A VIOLÊNCIA NÃO É JUSTIFICÁVEL NEM ACEiTÁVEL.

Mesmo que esteja convencido/a que:
• Agora na velhice é um fardo para os outros;
• É uma vergonha apanhar do filho;
• O marido só é assim quando bebe;
• Se não cede aos avanços do chefe é despedido;
• A humilhação e o esvaziamentode funções não são maus-tratos;
• “Quem não vai à palavra, vai à pancada”.
Fale com o seu MÉDICO, ENFERMEIRO DE FAMÍLIA
ou OUTRO PROFISSIONAL DE SAÚDE. Todos saberão ajudar.

Douro: Pizzicato E Chula: Ou O Rio Poético De A. M. Pires Cabral

Escrevo este texto a um sol transparente de Janeiro, uma luz de cristal chega das lonjuras do Planalto e nenhuma reentrância deixa ao domínio da obscuridade. Não sei por quê, (ou, melhor, sei) esta claridade traz-me ao pensamento, e ao olhar, os poemas de A. M. Pires Cabral, também eles límpidos, concisos, austeros e puros, como este dia imaculado.
Este intróito, quiçá desnecessário, para dizer que reside no Nordeste Transmontano, algures, um dos mais notáveis poetas portugueses contemporâneos. É uma voz singular, que sobressai nítida na sua originalidade e na sua pessoalidade, inscrita em alto-relevo num pano de fundo paisagístico e magmático de rios, montanhas e fragas, o que lhe confere a inflexível ossatura, a intransferível identidade que ostenta. A sua palavra é serena mas firme, sóbria mas sofisticada, telúrica mas fina, depurada mas elegante, contida mas intrinsecamente emotiva, leve mas culta. Claridade, harmonia e equilíbrio de matriz indubitavelmente clássicos suportam cada poema, que se espraia suave e elegantemente na página, cuja brancura também vai bem com a luminosidade da sua linguagem. Os rios que desaguam nesta poesia só poderão ser os dos clássicos portugueses e universais – clássicos de todos os tempos no sentido que toda a obra superior é clássica ou integrando em si uma essencialidade clássica, como explicava José Régio na sua doutrinação estética, na Presença. Assim, nesta meticulosa nitidez de dizer repercutem ecos dos mestres fundadores e renovadores da língua: dos trovadores medievais a Camões, “vão as serenas águas deste rio” , do Padre António Vieira a Camilo Castelo Branco, de Almeida Garrett a Eça de Queiroz, de Cesário Verde ao Fernando Pessoa ele mesmo, para nos mantermos somente de entre os criadores pátrios. Dos seus versos emana uma luz intensa, mas à medida da retina humana, uma cintilância que envolve sem ofuscar, uma rigorosa consciência do lugar da palavra e do silêncio: “porque há lugares tão feitos / para a malha do silêncio, / que uma simples sílaba / apenas murmurada – embaraça” . A unidade de tom, de timbre e de visionamento do mundo é a marca de água de uma personalidade ética e esteticamente exemplar, que mantém em relação às suas raízes pessoais e culturais uma fidelidade sem hiatos. O seu discurso poético e as suas opções temáticas desenvolvem-se numa linha realista/naturalista (enquanto tipologia estética, que não enfeudada a realismos ou naturalismos de escola, ou de correntes histórico-literárias) que nos dá a ver o Real numa voz que é sobretudo fala, diálogo, respiração do ser no mundo, emanando de sua funda individualidade.
É pois sobre uma exímia tangência à literalidade que se desenrola a sua linha poética, linha de rumo de uma coerência inquebrantável e elemento básico de uma eficácia poética verdadeiramente incomum. Da terra nasce a obra deste poeta maior e é ao rés-da-terra que a palavra poética caminha, essencialista e imanentista, sem nunca se levantar em qualquer tipo de estridência dramática e muito menos melodramática. Mas não nos deixemos iludir pela acalmia de superfície, ela é possuidora de uma energia expressiva e comunicativa como poucas e é sem tergiversar que testemunha e denuncia os variados desconcertos do mundo, sobretudo o desconcerto de mentalidades que se abatem sobre uma terra e de uma gente esquecidas ou menosprezadas, situadas para cá do Marão, onde gostariam de mandar os que cá estão.
O livro que hoje aqui nos traz, como se vê no título, é Douro: Pizzicato E Chula: o Douro é, como sabem os leitores de A. M. Pires Cabral, um tema obsessivamente, mas nunca repetitivamente, abordado pelo autor: “tenho o rio na boca” , diz ele em Têmporas da Cinza. E este é também mais um livro sobre o seu rio, extraordinário a vários níveis: unidade de tema e de tom, vivacidade do estilo, reflexão metapoética, crítica irónica, cáustica, corrosiva até, de uma certa maneira de encarar a poesia: artificial, postiça, de pose ou de salão, neste caso de bojo ou de porão. Douro: Pizzicato E Chula é uma unidade poética subordinada ao tema da Viagem, uma verdadeira viagem no espaço, no tempo, no pensamento, no Ser. Viagem metapoética, ainda: poesia e poetas constituem-se em longas paragens obrigatórias. Uma viagem total, pois, não à volta do seu quarto, mas uma viagem na sua terra. E também ele poderia dizer: “e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há-de fazer crónica” ; neste caso uma soberba crónica e também reportagem poéticas.
“A Fábula do comboio e do barco”  não é mais do que uma representação global do livro por metonímia e sinédoque. Não é mister a fábula exigir como condição indispensável ter na narrativa animais como personagens, mas sim configurar uma narrativa alegórica cujo desenlace reflicta uma lição moral em que seja nítida a vitória do bem sobre o mal, em suas diversas faces ou metamorfoses: a fraqueza sensível sobre a força bruta, a bondade sobre o calculismo e o interesse, a humildade sobre a presunção. Aqui, podemos concluir que a lição desta fábula é a vitória da ancestral sabedoria da natureza perante a jactância dos poetas pretensiosos e ignorantes dos segredos do rio, da poesia das coisas perante a poesia das metáforas. Ao contrário da corrida entre o comboio e o barco, aqui, na verdade, não se registou “um empate técnico” , antes uma vitória do Douro por KO.
  O percurso desenrola-se portanto sob o signo do olhar e da poesia, e se o rio é uno e imutável, já a ideia de poesia, de viagem e de beleza variam conforme o ponto de vista dos viajantes, suas intenções profundas, suas formas de estar no mundo e na vida, isto é no Rio, que tudo isso simboliza ou, melhor, alegoriza. Uma estética natural constituída pelo rio, pelas montanhas, pelo céu, pelos vinhedos, pelas aves, pelos peixes, coexiste, em simultaneidade dialéctica, com uma estética e uma poética humanas. Mas se aquela une o humano e o natural, esta, pela artificialidade das palavras calculadas, das metáforas, das imagens, estabelece a separação, a fenda entre as coisas e a linguagem que as nomeia. Neste caso, este grupo de “poetas abrasados nos mais canoros zelos”  não se contenta em olhar, ver, nomear; dentro deles “têm uma oculta segunda intenção: / fazer a derradeira tentativa / de também se decifrarem a si mesmos, / e não apenas o que o cerne do rio / retém por nomear. // Sagazes poetas, que assim alimentam / dois coelhos de uma cenoura só” . Estes poetas ficam-se pela simples retórica da visão e da composição, postergam a linguagem fenoménica da transparência e da essencialidade, não a essência de raiz platónica residente algures na ideia e na pura contemplação, mas a visão pura de quem vê as coisas no seu natural habitat e conquista a beleza pura da simplicidade e da naturalidade. A referencialidade é pois o ponto de partida da poesia de A. M. Pires Cabral: também, sob esse prisma, poeta de excepção na nossa poesia, a tomarmos por boa a afirmação de Jorge de Sena, retomada por Joaquim Manuel Magalhães, de que haveria uma impossibilidade mental na poesia portuguesa de se escrever no arco da referencialidade.
