalo. Foi quanto bastou para o santo ofício abrir um processo ao nosso biografado. Em Agosto seguinte, outra denúncia foi registada contra ele, produzida por Manuel Cordeiro, um malsin que, depois de dois estágios na cadeia, se tornou “informador” do santo ofício. 
No Porto, entretanto, prenderam também a irmã e o cunhado de Gonçalo(5) e em Lisboa, um outro grande mercador Portuense, das suas relações, chamado Manuel Rodrigues Isidro. E assim, em 9.8.1658, se assinou o decreto de prisão de Lobo Guedes, nele escrevendo:
— Porque se presume que o delato se ausentará para fora do reino, porque está sua irmã e cunhado e muita gente da cidade do Porto, de onde é natural, e preso nesta está um Manuel Rodrigues Isidro, de cujas pessoas se teme que darão nele e juntamente andar o judaísmo naquela cidade tão picado e haver tantas prisões… 
O inventário dos bens é enorme e impossível de resumir neste espaço. Vamos retirar apenas uns apontamentos que ajudem a compreender a vastidão do mundo empresarial deste homem.
Comecemos pelo seu armazém onde estavam depositados 3 “feitos de açúcar e mais 4 caixas de açúcar, 10 meios couros em sola e 7 couros em cabelo”.
Enviadas para França, Livorno e Hamburgo seguiam então umas 30 ou 40 caixas de açúcar e para a Baía, ao seu correspondente Luís Álvares de Castro “umas peças de panos de linho, outras de tafetás e peles de camelo”, no valor de 140 mil réis, que deviam somar-se ao conto e 600 mil reis que o saldo comercial registava.
Também para o Brasil, cidade do Rio de Janeiro, despachara uma partida de cobertores de papa, de Castela, dirigida a Manuel Rodrigues, no valor de 50 mil réis. E outra semelhante quantidade seguiu para a ilha da Madeira. E dali para Angola transitavam então 8 pipas de vinho.
Relação mais completa das mercadorias em trânsito na altura de sua prisão, seriam dadas pelo seu criado Francisco Gomes, que costumava fazer os despachos na alfândega e pelo caixeiro Francisco Rodrigues de Sousa. Também este forneceria listas mais completas das dívidas ativas e passivas de Gonçalo Lobo Guedes as quais nos dão a conhecer os seus parceiros comerciais. Notemos alguns:
Em Veneza Josepo de León, Jácome Franco e Henrique Rodrigues Álvares, aos quais devia 2 fardos de seda no valor de um conto, 173 mil réis, além de outras fazendas em paga do que enviara 13 caixas de açúcar.
Em Bordéus e Bayonne eram muitos os correspondentes, a quem comprava sobretudo fazendas e vendia açúcares e tabaco. Na Índia não sabemos bem que tipo de negócios teria mas sabemos que ali o seu correspondente era André Lopes. E sabemos que, antes de ser preso, Gonçalo remetera para aquelas partes avultadas mercadorias, que seguiam em duas naus, debaixo da responsabilidade do capitão-mor Bartolomeu de Vasconcelos, “por conta de João Rodrigues Nunes, de Amesterdão, a quem se deve fazer bom retorno, trazendo-o Nosso Senhor em paz”.
Em Livorno os contratava sobretudo com Gabriel de Medina, em Amesterdão, o dito João Nunes Henriques e em Hamburgo o seu irmão António da Fonseca.
Terminamos descrevendo uma pequena operação comercial que estava em andamento. Aconteceu que um Domingos Carvalho entregou a Gonçalo um escravo negro para que o vendesse, mas fora do reino. Então ele mandou vendê-lo na ilha da Madeira. O dinheiro recebido devia ser empregue em vinho, que se remeteria para Angola… certamente esperava com o lucro da operação comprar mais escravos para vender no Brasil e comprar açúcar…
 
 
Notas:
 
