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Manuel Henriques Lopes (Vila Flor, 1648 - d. 1727)

Homem de negócio, natural de Vila Flor, morador em Cascais e assistente em Lisboa e Coimbra, de presente na Figueira da Foz onde embarcava azeites – assim se apresentou Manuel Henriques Lopes – o que bem retrata a sua vida movimentada, típica dos homens da nação. Na verdade o ambiente de medo em que viviam obrigava-os a estar em trânsito constante.
Mas se este processo é exemplar a tal respeito, não menos interessante na caracterização do ambiente de permanente suspeita e constante espionagem que sobre os homens da nação era exercida pelos comissários e familiares do santo ofício.
Situemo-nos então na Figueira da Foz em cujo porto atracou um barco proveniente da Inglaterra. Coisa normalíssima, até porque a grande maioria dos barcos estrangeiros que frequentavam os portos nacionais eram ingleses. O barco vinha à responsabilidade de Gaspar Dias de Almeida,(1) um grande mercador de Lisboa e dele eram as mercadorias que trazia, nomeadamente “duzentos quintais de ferro e vinte barras de aço” importadas para um mercador do Norte e “seis milheiros de aduelas”. O barco deveria depois ser carregado de azeite e regressar a Inglaterra.
O homem contratado por Gaspar Dias de Almeida para dirigir as operações de descarga do barco, venda de algumas mercadorias importadas e compra dos azeites para exportação foi Manuel Henriques Lopes que, para o ajudar, conseguiu os serviços de um Manuel João, contratador, morador na Rua dos Sapateiros, na Figueira da Foz. Este trabalhava em comissão, recebendo cinco tostões por cada pipa de azeite embarcada. Também o Manuel Henriques trabalharia em comissão? Ele disse que não, que Gaspar Dias de Almeida “pediu a ele declarante para fazer tal diligência e que ele aceitou sem estipêndio algum pela dita comissão, deixando no arbítrio do mesmo a satisfação do seu trabalho”.
Tudo correria em ordem e a carga foi desalfandegada, tudo se registando nos respetivos livros. O ferro e o aço foram metidos em um armazém alugado, defronte da casa do contratador Manuel João. Dos 6 milheiros de aduelas Manuel Henriques mandou fazer “pipas e quartos e as mais vendeu aos estrangeiros”.
A operação estava correndo e no barco estavam já “quarenta e tantas pipas e trinta e tantos quartos de azeite” quando as justiças levaram Manuel Henriques Lopes para Coimbra e o meteram na “cadeia da portagem”.
Porquê? – Disseram que estava carregando trigo para fora do reino, sem a devida autorização. Na verdade a “cadeia da portagem” era a cadeia civil, já que em Coimbra havia outras para presos específicos, como eram: a da inquisição, a dos estudantes e a dos clérigos. 
Voltemos ao início, à ida de Manuel Henriques para a Figueira da Foz e à chegada do barco de Inglaterra. Como estabelecido, à chegada e à partida, todos os barcos eram vistoriados e ninguém podia viajar sem o visto da inquisição. No caso concreto o “olheiro da inquisição” era o familiar Manuel da Mesquita Loureiro que logo escreveu para Coimbra, dizendo:
— Ilustríssimos Senhores. Lembro-me que antes de ser preso nestes cárceres Gaspar Mendes Furtado, dei conta a Vs. Ss. de que esta pessoa se achava neste lugar carregando dois navios de azeite para Holanda, e entendendo poderia haver causa para algum procedimento. Neste lugar assiste há dias um Manuel Henriques Lopes, da mesma nação, que há algum tempo mora na cidade do Porto e de presente assiste em Lisboa, fazendo as normais carregações de azeite, também para Holanda. Pareceu-me dar a Vs. Ss. esta conta, de que serve esta. Figueira da Foz do Mondego, aos 5 de maio de 1714…
Recebida a carta, ordenaram os inquisidores de Coimbra que informasse “com todo o segredo e cautela de quem este seja filho, de onde é natural e morador, se é casado, com quem, se tem alguns irmãos ou parentes, como se chamam”…