Mas retomemos a nossa viagem dupla, por este rio acima, – ainda que esta tenha por destino Barca de Alva e não Santarém também ela abunda em digressões, como vêem, – na poesia de uns é o rio que corre, na poesia de outros é o artificioso curso das palavras que faz do rio pretexto para o outro texto, que por grávido de metáforas atroadoras é bem possível que afugente as aves “ou, pelo menos, as deixe / desfavoravelmente impressionadas” .
Deve dizer-se, em abono da verdade, que o poeta não se põe de parte dos seus compagnons de route, assume na pele, cúmplice e solidariamente, a condição precária da humana vaidade que aponta aos poetas-viajantes: “piscamo-nos os olhos, / achamos que somos os maiores” . Mas o Poeta vai mais longe, sente dentro de si um percurso inverso da viagem real: estranho, ontológico, desempenhando a imprescindível função de estranhamento própria da verdadeira poesia: “Sigo no barco que sobe o rio. Porém / não sinto que subo o rio: / sinto, em vez disso, / que o rio me sobe a mim” . A diferença entre a poesia do rendilhado, do arabesco e a poesia autêntica é que esta segrega o real nas suas entranhas, e as palavras são, à maneira do Crátilo, de Platão, coisas, seres vivos, ou que com estes se fundem e confundem. E essa poesia, como o Douro sentido e não só percorrido, “escalda como / uma febre nas dunas. Repercute / nas têmporas, magoa / as vísceras da alma” . Desta forma, ninguém sai incólume à leitura de um poema de A. M. Pires Cabral, porque ele não se funda no fogo-de-artifício retórico, mas no fogo magmático de cariz ontológico dos seres e das coisas. Não nos deixemos pois confundir pela ironia poética dirigida aos poetas abrasados e canoros, os mesmos que no “Prefácio” de Têmporas da Cinza eram classificados como “os piores de todos nós”, porque “perfuram o tímpano” . O Poeta não renega em momento algum a sua condição de poeta, seria aliás renegar-se no píncaro da superior missão porque veio ao mundo, ele renega simplesmente o artificialismo e o convencionalismo poéticos. Desde logo, A. M. Pires Cabral é um poeta no sentido atribuído pelo grande romantismo alemão ao poeta e à poesia, ou seja, categoria estética que percorre e é inseparável do homem no mundo e na linguagem. Aliás, ao observar os múltiplos planos segundo os quais se desenvolve a obra de A. M. Pires Cabral, ocorre-me outra observação de Jorge de Sena, referindo-se à sua própria obra, também ela diversa e plural, como é sabido: “sempre achei que a poesia é a minha principal criação, mesmo quando estou fazendo coisas inteiramente diferentes de poesia. Penso que o sentimento poético está sempre por detrás de tudo o que escrevo” . Sendo, por conseguinte, Pires Cabral um poeta ainda quando escreve em prosa, é enquanto poeta tout court que o seu talento atinge dimensões incomuns e renega, por conseguinte, com certa regularidade, a poesia e os poetas com aquela ironia com que o nosso Garrett renegava o Romantismo, precisamente na sua obra romântica maior, As Viagens na Minha Terra: “Romântico, Deus me livre de o ser” , o mesmo é dizer, “os poetas, repito / são os piores de todos nós” .
Pensamos que na velha disputa entre a origem da beleza superior, se a residente no mundo natural, segundo Kant, ou na obra de arte humana, segundo Baudelaire, A: M. Pires Cabral parece inclinar-se, neste e noutros livros, pelo filósofo alemão. Todavia, não sejamos ingénuos, estamos perante um altíssimo produtor de beleza artificial: apesar da naturalidade da sua escrita, ela não é mais do que o effet du réel, uma procura do modelo exemplar na natureza. Ele sabe que apesar da essencial beleza do seu rio e da sua montanha, elas perderiam bastante sem o sujeito sensível e contemplativo, estésico e estético, espectador e transfigurador, que toma essa matéria primeira para a destilar em matéria verbal indelevelmente inscrita na obra de arte de linguagem, ou seja, no poema. Esta questão entre o Real e as palavras que o cantam, sua pertinência ou utilidade, é pelo poeta insistentemente colocada; e este livro não foge a essa regra. Observe-se o poema “Palavras”: “Que queres, Douro, de mim? / Não posso senão palavras, / […] opor palavras contrafeitas / aos ruídos que salteiam este sítio / tão alegremente / […] Com tanto rumor nativo, / com tanto rumor sadio / - para que diabo, Douro, quererás / as intrusas / palavras inquinadas do poeta?” .
Continuemos então a seguir o périplo líquido e escrito, este mundo natural está entranhado até ao âmago pelo mundo humano: construído, destruído, reconstruído, de novo devassado. O Poeta comove-se, revolta-se, compadece-se: o presente cruza-se com o passado, que o mesmo é dizer, a vida sempre intrínseca e dialecticamente perpassada de morte, como se verifica em “Solar em Ruínas”, cujos destroços, mais que destroços materiais de uma construção, são metafóricas ossadas dos seus antigos habitantes e o testemunho de que a pompa não suspende, antes torna mais ostensiva, a acção da morte. Trata-se de uma meditação de carácter elegíaco que não deixa de denunciar a intemporal exploração do homem pelo homem: “Além, sobre o lado esquerdo, / um solar destroçado pelo tempo, / derruído quase até aos alicerces. // Nasceu do chão do suor como um pomposo / cogumelo, e dele prosperou. / Teve lustres acesos nos salões, / porcelana da China nos armários, / garanhões na estrebaria e no quarto das criadas, / tectos de castanho com lavores, / obra de artesãos remunerados a malgas de caldo. // E, por cima de tudo isto, /uma capela muito compenetrada / do seu papel de pára – raios. // Ei-lo porém decaído do fausto, devassado de animais daninhos / que nele nidificam e defecam. // Lastimável como um cão extraviado / do aconchego dos donos. // Resta um pano da fachada, onde / entre as heras que comem do granito / a pedra-de-armas ainda sobrevive / […]” . E nesta linha melancólica e elegíaca em que o sujeito viaja e se viaja, toma o itinerário em sua mais estreme alegoria.
O rio é, em todas as circunstâncias, uma lição de vida e de poesia, “ou não fosse o rio um espelho / antes de rio” . O seu funcionamento perfeito, a sua rigorosa selecção entre o essencial e o acessório, tornam-no num mestre, diríamos, o supremo Mestre e, nessa medida, “De Scientia” apresenta-se como uma soberba arte poética: “Comparativamente, / o rio sabe muito poucas coisas. // Não sabe, por exemplo, que este peixe /que agora mesmo lhe arrufou a tona / é um Barbus Bocagei. // Porém sabe que tem de ir e vai. /Sabe a rapidez com que deve ir / a cada momento. Sabe o caminho. / E sobretudo sabe o sítio / que o dedo do grande destinador / lhe apontou para recolher ao mar. // E eu? // Atento a todas as vozes, / entregue à libertinagem / de tanta sabedoria - / eu, amigos, que sei eu / de mares no fim da viagem?” .
É privilégio nosso, a Nordeste, bem no centro de múltiplos paraísos naturais, como este(s) Douro(s), termos entre nós, um homem, um intelectual, um escritor, um poeta com a dimensão de A. M. Pires Cabral que, como poucos, tem o segredo horaciano do “malho e da bigorna ”  para erigir a escultura poética. E sejamos gratos a quem dá muito e pede pouco, quase nada. Felizmente, a sua reconhecida contenção não o inibiu de pedir à vida um mínimo, para os seus leitores, essencial: “Não pedi demasiado à vida / nem a esta viagem: / uma guitarra apenas, uma voz” .