1 - ANTT, inq. de Coimbra, pº 622, de João da Fonseca; pº 7054, de Gonçalo Lobo Guedes; pº 7398, de Maria Guedes.
2 - “Tendo chegado o seu irmão naquele dia do reino de França, disse que dava graças a Deus, que fora com os olhos fechados e os trazia abertos com o conhecimento da verdadeira lei que lha ensinara João Nunes Henriques, natural de Linhares e ao presente na Holanda” – ANTT, inq. Lisboa, pº 10465, de Gonçalo Lobo Guedes.
3 - Brites Mendes, mulher de António Fonseca Guedes era filha de Simão Rodrigues Nobre, advogado e prima de Luísa Mendes, futura mulher de Gonçalo Lobo Guedes.
4 - Fernão Mendes da Costa, que depois fugiu para Inglaterra, era casado com Branca Rodrigues, queimada pela inquisição em 1666, irmã da futura mulher de Gonçalo, Luísa Mendes e ambas primas de Brites Mendes, mulher de António Fonseca.
5 - ANTT, inq. Coimbra, pº 5456, de Branca Mesquita; pº 503, de António Mendes Leão.

 

Roubaram-lhe o coração

“Roubar o coração” ou “roubar a alma” eram expressões típicas do meu povo que por gerações as dizia e todos sabiam o significado independentemente do contexto. Mais recente é a mania das “palavras sazonais”, aquelas que aparecem fulgurantes à boleia da comunicação social, fazem uma estação e depois desaparecem. Ainda há poucos meses dava gosto ouvir os nossos políticos aderir à moda e abusar da palavra “narrativa” qual adorno do estilo discursivo, para, de súbito, dar lugar ao “foco” e às múltiplas derivações: “focagem”; “focar”...
A aproximação do final do ano pode ser um factor condicionante até porque todas as atenções estão concentradas, digo, focadas, no orçamento do próximo ano. Este documento mais do que orientador, define as linhas de atuação do governo para os próximos trezentos e sessenta e cinco dias e condicionará a vida de cada um, em maior ou menor grau, conforme o olho dos eleitos recaiu sobre um ou outro prisma da vida profissional, económica e social de cada grupo, tendo como referência a necessidade de gerar receitas para fazer face às despesas. Por mais que se diga, e embora as promessas vão sempre noutro sentido, é sobre a classe média que todos os anos recai a parte mais onerosa da questão pois aí, seja de forma direta ou indireta, é que todos os governos têm vindo a coletar a maior fasquia: a taxa das renováveis não avançou, o Bloco ergueu a voz, mas medindo as consequências votou a favor. Os argumentos eram válidos, e mais uma vez A. Costa, hábil político, conseguiu fazer valer as suas ideias e aprovar um orçamento que não gerando consensos corre o risco de deixar a todos quantos o aprovaram um certo amargo de boca.
Sendo um orçamento de consensos, cada uma das partes teve de abdicar de princípios fundamentais da sua matriz que possibilitaram a elaboração de um documento sobre o qual, findo o período de vigência, se poderá dizer que foi um mal menor embora, e à partida, se fique com a sensação de que, quem mais teve de abdicar, foi efetivamente o Partido Socialista. Só assim se entende que os grandes investimentos e obras públicas que caraterizaram outros orçamentos deste partido, sejam agora uma ténue amostra e desiluda quem aguardava melhores infraestruturas rodoviárias onde ainda não existem, ou mais investimento na área da saúde numa perspetiva descentralizadora. A educação, tão propalada em governos anteriores, esmorece e nem o descongelamento das carreiras foi capaz de cativar a classe que se verga ao peso das burocracias e do agora inventado “Plano de Ação Estratégico” dos agrupamentos. 
Se os chavões continuam a estar presentes, do tipo: “dinamizar a competitividade, o crescimento económico e a coesão social” falta-lhe o brilho de outrora e, sobretudo, a correspondente concretização que é do que o povo necessita. As novidades de última hora, como o Público, intitula, ficam-se pela satisfação das pretensões menores dos parceiros: o fim do corte de dez por cento do subsídio de desemprego, sendo que se no dia dezassete de novembro, sexta-feira, o Bloco dava a medida como certa, já antes o PCP tinha garantido ter acordo com o governo sobre esta medida. O congelamento do valor máximo da propina de licenciatura é outra medida inscrita à última hora sendo uma proposta já repetida nos dois últimos orçamentos. A medida que desperta mais curiosidade é, sem dúvida, a que irá permitir à CP a aquisição e reparação de material circulante que a nós transmontanos tanto nos diz e, no meu caso particular, faz-me pensar no tempo de Garrett e nas suas viagens vá-se lá saber porquê.
O Orçamento 2018 não sendo uma manta de retalhos, não será também uma colcha que poderá dar algum aconchego é, sobretudo, o possível resultante de convergências ideológicas que, díspares, teimam em manter-se unidas, sob pena de se virem a aniquilar sem brilho nem fulgor porque o coração mais forte já não bate porque, povo, de bom grado dispensaríamos os cêntimos a favor de um Estado que nos garantisse melhor saúde, cultura e educação sem para isso termos de pagar mais.