Não vamos acompanhar a “missão de espionagem” do familiar do santo ofício. Diremos tão só que a prisão de Henriques Lopes na “cadeia da portagem” se destinaria a dar tempo ao promotor do tribunal da inquisição para recolher testemunhos ou indícios de judaísmo contra ele. Efetivamente, no dia 24 do dito mês de maio, transitou o prisioneiro para a cadeia da inquisição, a mesma onde, meio século antes, sofreram o seu pai Vasco, a sua mãe Mécia e o seu irmão António.(2)
Tinha 66 anos quando foi preso e era viúvo de Mariana de Alvim,(3) filha de Francisco Ferreira Isidro, capitão de milícias de Freixo de Numão e sua mulher Francisca Vaz, da Torre de Moncorvo.
O seu processo nada tem de especial, dado que logo na primeira sessão ele declarou que “não quer defesa e só quer confessar as culpas”. Por dois anos permaneceu na cadeia, saindo reconciliado com cárcere e hábito perpétuo no auto da fé de 4.6.1716.
O mais interessante do seu processo é uma carta que António Nunes Cardoso(4) seu sobrinho, natural de Freixo de Espada à Cinta, estanqueiro do tabaco em Portalegre, lhe escreveu quando foi preso. Gostaríamos de transcrevê-la, porém o espaço disponível não o permite. Vejam apenas um curto excerto:
— Quando de vossa mercê esperava a notícia de se haver recolhido a sua casa saboreando-se com o gosto de ver a seus irmãos e primos meus juntamente, dando satisfação ao senhorio do pataxo (barco) para que viesse no reconhecimento da exacta diligência e desvelo que tem tido na compra dos azeites com que o carregou, vejo e me fiz sabedor de que está na cadeia da portagem por lhe imputarem fazer a tal carga com trigo (…) E nesta consideração, sendo o Dr. Corregedor tão grande ministro, como considero, breve estará v. mercê fora da prisão (…) Esta remeto ao Dr. José Correia de Carvalho, amigo de meu irmão e meu, que é bom homem, e o há-de ir logo procurar (…) Deus nos livre dos inimigos e guarde a v. mercê. 4 de Junho de 1714.
Acerca deste e outros sobrinhos de Manuel Henriques, diremos que, também eles, uma década depois, foram parar às masmorras do santo ofício. Como, aliás, aconteceu com 6 filhos seus, que todos foram presos em 1725.
Terminamos com uma breve informação sobre os irmãos de Manuel Henriques Lopes:
Lopo Rodrigues, foi morador em Faro, casado com Brites Francisca e dali se foram para os Barbados.
António Lopes Henriques, faleceu solteiro em Vila Flor, tendo sido preso pela inquisição de Coimbra em 1665.
Gaspar Fernandes, casou com Isabel Rodrigues e o casal morou no Porto. Em maio de 1697, na visitação que ali fez D. Tomás de Almeida, deputado do santo ofício apareceu uma Leonor de Paiva a denunciar Gaspar Fernandes, o seu cunhado Marrcos Ferro e outros cristãos-novos que em sua casa “faziam sinagoga”. Tempos depois a denunciante foi morta com um tiro, sendo voz pública que a matou Gaspar Fernandes. Não sabemos se foi por causa do crime ou por medo da inquisição que o casal fugiu depois para a Holanda.
Maria Henriques vivia no Porto, casada com o advogado Francisco Marcos Ferro, de Torre de Moncorvo. Este foi preso pela inquisição na sequência da visitação atrás referida. Aquela, deixou o Porto e dirigiu-se para Faro e dali para Lisboa, abalando-se, em Abril de 1699, para a Itália, no barco “N.ª Sr.ª la Coronada” juntamente com 47 outros cristãos-novos Trasmontanos, quase todos ligados por laços familiares, entre eles os pais de Jacob Rodrigues Pereira, o inventor do alfabeto para surdos-mudos. Todos foram presos em Cádiz, pela inquisição espanhola.(5)
Branca Gomes foi casada e moradora em Vilar de Maçada, Alijó, onde faleceu.
Isabel Henriques casou com Diogo Vaz Faro e o casal viveu no Porto, não deixando descendência. Também ela foi presa pelo santo ofício, em 1725, sendo já viúva. Terá falecido na cidade de Faro, nesse mesmo ano, de acordo com a informação de Francisco Gabriel Ferreira, seu parente.(6)
 