1 - A. M. Pires Cabral, Douro: Pizzicato E Chula, Lisboa, Edições Cotovia, 2004, p. 47.
2 - Idem., p. 45.
3 - A. M. Pires Cabral, Têmporas da Cinza, Lisboa, Edições Cotovia, 2006, p. 62
4 - Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, Porto, Porto Editora, 1985, p. 15.
5 - Douro: Pizzicato E Chula, ob. cit., p. 27.
6 - Idem., p. 28.
7 - Idem, p. 13.
8 - Idem.
9 - Idem, p. 14.
10 - Idem, p. 53.
11 - Idem, p. 17.
12 - Idem, p. 63.
13 - Têmporas da Cinza, ob. cit., p. 11.
14 - Jorge de Sena, cit. por Luís Adriano Carlos in Fenomenologia do Discurso Poético
– Ensaio Sobre Jorge De Sena, Porto, Campo das Letras, 1999, p. 14.
15 - Almeida Garrett, ob. cit., p. 55.
16 - Pires Cabral, Têmporas da Cinza, ob. cit., p. 69.
17 - Douro: Pizzicato e Chula, ob. cit., p. 24.
18 - Idem, p. 19
19 - Idem, p. 30.
20 - Idem, p. 35
21 - Idem, p. 46.
22 - Idem, p. 57.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS Miguel de Sousa, mercador e rendeiro (1532 – 1597)