Não sei se está certo

Sempre que há tormenta no mar com marés vivas há registos de acidentes com pessoas que passeavam paulatinamente pela praia. Que é que leva estas pessoas a escolher dias autenticamente medonhos para se passearem alegremente na areia? É um desafio à Natureza? É a necessidade de adrenalina? É a tentativa de mostrar alguma coisa a alguém? É o gozo que dá o desrespeito pelas regras que o bom senso dita? Não sei, mas a motivação deve ser a mesma que leva alguns a tentar travessias do Atlântico em barcos de 4 ou 5 metros com todo o risco que isso comporta. Há o caso daquela menor que um país (Holanda?) não deixou partir dos seus portos, mas ela partiu doutro país com total apoio dos pais; ou que faz com que pescadores desportivos se dependurem nas escarpas da ponta de Sagres onde o mar, não raras vezes, os vem sequestrar; ou aqueles que esticam a toalha de praia nas sombras exíguas das falésias não atendendo às proibições e muito menos aos avisos; ou ainda os que armados em alpinistas/montanhistas se perdem nas montanhas do Gerês não respeitando as sugestões nem as proibições nem tão pouco os requisitos mínimos; ou também aquele motorista muito popular em Bragança que quando se dirigia a Lisboa com uma carga de batatas encontrou a ponte do Sabor, em Moncorvo, vedada ao trânsito porque o Rio já passava por cima do tabuleiro. Deixou distrair os soldados da Guarda Republicana e passou.
Todas estas atitudes comportam, muitas vezes, perdas de vidas, de bens materiais e custos de resgate. Quanto custa resgatar um náufrago em operações que envolvem a Marinha, a Força Aérea, pescadores etc.? E no resgate de uma turma de caminheiros onde estão envolvidos Guardas da Natureza, Guardas Republicanos, populares, amigos etc.? E além disso a ansiedade de uns, o desespero de outros e o incómodo de todos são custos, mesmo que imateriais, não são negligenciáveis. Mesmo assim quando vemos alguém em apuros tentamos sempre valer-lhe. Assim mandam as Leis de Deus, dos Homens e o espírito solidário. Mas este espírito solidário vem às vezes manchado com tiques vingativos, de ajuste de contas. “Ele que o fez, ele que o desfaça”, “ninguém o mandou”, “ele que se desenrasque” são alguns dos comentários que se ouvem quando alguém se mete numa aventura que está a correr mal. Na verdade é desconcertante o à vontade com que uns deixam o ónus das suas aventuras para os outros como se estes fossem responsáveis pelas suas próprias bizarrias, teimosias e até rebeldias.