 
 
Notas:
 
1 - Gaspar Dias de Almeida era natural de Gogim, Lamego. Viveu em Faro e depois em Lisboa, administrando a Quinta do Lumiar e negociando com o Brasil e a Inglaterra. Em 1723, pressentindo que a inquisição o queria prender, fugiu no seu barco para Londres onde viveu como judeu assumido e faleceu em 1741. Vários de seus filhos foram para a ilha de Barbados. - ANDRADE e GUIMARÃES, Na Rota dos Judeus Celorico da Beira, p. 70 e seguintes, ed. Câmara Municipal de Celorico da Beira, 2015.
2 - ANTT, inq. Coimbra, pº 8521, de Manuel Henriques Lopes; pº 9984, de Vasco Fernandes Lopes; pº 2439, de Mécia Fernandes; pº 3802, de António Lopes Henriques. Este faleceu solteiro em Vila Flor. 
3 - Mariana de Alvim faleceu no Porto, na rua da Ferraria de Baixo, em 19.5.1704, sendo sepultada em S. João Novo, conforme certidão inserta no processo de sua nora (n.º 10157-L), Francisca Rosa, casada com Vasco Fernandes Lopes.  
4 - IDEM, inq. Évora, pº 9125, de António Nunes Cardoso.
5 - ANDRADE e GUIMARÃES – Jacob (Francisco) Rodrigues Pereira Cidadão do Mundo, Sefardita e Trasmontano, ed. Lema d´Origem, Porto, 2014.
6 - IDEM, inq. Coimbra, pº 10572, de Isabel Henriques; pº 9669, de Francisco Gabriel Ferreira.

Um novo mundo espantoso

Ainda longe do estereotipo descrito por Aldous Huxley vivemos já um Novo Mundo que não pode deixar de nos causar alguma perplexidade se refletirmos sobre alguns aspetos da realidade do tempo presente. Como não nos espantarmos com a constatação de que, no exato momento que escrevo, o programa informático de criptografia da cybermoeda BitCoin foi o Banco que mais cresceu, que mais se capitalizou, operando uma moeda sem qualquer reserva conhecida, sem divisas, que ninguém sabe quem é o dono e nunca teve nem terá qualquer banco de atendimento. A Uber é hoje a maior companhia de taxis a nível mundial. Não tem um único carro e não contratou um único motorista. A maior plataforma de comunicação social, que mais leitores tem não produz nenhum conteúdo, não tem jornalistas nem editores: é o Facebook. Por seu turno a plataforma de comércio eletrónico, Alibaba, sedeada em Angzhou, na China, sendo o maior revendedor mundial não tem nenhum armazém porque não tem mercadorias suas para guardar. O maior operador tusrístico de alojmento, nos tempos de hoje, o Airbnb, não possui um único hotel, nenhuma casa, nem qualquer rececionista.
Na época natalícia que vivemos o número de postais de Boas Festas vai, provavelmente, superar a astronómica cifra dos anos anteriores e, contudo, é precisamente nesta altura que a empresa dos correios anuncia a sua crise crescente por causa da redução continuada e consistente de serviço.  De qualquer forma, como no romance “O Admirável Mundo Novo” do inglês Aldous Huxley, referido no início, existe igualmente neste tempo que vivemos e que partilhamos uma reserva histórica onde os antigos costumes e regras continuam a vincar as mais ancestrais tradições, crenças e rituais. Que, ao contrário da novela britânica, não causa qualquer conflito junto dos aderentes aos novíssimos modos de vida e facilidades tecnológicas modernas. As couves tronchas podem ser compradas numa qualquer grande superfície com pagamento eletrónico de cartão de crédito, os momentos natalícios, à volta da lareira que crepita os incadescentes toros de carrasco serão, seguramente, partilhados e replicados no facebook e qualquer nordestino da Diáspora pode matar saudades e preservar as tradições de infância comprando numa plataforma digital a máscara de celebração do solstício que mais lhe agradar. 
Não é necessário emigrar para poder regressar a casa, após o jantar natalício, num táxi da rede Uber e a deslocação ao Porto ou à capital para partilhar momentos com amigos e conhecidos pode facilmente garantir alojamento adequada através do Airbnb. 
Queiramos ou não, o progresso faz o seu caminho e não se vislumbra forma de o deter, nem sequer de o abrandar, muito menos de o reverter. Resta-nos a reserva identitária que o interior, cada vez mais despovoado e, mesmo que acompanhando os benefícios civilizacionais, vai mantendo e preservando. E assim será enquanto houver gente que o habite já que não será fácil encriptar o bacalhau, virtualizar o borralho, digitalizar o calor humano das noites gélidas e programar em computador o afeto de um abraço e de um forte aperto de mão.