Era certamente o mais conceituado de entre os cristãos-novos de Bragança, de certo modo liderando a comunidade. Um dos seus denunciantes retratou-o com as seguintes palavras:

- Miguel de Sousa o qual é muito poderoso na dita cidade, discreto e avisado, com  quem os cristãos-novos se aconselham. (1)

Ele próprio, defendendo-se perante os inquisidores de Lisboa, diria:

- Todas as pessoas a quem ele réu tem posto contraditas são pessoas de muito baixa sorte e caridade e oficiais mecânicos, com os quais ele nunca tratou nem conversou, nem eles com o réu, nem com eles têm razão de parentesco algum; antes é dos principais homens que há da nação, na cidade de Bragança e 20 léguas ao redor dela. (2)

Na verdade ele não era um qualquer mercador e cobrador de rendas. De contrário era um homem de nobre estatuto, condecorado por Sua Majestade com a Ordem Santiago e uma pensão de 20 000 réis. Entrava na da governança da cidade e aparece referido como um dos 5 notáveis que participaram na cerimónia da tomada de posse do castelo de Bragança pelo representante do rei Filipe, em 1580. (3)

E por ser homem de nobre estatuto e conceituado entre os da nação, tomaria a iniciativa de tentar negociar um perdão do rei para os brigantinos prisioneiros da inquisição, dizendo que faria o melhor que pudesse.
Tão conceituado era entre os seus correligionários que alguns até se convenceram de que a inquisição o não prenderia porque tinha uma bula passada pelo santo padre de Roma que o protegia.