É tema actual a consolidação das falésias e os dinheiros que isso envolve. Portugal tem 950Km de costa tem 591Km de praias e 348 falésias. Há 150 praias com falésias em risco. Pensa-se fazer intervenções de consolidação das falésias sempre que haja construções no patamar superior da falésia. E eu pergunto: quem quis colocar a casa num sítio que a tornasse mais esbelta, mais desafogada, de vistas mais amplas, em resumo, mais invejável mas no fundo com riscos, tem o direito de esperar que seja o erário público a criar as condições de segurança que ele próprio negligenciou? Pode passar aos outros o ónus desses mesmos riscos? Tenho as minhas dúvidas.
Todos estes casos têm analogia com Pedrógão. (Pedrógão tomado aqui como título do capítulo respeitante aos incêndios florestais mas excluindo, completamente, as vítimas que circulavam na estrada). Em Pedrógão a mata é, praticamente, toda privada. E nos terrenos privados, exceptuando a canábis e a papoila, cada um semeia o que quer, como quer e sobra-lhe tempo. Assim foi em Pedrógão: cada um fez como quis e lhe apeteceu, têm a mata que querem, com os pinheiros e eucaliptos a entrarem pelas povoações adentro e o mato a ir até à porta de entrada à revelia de todas as recomendações e até da Lei. A tragédia, assim, era mais ou menos previsível. Agora que a tragédia se verificou, exigem desculpas, reparações, indemnizações, etc., como se todos tivessem culpa menos eles. Claro que isto só acontece porque a oposição, numa atitude patética para embaraçar o Governo, aconselhou, “pedagogicamente”, as vítimas dos incêndios a “ser realistas, pedindo o impossível”. Também ajudou a esta deriva reivindicativa o relatório sobre os acontecimentos de Pedrógão feito por uma equipa independente. Um relatório que se pretendia seco e objectivo contém, no entanto, trechos de literatura épica onde não falta, até, o seu “canto IX”(ainda não se sabe se se pode ler ou não). Também não foi despicienda a contribuição do Sr. Presidente da República para este estado de espírito. O Sr. Presidente cavalgou a onda da desgraça e ainda não se apeou naquele seu jeito de “gostar de ser viúva em todos os enterros”. Vai consoar a um lado e fazer o fim de ano noutro, tudo dentro da zona do sinistro como convém.
Por outro lado, a 10 de Dezembro morreu uma mulher em Marco de Canavezes vítima da queda de uma árvore que não aguentou a fúria da tempestade Ana. Só assim. Foi azar. No entanto esta mulher morreu quando fazia uso de uma infraestrutura do Estado em fase de utilização. Aqui, sim, há responsabilidade do Estado. E a tragédia desta mulher não é menor que a dos sinistrados de Pedrógão e a dor dos familiares… é a dor dos familiares.
Irrelevante politicamente – dirão os mais abespinhados de Pedrógão
Não sei se está certo. 