Estado de direito ou santuário do crime?

Notícias como as que dizem respeito à RARÍSSIMAS – Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras, são recorrentes e vulgaríssimas. O que nos leva a justamente admitir que a maioria dos factos que as originam são verdadeiros e graves, ainda que as condenações em tribunal sejam raríssimas. É o regime político vigente que cada vez mais se compromete e transfigura numa democracia libertina que mais parece um santuário do crime que um estado de direito.
O chorrilho de escândalos de toda a espécie envolvendo governantes, amigos, afilhados, cães e gatos de partidos, parece não ter fim. Os factos referentes à célebre operação Marquês expostos recentemente pelo Ministério Público, para não citar outros de igual calibre, serão tão só a ponta do iceberg. Somos constrangidos a concluir, portanto, que o Estado português é altamente vulnerável ao assalto por gente da pior espécie: ladrões, aldrabões, farsantes.
Lamentavelmente, como a Raríssimas bem o demonstra, muitas IPSS, para lá dos serviços que bem ou mal prestam aos infelizes utentes, existem sobretudo para promover a imagem pública de destacadas “socialites”. Caridade interesseira, é o que é!
Não quero com isto dizer que não há pessoas íntegras e verdadeiras a servir o Estado, designadamente políticos. Acredito que os há e que não serão tão raros quanto se diz. Conheço alguns a quem tiro o meu chapéu. Deixemo-nos de facciosimos, de uma vez por todas, portanto.
A corrupção não tem pátria, nem raça, nem ideologia e muito menos partido. Mas tem rostos ainda que muitos se sujeitem a operações plásticas. É gente de todos os credos e religiões. Gente que acredita ou não, na vida depois da morte, no inferno seguramente não, mas que é capaz de todas a virtudes para alcançar o céu das vaidades terrenas, dos carros topos de gama, dos almoços e jantares pagos com dinheiros públicos, da fama e da glória seja ela qual for. É gente que, acima de tudo, está convencida que continuará impune, nesta vida ou em mais que houver.
A situação que presentemente se vive em Portugal é sobretudo chocante porque o Governo e os partidos que o apoiam se dizem de esquerda mas sistematicamente calam, consentem e apadrinham estas desgraças.
Partidos que têm demonstrado ser abertamente contrários e incompetentes para fazer as reformas indispensáveis a pôr cobro a tamanha degradação da democracia. Partidos que, antes pelo contrário, optam por iludir o povo com tiradas demagógicas e populistas e atemorizar os incautos com o imaginário inferno da direita a quem responsabilizam por tudo, inclusive pelas suas próprias contradições. 
São a Geringonça solidária no seu pior, sempre pronta a apaga todos os fogos, não só os florestais, com palavras inflamadas e lágrimas de crocodilo. Eles são os verdadeiros garantes do Regime
Os portugueses exigem mais do que as migalhas que caiem da mesa do Orçamento de Estado. Exigem verdade, justiça e transparência. Reformas políticas, em duas palavras!
 
Este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico.