Paradoxalmente seriam todas estas “virtualidades” que levariam à sua ruína e que começou em 1587 com a prisão de Diogo Fernandes, de Quintela. Com efeito, um irmão e um sobrinho deste, temendo ser presos, terão ido aconselhar-se com Miguel de Sousa e este lhe terá dito que fugissem para fora do reino. Conselho idêntico terá dado a outros. Tal como aconselharia a que matassem uma moça cristã-nova que fora criada de um Francisco Cardoso e que a atirassem a um poço por temerem que denunciasse cerimónias de judaísmo que presenciara em casa de seus amos.

Decerto não podemos confiar na veracidade dos factos contados por este e outros denunciantes, dado o ambiente que então se vivia na cidade e ficou conhecido como o caso dos falsários de Bragança. Os próprios inquisidores de Coimbra, em 9 de Julho de 1593 mandaram escrever o seguinte:

- Foram vistas as culpas que há contra Miguel de Sousa (…) e vendo-se os defeitos dos testemunhos de Gonçalo Fernandes de que só é a culpa de o aconselhar que se fosse e fica só fautoria, as mais 3 testemunhas têm por falsas (…) e se revogaram…

Aparentemente esta deliberação mostra que os inquisidores consideraram que Miguel de Sousa seria uma vítima dos falsários. Contudo, o processo não ficou parado, antes se fizeram várias diligências para averiguar da verdade ou falsidade das denúncias feitas, as quais foram cometidas ao reitor do colégio da companhia de Jesus, em Bragança. (4)

Dias depois, em 13.7.1593, as coisas mudaram por completo. Leonor Cardosa, (5) curandeira de ossos, moradora na rua Direita de Bragança, vizinha de Miguel de Sousa, que estava presa no mesmo tribunal da inquisição de Coimbra, contou aos inquisidores que, 4 anos atrás, fora chamada pela mulher de Miguel para compor um braço partido a um filho seu. E entrando na casa, viu que estavam ali reunidas umas 11 mulheres, junto ao menino e em outra parte da sala (“muito espaçosa”) estavam uns 18 homens, que a todos nomeou. E toda aquela gente estava seguindo a leitura que fazia um filho de Miguel de Sousa, chamado Francisco, (6) o qual livro era da lei de Moisés, conforme lhe disse a dona da casa, Isabel da Costa.

Entretanto, acaso por quaisquer suspeitas, Miguel Cardoso já antes se tinha abalado de Bragança e dirigido a Coimbra a apresentar-se na inquisição, antecipadamente apontando os seus inimigos. Ficou desapontado por os inquisidores lhe perguntarem se vinha confessar suas culpas e pedir misericórdia. Respondeu que não tinha culpas e que dali seguiria para Lisboa apresentar-se ao Conselho Geral a indicar os seus inimigos que falsamente o poderiam incriminar. Em Lisboa arranjou casa e logo mandou ir a mulher e ali “estavam mui prósperos e descansados” quando veio prendê-lo o meirinho da inquisição, em 18.9.1593.

A expressão “prósperos e descansados” consta de uma das duas exposições enviadas à inquisição pelo advogado Francisco de Sousa, em defesa do seu pai, tentando provar que na base da sua prisão estavam falsos testemunhos promovidos pelos seus inimigos, principalmente Rodrigo Lopes e seu genro Pedro de Figueiredo que em Lisboa andava “em hábito de viúvo com um capuz” arregimentando testemunhas como os irmãos Rodrigues, sapateiros de profissão, “barregueiros” de alcunha “vestidos de pardo”…

Estas exposições de nula utilidade foram para a causa do prisioneiro que, em simultâneo, era carregado de culpas por outras testemunhas, nomeadamente sua mulher que também foi presa, duas semanas depois e sua sobrinha Justa Dias. (7)
Extraordinário o comportamento de Miguel de Sousa. Durante mais de 3 anos, aguentou-se firme, nada confessando e a ninguém denunciando. Acabou queimado na fogueira do auto de fé celebrado em Lisboa em 23 de Fevereiro de 1597.
O mais grave de seus crimes terá sido a sua contumácia, que ficou bem vincada logo ao início, na 2ª sessão que com ele tiveram em 24.5.1594. Começado a ser interrogado pelos inquisidores, logo esclareceu que não tinha nada para lhes dizer e que apenas falaria perante o Conselho Geral, onde se tinha apresentado, não para confessar culpas, que as não tinha, mas para livrar a sua face das calúnias de seus inimigos. Retorquiram-lhe os inquisidores que o seu processo havia de prosseguir naquela mesa e não na do Conselho Geral. A sessão terminou escrevendo-se em ata:

- E por dizer que não queria responder perante o senhor inquisidor mas perante o conselho geral e sendo admoestado muitas vezes não quis responder outra coisa e para constar a sua contumácia…

Esta atitude manteve-a até ao fim. Em uma das audiências diria que se tivesse culpas teria fugido como fugiram muitos. Nem sequer mudou de atitude quando lhe foram atar as mãos e dizer que estava condenado a ser relaxado. E nem ao menos quando se encontrava já no palco do auto da fé ouvindo ler a sentença da morte.

Deveras interessante é o seu processo para o estudo da sociedade brigantina da época. É um processo cheio de contraditas que mostram à evidência um mar encapelado de tensões. Apontando mais de 3 dezenas de inimigos, apresenta mais de 70 testemunhas de defesa. As situações são as mais diversas e as pessoas de todos os setores de atividade (8) e todos os estratos sociais. A título de exemplo veja-se o que aconteceu com Jerónimo Rodrigues.

Em 24.12.1589 disse que jejuou no Kipur de 1578 juntamente com Miguel de Sousa estando ambos na cidade de Guimarães, em viagem de negócios. Em 8.5.1592 disse que tudo foi mentira e que ele inventou aquilo para se vingar de Miguel de Sousa que lhe tinha mandado os seus criados fazer um buraco na parede de um pombal e metido gatos lá dentro que lhe comeram os pombinhos, dando-lhe um prejuízo de 40 000 réis. Haveremos de acreditar?

Miguel de Sousa era natural de Trancoso. Ficou órfão de mãe aos 5 anos e de pai aos 10. Casou em Bragança e ali residiu. Começou a sua vida de mercador viajando muito por Castela onde ia comprar machos e mulas. Depois ascendeu à categoria de rendeiro e só o enunciado das comendas que trazia arrendadas impressiona. Infelizmente naquela época a inquisição não fazia registar no processo o inventário dos bens dos prisioneiros para termos uma noção completa do poder económico deste homem. Terminamos estas notas com a explicação que ele dava para se não comer carne de porco:

- Disse que não se devia comer carne de porco, nem ele comia a carne porque o porco andava sempre com os olhos no chão e todas as coisas que não olhavam para Deus se não haviam de comer.

NOTAS
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 9697, de Gonçalo Fernandes.
2-IDEM, inq. Lisboa, pº 5104, de Miguel de Sousa.
3-ALVES, Francisco Manuel – Memórias… Tomo VIII, p. 21.
4-Destas diligências o mais interessante é o comportamento dos jesuítas de Bragança como apaziguadores de conflitos. Com efeito, enquanto procediam ao inquérito pedido, conseguiram estabelecer a paz e “ficar amigos e correntes” entre as famílias de Miguel Sousa (os Borges) e dos Sarmentos.
5-ANTT, inq. Coimbra, pº 5514, de Leonor Cardosa.
6-Francisco de Sousa era então estudante em Salamanca, universidade que frequentou entre 1582 e 1592, formando-se em Cânones e Leis – DIOS, Angel Marcos de – Índice de Portugueses en la universidade de Salamanca (1580-1640), in: Brigantia, vol. XVII, nº ½, p. 178, 1993.
7-ANTT, inq. Coimbra, pº 6038, de Isabel da Costa; pº 9276, de Justa Dias.
8-Interessante: um dos participantes na “sinagoga” em casa de Miguel de Sousa chamava-se Manuel Rodrigues e tinha a profissão de toureiro.