Figuras em fuga

Segundo o filósofo Lamenais, a “vida é uma espécie de mistério triste do qual apenas a Fé tem o segredo”. Rufando silenciosamente o tambor sobre o mistério escancarado, clarinho, a tentar perscrutar mistérios de existências cujas formas de vida parecem ser tão evidentes. Há uns anos escrevi um livrinho onde dedico atenção a Figuras e Figuronas de Bragança, tendo o arquitecto Manuel Ferreira, saudoso amigo, engrandecido o livro através da composição ilustrada das personalidades trazidas a terreiro. Noutro plano a sua saída só foi possível devido à vivacidade harmoniosa do Padre Calado Rodrigues e a tenacidade do Manuel Pereira.
No conjunto das figuras há uma evidente discordância entre elas, seja no foro económico, seja na sua representação social, seja na aculturação e modo de andar e pisar as calçadas e ruas. A estridência da desigualdade só não foi maior porque várias dessas figuras ou tinham falecido privando-me de as abordar de viva voz, ou me escorregaram entre os dedos quais enguias a viverem nas águas límpidas dos rios e ribeiras e não no meu vizinho Tejo a agonizar devido à incúria dos homens.
A proximidade do Natal levou-me a puxar uma a uma as figuras em fuga na procura de reparar a falta mesmo quando as famílias no seu legítimo direito não quiseram fornecer dados biográficos, casa da estimada Senhora Maria, mulher do cauteleiro Sr. Guedes, ou do procurado mas não encontrado Senhor cuja nome desconheço, mas sei qual era a sua alcunha – o traquina e esperto – Farturas o maior de um rancho de irmãos moradores na rua Direita, nas imediações da Igreja de S. Vicente. A Senhora Maria detinha um quiosque na Praça da Sé, vendia jornais, revistas, tabaco, livros, escondidos os do corrosivo José Vilhena. Dali observava o Mundo, debruçada no exíguo balcão ouvia as vozes desse mesmo Mundo circular, especialista no chiste, na manha e na resistência passiva.
O Farturas cirandava e voltava a cirandar da Praça do Mercado aos mercados estudantis, dos burocratas do regime, dos feirantes estacionados nos cafés – Chave d’Oiro, Central, Machado, menos no Moderno – na procura de «massas alimentícias», quando a procura era uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma (Irene Lisboa) a Dra. Margarida Machado reduzia a falta, bem como duas outras senhoras ainda vivas, de boa saúde. O Farturas no Inverno exibia frieiras, isso não o impedia de saltar de pouso em pouso ciente de inspirar simpatia junto da maioria das pessoas, quando enxotado (figuras ditas piedosas o praticavam) saía compungido à frente dos irmãos à procura de gasalho nos dias friorentos e Inverno. Porque na altura tinha bem viva a leitura de Os Miseráveis, o Farturas no meu entender seria (era) o Gravoche de Bragança. 
Entre as figuras da Sra. Maria e o Farturas avultam outras a quem gostava de ter concedido maior atenção, um relance de olhos, uma palavra-chave, uma exclamação seguida de interrogação indagadora impediram a consumação do desejo.
A Senhora Maria Geraldes, docemente tratada por Maria Preta, a apanhadora de malhas (leitores de agora sabem como se apanhavam malhas em meias de vidro?) cujo coração cedeu às palavras maviosas do futebolista Belo vindo das pampas cantadas por Carlos Gardel, para lá levou, o Senhor Adriano «manco» os dois o alfaiate e o vendedor de toucinho e derivados também saltaram não lépidos, sim nás e nefas de braço dado com a Maria Rapaz, o eterno treinador do Bragança, sempre pronto a ocupar o buraco dos fugitivos treinadores de nome Jesus, ferviam no meu imaginário e fervilham agora por não ter conseguido evocar as suas presenças riscantes no burgo impregnado de mofo dos tempos salazaristas.
Escrevo e o abismo do esquecimento flui a acusar-me de desatento, o policia-sinaleiro Alfredo não é uma figura menor no firmamento das figuras desprovidas de vaidades e prosápias dos de manguitos lustrosos, figuras de alta craveira moral foram o Cónego Falcão patriarca dos escuteiros, e o Cónego Jerónimo Pires estrénuo e desinteressado defensor dos rapazes de Vilar-de-Ossos, Lagarelhos, Quadra e Travanca acabados de cumprirem o serviço militar e desejosos de encontrarem lugar na Polícia e Guardas em busca de melhor pousio. No dito firmamento onde os doutores e engenheiros não se sentiam atraídos eles foram estrelas luzentes ao modo da estrela que guiou os Reis-Magos. Não exaltei as suas impantes qualidades, agora pode parecer comida requentada. E, no tocante a comida deixei fugir as figuras do Padre Pires e do Padre António (Marroncho). O roubo dos perus ao bem-humorado Padre Pires por si só possibilita faceta crónica, a visão das perdizes assadas numa casa de Vale da Porca provocou no benquisto Padre António (meu vizinho) a pergunta no decorrer de almoço festivo: então as perdizes? A resposta desgostou-o, ele estava a reservar-se no fito de lhe prestar o devido preito. A criada risonha, maliciosa, informou-o: as perdizes estão reservadas para o jantar!
E, são estas figuras sem fama que lhe encontro qualidades e considero merecedoras de as reviver.
Acima de tudo as pessoas. Elas não são talhocos utilizados na falta de cadeira, bancos, mochos, tripeças e… sofás.
Boas Festas.