Natal mundial

Muito boa tarde meus caros. Espero que esteja tudo bem convosco. Não sei porquê mas começo quase sempre pelas boas tardes. As tardes e as noites são mais dadas a conversas, embora as manhãs fossem em teoria mais propensas à leitura de jornais. Os meus mais sinceros parabéns a todos os que ainda leem jornais e desculpem o eventual incómodo de nunca acertar muito bem na parte do dia. Vespertino, matutino, é um desatino. Ainda me lembro quando havia jornais vespertinos, que saíam da parte da tarde. Estavam sempre uma manhã mais actuais. Também sou do tempo em que se precisava de ter licença para se usar aquele aparato chamado isqueiro e se compravam brasas para poder aquecer as casas. Na verdade não sou, isto foi só para dar outra densidade ao texto e ao escriba. Ora finalmente chegámos ao Natal. Quer dizemos já andamos nisto das navidades há algum tempo. Há um calendário internacional bem definido. Depois do Verão, ou melhor, do calor entra a época natalícia. Pelo meio há uns Halloweens e agora a Black Friday para animar as festas. Aqui às vezes vai-se mais longe e nas maiores cidades, dada a quantidade de americanos, por um lado, e do fascínio pelo modelo americano por outro, assinala-se o Dia de Acção de Graças, na quarta quinta-feira de Novembro. Sobretudo nas escolas e em restaurantes estrangeiros que anunciam jantares para o efeito. Resumidamente era uma ceia para agradecer as colheitas do ano que há cerca de um século se tornou feriado oficial. Em português deveriam ter traduzido para dia de agradecer ou dia de agradecimento, mais simples, mais próximo do original e menos eclesiástico. Hoje é um jantar onde se celebra a família e onde as pessoas se sentem agradecidas pelo ano que passou. Às vezes parece-me que para alguns americanos e canadianos mais simbólico até do que o próprio Natal. Inclusive na sexta-feira também é feriado em muitos Estados para que as pessoas possam viajar e passar o fim de semana alargado junto da família. Pronto, a Black Friday surge basicamente porque isto era tudo muito fofinho mas faltava fazer a coisa mexer e aproveitar a malta andar de coração derretido para sacar alguns trocos. Depois importa-se o que importa, que é o lado estritamente comercial da coisa. Adiante. Natal. Aqui é o mesmo, actualmente não há estabelecimento, centro comercial ou baixa de cidade que não se enfeite para a ocasião. Em termos de decoração não difere nada dos outros lados. Grandes árvores de Natais nas praças, luzes, etc. No entanto, é tudo meramente comercial. Os jovens agora têm o hábito de fazer um jantar de amigos e trocar presentes no dia 24. E em termos de verdadeiro espírito natalício é só. [Atenção que no dia 22 de Dezembro os chineses assinalam o festival do Inverno, um jantar familar, tipo um Natal mais comedido. No fundo o princípio é exactamente o mesmo] Depois há a comunidade estrangeira e aí assim acontece muita coisa. Uma das coisas boas oportunidades de viver aqui e que não fazia ideia, é que além de se poder construir uma bagagem socio-cultural e uma visão do mundo muito mais ampla, é a quantidade de nacionalidades com as quais lidamos diariamente. Trabalho, vizinhos, amigos. Pessoas de todos os continentes, de todos os quadrantes. Aqui os estrageiros não se dividem muito por países, nações. Quando se organiza algo é entre todos. Falarei disso noutra altura. No dia de consoada há duas tradições que praticamos cá em casa. Uma para chineses, outra para estrangeiros. Todas com muito calor natalício. À tarde, uma festa cá em casa com todos amigos da escola da filha para poder sentir o Natal à maneira das crianças. Crianças, pais, avós, cada um acaba por trazer alguma coisa, a casa fica toda de pantanas mas vale a pena. Dá-se uma arrumadela e à noite vêm os estrangeiros. Bacalhau, bolo-rei, vinho do Porto (Macau é qui ao lado) e um enchente de coisas de outros povos, outras tradições. Temos consoado mais com americanos e espanhóis ultimamente, mas já por aqui passaram muitas origens. Assim de cabeça, México, China, Portugal, Venezuela, Inglaterra, Jamaica, Inglaterra, França, Argentina, Canadá... E continuam a passar nem que seja para beber um Porto. A porta está sempre aberta para gente boa, por isso o Natal é sempre mundial. Feliz natal a todos! Muita saúde. Não se esqueçam de dar um salto à fogueira. Aquele abraço!