Vendavais - Pára Pedro para não caíres

Durante séculos enchemos a boca com a façanha dos Descobrimentos e reclamámos para nós a primazia da chegada aos novos mundos e a novas gentes a quem levámos a nossa língua, a nossa cultura, o nosso saber e a nossa religião. Durante séculos o mundo reconheceu essa extraordinária aventura portuguesa como ímpar na historiografia dos povos desses séculos tão longínquos ao ponto de não reconhecer qualquer alteração ao que nós realmente ensinámos aos povos por onde passámos e com estivemos. O orgulho nacional foi elevado durante muito tempo ao expoente máximo e dele fizemos bandeira que drapejámos em todos os continentes.
Não entendi nem consigo entender as razões subjacentes à necessidade estapafúrdia de alterar a nossa própria língua escrita e fazer para isso um acordo ortográfico que mais não serve do que servir os outros que nem são portugueses, mas que sempre falaram português, aquele que nós lhes ensinámos. Sim, esse mesmo, com acentos, hífens, com consoantes mudas e com todo o resto que da língua fazem e sempre fizeram parte integrante. Nunca quis entender essa necessidade de mudança. Não me convenceram com os milhões que falam a língua portuguesa em todo o mundo, nem com os milhões que não sendo portugueses, falam o português que afinal lhes foi ensinado por nós há muitos séculos. No Brasil sempre se falou a língua portuguesa, embora com as nuances que lhes são peculiares, mas não devem ser essas nuances linguísticas que nos obrigam a mudar a nossa própria língua, a mesma que nós para lá levámos e que eles aprenderam e falam até hoje. Eles sempre se deram bem com isso e sempre souberam falar a língua de Camões e com ela se entenderam ao longo dos séculos sem ver necessidade de alterar fosse o que fosse ao que aprenderam. Então porque haveria de alguém sumamente iluminado propor umas alterações a essa língua tão bonita e tão falada no mundo inteiro? Para mim serve a explicação de fazer o jeito a terceiros baseado em segundos acordos que nada têm a ver com o latim que nos foi transmitido pelos primeiros habitantes deste cantinho privilegiado e os seguidores tão bem privilegiaram. Não aceito as explicações de comodismo de linguagem. A caneta escreve redondo qualquer frase que saia da cabeça de cada um de nós e só escreve o que na cabeça estiver certo. Acertem-se as cabeças pensadoras.
Felizmente ao fim de alguns anos de tanta especulação, tantos a favor e tantos contra estas alterações ortográficas, lá se fez ouvir finalmente a Academia que acaba de sugerir o regresso de acentos, consoantes mudas e do hífen ao famigerado Acordo Ortográfico. Claro que há agora outros problemas a ultrapassar e advêm do facto de ter havido estas espertezas saloias em tempo inoportuno e que se prendem com os alunos que já aprenderam a escrever de modo diferente onde facilitismo supera a ignorância ortográfica. A esses, que não têm culpa do que alguns adultos fizeram e outros tiveram de ensinar, resta-lhes fazer umas correcções e acomodarem-se a um português mais português e mais igual ao que os pais aprenderam.
Dou os meus para bens à Academia ao sugerir este acerto que não sendo um retrocesso ao acordo firmado, pelo menos esclarece alguns vocábulos que francamente, eram uma aberração à língua original de Camões, aquela que nós tanto louvamos e que continuará a ser um emblema da marca portuguesa. Nela se espelha a alma nacional pelos poemas de Bocage e Pessoa, pelos textos de Aquilino e nos contos de Torga. Como é bom voltar a escrever espectador em vez de espetador ou recepção em vez de receção ou pára quando é pára e não para em vez de pára.
Realmente não vale a pena confundir o que é simples nem simplificar o que não deve ser simplificado já que lhe retira o cerne semântico que o caracteriza.
É tempo de parar! Então, pára Pedro para não caíres! Ponto final.