Germes do terror

Não é debalde que a Europa (e o Ocidente em geral) exibe uma aura de vigor material e implícitas promessas de bem-estar, vida fácil, tolerância, integração. Tudo isso atende aos desejos de qualquer ser humano e não poderia deixar de atrair forasteiros que, acossados por um mundo de misérias, acorrem àquilo que julgam como um porto de abrigo. É bom que assim seja, pelo menos em nome das cristianíssimas caridade e compaixão.
Acontece que por cá também nem tudo são rosas. A começar pelo facto de tal imagem de abundância e satisfação, levada à cena pela ubíqua publicidade, ter fortes elementos fantasistas, logo enganadores. A sociedade real que por esses persuasivos meios promete mundos e fundos dá o pão com parcimónia, e ainda assim sacado com unhas e dentes. Razão pela qual cria fatalmente faixas maiores ou menores de excluídos e auto­excluídos, forçados a ver de fora a sonhada prosperidade, gente para quem muitos devaneios consumistas serão sempre utópicos.
Mas há mais. O progresso não foi dado de borla, tem e sempre teve altos custos. Bastaria dizer que os seus alicerces foram unidos, ao longo de séculos, com uma massa feita de suor, sangue e lágrimas. Ou que se chegou aqui à custa de um longo processo de mudanças, movido a ideias poderosas, que sacrificou gerações à violência, à guerra, à ruína e moldou as mentalidades. Pertencer a este espaço não reside apenas em ser herdeiros do lastro que em nós se acumulou em camadas e nos identifica com o todo civilizacional e a variedade das culturas. É preciso ainda ter em mente que, no presente, a marcha da vasta máquina europeia vive de uma aposta colossal em investimento, planificação, organização, produção que exige grandes esforços a todos mas se impõe como contrapartida aos níveis e estilos de vida. A título de exemplo, a inclusão de uma criança implica um aprendizado árduo que se pode estender por mais de duas décadas e ainda assim não é certa pois, contra o que a ideologia bem-pensante insinua, o sucesso está longe de poder sorrir a todos.
Lugares propícios a uma vida mais ou menos digna, estas sociedades cobram pesados custos às pessoas, gerando nelas fortes sentimentos ambivalentes, em equilíbrio instável. Se é certo que alimentam, protegem e incluem, também com frequência são escassas, opressivas e remetem muitos para fora das suas realizações mais atrativas. A regra é subir a pulso no meio de dura competição. A luta por um lugar ao sol é renhida e os que ficam à sombra, sobretudo esses (e são a maioria), têm de conformar-se a uma vida de trabalho aturado, de monótono e amargo desencanto. Mas, sobretudo, pelo interesse geral os desejos dos indivíduos devem vergar-se a sérias imposições, restrições e renúncias que contrariam os impulsos mais básicos.
Não é pois de estranhar que os escolhos da vida nos possam levar a vários graus de inveja, frustração, ressentimento, ódio e irrompam depois em formas mais ou menos conscientes de agressividade e destrutividade. E se tais forças são geralmente contidas por laços de identificação com a coletividade, também não é necessário que elas nasçam de minorias raciais, étnicas, culturais, religiosas ou entre os que por razões várias aqui vão chegando, mesmo que os seus vínculos connosco sejam baixos ou mesmo inexistentes.
Por tudo isto creio que o “terrorismo islâmico” não parece ser senão uma forma de delinquência, que os novíssimos media incitam e promovem a crime organizado. E a sua ideologia, um pretexto que dá forma a essas paixões ambíguas para com a sociedade e que, alimentadas por pulsões destrutivas, resultam no desejo de a violentar. Para lá do desejo de fuga à mediocridade como forma de vida, à excitação da aventura e do risco, vários sinais mostram claramente que o idealismo espiritual e social dos seus adeptos é uma cortina para tapar o inconfessável.
De facto, mal se propõem fundar algo parecido a um estado é vê-los a satisfazer cobiças grosseiras em inúmeras traficâncias; a saciar ímpetos sexuais desposando uma série de raparigas incautas; a ceder a instintos homicidas trucidando populações indefesas, mesmo que muçulmanas; e a nadar em poder irrestrito para obter tudo isso. Justamente o que de forma mais cómoda fariam aqui na Europa, berço de muitos deles, caso as leis e os costumes não lho proibissem.