FUMEIRO - Para Carla Alves e Alexandrina Fernandes

O Homem via-o crescer espontaneamente, inflamado, das folhas secas, dos boqueirões vulcânicos, dos incêndios repentinos das florestas. Temiam-no, tremiam ao contemplarem os seus efeitos. Por tão ingente impressão os homens primitivos lhe prestavam culto, alargando-se tal culto pelos séculos fora a vários povos de díspares latitudes.
Na sequência dos intempestivos incêndios, às vezes, os nossos ancestrais dos primórdios apreciavam despojos de carne de animais apanhados pelas chamas, o sápido sabor, fugaz, a desaparecer no gorgolejar seguinte. Eles não sabiam produzir o fogo.
Os investigadores acreditam terem os homens aprendido a «fazer» fogo sem saberem uns dos outros, também não é fácil estabelecer prioridades no tocante à fricção de seixos ou de dois paus, sabemos sim, ser essa descoberta a mais importante da história da humanidade.
Os anexins dizem: não há fogo sem fumo, nem há fumo sem fogo. Ora, se o fogo revolucionou a vida dos nossos longínquos antepassados, se possibilitou e possibilita os alimentos serem cozinhados, o fumo defuma as carnes conservando-as mais tempo descobriram os nossos parentes de antanho.
De experimentação em experimentação consideraram as tripas dos animais abatidos como precioso auxiliar no derribar de dificuldades de um quotidiano sulcado delas, impermeáveis e elásticas serviam na perfeição no transporte da imprescindível água, para a confecção de utensílios, vestuário e calçado. E…para receberem produtos a defumar porque de outra forma deterioravam-se num ápice.
Sim, dos experimentos saiu a prova provada de suportarem o fumo sem risco de os conteúdos se estragarem. E, assim foi a parição do fumeiro fruto da fumagem de lenha.
Sobre as características da fumagem dispenso-me de escrever, do mesmo modo relativamente aos modos e segredos na escolha das lenhas, horas e constância do fogo, não obstante, atrevo-me a dizer que existe arte na arte da fumagem levando a que a mesma ascenda a um plano de conceder peculiar sabor aos enchidos, e não apenas prosaico método de conservação.
Nesta crónica parece-me despiciendo aludir a outros produtos passíveis de fumagem que não tenham matricialidade no porco, do estimado animal tão nosso amigo após a sua morte intencional – a matança –, embora judeus e muçulmanos o considerem indigno de ser comido, apreciado, saboreado dentro das sete cozeduras.
No Nordeste o fumeiro durante séculos só ascendia à condição de luxúria gastronómica nas casas dos ricos (ricos a sério eram muito poucos), nos restantes lares de gente abonada, remediada e pobres os salpicões e as chouriças de carne detinham o estatuto de moeda sonante, pagavam favores de toda a ordem, se sobravam vendiam-se alguns e algumas a fim de a Grande administradora – a Mãe – adquirir o indispensável na mercearia, na botica e alguma roupa e calçado. Salpicões e chouriças de carne apenas no folar, parcimoniosamente na altura das segadas, malhas e nos dias nomeados, festas e romarias.
Mais democráticas as alheiras. Mesmo assim imperava a conta, peso e medida, verdade, verdadinha, na generalidade dos lares nem as bocheiras, de verde e restantes estavam à mercê da ânsia de toda a família. Os azedos (de pão), o palaio, a bexiga alegravam o estômago dentro do preceituado pelo calendário.
Como expoente visível, a faculdade de o fumeiro amenizar a monotonia dos jantares (almoços) e ceias, de alegrar as merendas, de proporcionar duplo e deleitoso prazer quando se retiravam do folar rodelas de salpicão e de chouriça, comidas aos solavancos, vagarosamente levava-se ao «céu-da-boca» massa que as envolvia. Delícia das delícias.
As condições de vida mudaram, para melhor, felizmente, desde há anos as transformações sociais e económicas potenciaram a recuperação das Feiras de produtos específicos, sendo a do Fumeiro de Vinhais pioneira no que tange ao mealheiro alimentar de outras épocas.
Fala-se muito do arrebatamento quase totalmente triunfante do sector das Feiras de matérias-primas alimentares. Discute-se animadamente isto e aquilo, salvo melhor opinião valia a pena analisar-se o essencial, deixando de lado o acessório. E, o que é o essencial? Inúmeros vectores, desde os referentes à concorrência até aos da genuinidade, passando pelos da inovação, criatividade, multiplicidade turística e representações gastronómicas. Ainda, acerca das incertezas críticas.

Clube dos auriculares: os doutores da limpeza

Ter, 31/01/2017 - 10:17


Olá familiazinha! Somos chegados ao último dia do primeiro mês de 2017, vem aí o mês mais pequerruchinho do ano que, no meio, tem o dia dos namorados e termina com o dia de carnaval.
No passado sábado estivemos em mais uma “presidência aberta” para promovermos um evento que dá vida às nossas terras, desta feita a II Feira Rural da Terra e das Gentes da Lombada, numa manhã muito animada. Além de vários expositores de artesanato e de produtos da terra, exposição de máquinas agrícolas, montarias, passeio pedestre, BTT, concurso de ovinos da Raça Churra Galega Transmontana, cujo o 1.º prémio do conjunto foi para o Alípio, de Sortes e também o concurso de Cão de Gado Transmontano em que o vencedor foi o cão de Adérito Pires, de Freixedelo.
Claro que os maiores representantes actuais das Terras da Lombada, isto é, a Escola dos Gaiteiros e Tocadores da Lombada, garantiram a grande animação da feira.
O nosso programa de rádio começou com a prata da casa, com a tia Fatinha a rezar as orações da manhã, ao vivo em directo e a cores e o nosso Francisco Cubo, que tantas vezes nos anima com as suas melodias, também abrilhantou a nossa manhã.
Agora vou-vos apresentar o “Clube dos Auriculares”.