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Falando de… A Caça na Literatura Portuguesa, de Júlio Carvalho

Somos Bragança. E os bragançanos, ufanos do seu rincão, celebram mais um ano da sua cidade, fazendo vincar que se trata da nona cidade mais antiga do país.
Em tempos não muito recuados, Santa Rita Xisto, estudante talentoso em dias de boémia, denominou-a de Coimbra em miniatura. E a cidade foi crescendo. Ultrapassou as costuras dos seus limites. O Fervença parece pedir meças aos rios de grande caudal. As ruas alargaram-se e alindaram-se. O comboio de grandes recordações, inopinadamente subtraído, foi substituído pelos modernos autocarros que atravessam Portugal do Minho ao Algarve. Gente capaz, briosa e de talento tenta mostrar a cidade ao país, orgulhando-se do trabalho feito.
As Escolas não param. O Instituto Politécnico vai atraindo gentes e faz gala de ter dentro de si uma investigadora de nível mundial. Honra ao mérito. A edilidade não esqueceu e em momento aprazado todos aplaudiram. O trabalho, muito trabalho a merecer honras e a ecoar nos presentes.
A cidade está viva. Desafia o conhecimento. Agentes locais espraiam-se no desenvolvimento. Praticam a memória. Mnemósine não descansa. Festeja-se a palavra e mostram-se as capacidades.
E Bragança acontece. Em Bragança vai acontecendo. A inquietação e a insatisfação são marcas de água das gentes que não se acomodam e tentam perpetuar talento e saber, desafiando outros que virão na sua esteira.
A realidade inspira-nos. O trabalho, o lazer e a diversão cabem em nós, porque não partilhar com os outros, lembrando tempos vividos?
Júlio  Carvalho que se afirma desconhecido caçador, mas que aprecia a arte de caçar, cidadão de um Portugal de algures, que um dia foi de abalada por terras de Vera Cruz, onde se fez homem e estudou, em Bragança criou raízes. Fez amizades, afinou o verbo e ensinou. Escreveu. Escreveu muito e oralizou mais e um dia ambicionou legar o que fez dele gente: um livro.
A Caça na Literatura Portuguesa, na sua dimensão, que saibamos, é um livro inédito nas nossas letras. Pires Cabral já havia escrito Páginas de caça na Literatura de Trás-os-Montes, outros à caça dedicaram o seu saber, lembremo-nos de A caça na sociedade aristocrática dos séculos XII a XV, de Vera Grilo. Júlio de Carvalho foi mais longe, distanciando-se dos seus prógonos. Servindo-se de 188 obras, de 110 autores, em cerca de 350 páginas de texto, sete de bibliografia e 277 notas de rodapé, numa pesquisa condicionada à sua biblioteca, “convida-nos” a entrar por um acervo com limites a quo e ad quem que vão do lirismo trovadoresco aos nossos dias. Oito séculos de literatura escalpelizados com cuidado, tentando mostrar ao público uma riqueza que ficará para a posteridade.
De modo cauteloso, onde não falta o “tolerante leitor”, como se de Garrett se tratasse, num registo parecido, em tom simples, coloquial e acessivo, utilizando o pronome pessoal na primeira pessoa do singular, estabelece com o leitor uma relação de intimidade e de aproximação que nos convida à integração subtil e despreconceituosa. Com uma ligeira incursão na Pesca. No Rio Baceiro e na Castanha, parece que Trás-os-Montes se aproxima de nós, como se tudo nos pertencesse e entrasse pelo nosso olhar, comungando cheiros, sabores e tudo o que os sentidos absorvem.
À maneira dos compêndios que preencheram épocas em que o estudo da Literatura Portuguesa constituía matéria obrigatória nas nossas escolas, hoje arredada dos estudos, numa época em que os complementos oblíquos(?) ocuparam o lugar dos complementos circunstanciais, o autor lembra a divisão cronológica dos vários períodos da Literatura Portuguesa, matéria pouco interessante nos tempos que passam.
Que importa saber se Almeida Garrett é romântico ou medieval? Basta saber que escreveu Frei Luís de Sousa e já chega, isto antes de se processar a redução das aulas da disciplina de Português e fiquemos reduzidos à leitura dos livros que ocupam os pódios das livrarias, com Cristina Ferreira e Fátima Lopes no comando, com Rúben Rua à ilharga.
O livro é escrito por quem sabe da poda e não esqueceu. Começou de forma exemplar a caça no período galaico-português, com uma cantiga de Pero Meogo, escrita por volta do século XIII, citando os Cancioneiros da Biblioteca Nacional, Colocci- Brancuti, da Vaticana e da Ajuda, entra pela Poética Fragmentária distinguindo Cantigas de Escárnio e Maldizer. De um modo geral, os autores são devidamente identificados através de datas. Para o estudioso da Literatura, na nossa presença, um texto didáctico, como se todos os livros não o fossem, peço de empréstimo a afirmação a José Saramago que, também, é citado em Levantado do Chão e Memorial do Convento.
Um trabalho de pesquisa, de não curta duração. Tarefa de investigador que entre o muito que lhe é proporcionado, tem de encontrar o documento exacto, resultado de muita paciência, dedicação e esforço. Para quem conhece Os Lusíadas, não terá descoberto entre 1102 estrofes, i.e., 8816 versos, a existência de marcas de caça? O autor esteve lá e encontrou. No Canto IX, das estâncias LXIII à LXXV.
Da Fénix Renascida, edição de 1746, adquirida num alfarrabista, do Rio de Janeiro, proporciona-nos cópias, transmitindo mais verdade à informação.
Embora confesse que um trabalho desta natureza “ será sempre incompleto”, esforçadamente, vamos ficando com um retrato dos vários autores que à caça dedicaram algo da sua verve. Chegados a Guerra Junqueiro ( pag. 205) é altura para saber que o autor, em cargo de responsabilidade no Governo do Distrito, degustou o vinho do poeta, néctar que o conduziu à valorização da leitura d’Os Simples, Os Contos para a Infância, a Oração do Pão e a Oração da Luz.
Dos Modernistas, de entre eles, descobrimos na sua desmultiplicação, Bernardo Soares, em O Livro do Desassossego, manifestando-se em vestígios de caça, o mesmo acontecendo em Almada Negreiros.
De Fausto José (1903-1975) que na Presença debitou algo do seu talento, foi buscar Júlio  Carvalho, amostras de caça, em obra publicada pela Câmara Municipal de Amares, onde o presencista foi presidente, “cargo que não apreciava” porque “o enredava em pequenas questões de ordem prática”.
     Miguel Torga, António Botto, Alves Redol e Fernando Namora, são alguns dos muitos escritores citados. Manuel Alegre que à caça dedica muito do seu lazer, mostra a sua versatilidade em Cão como Nós, fechando o leque de escritores; mas se aos conhecidos foi dado o espaço devidamente merecido, antes, um menos conhecido, a despontar na odisseia da escrita: Carlos Campaniço, nascido em 1973, director de Programação do Auditório Municipal de Olhão.
   Impossível terminar sem uma palavra de regozijo e um encómio por um trabalho
produzido para a comunidade, por um agente cultural que, no entusiasmo do seu viver, deu um passo em frente na Literatura de Portugal, neste Nordeste Transmontano.
  Um cívico, ao mesmo tempo um estudioso que um dia percorreu os bancos
da Escola ensinando, e que se obstina no conhecimento, continuando a valorizar o que
vale a pena aprender: caça e livros, num binómio conjugável.
  Lembrar hábitos da nossa gente também é Literatura. E foi Literatura que se construiu em Bragança, em dias e noites em que o clima espreita e nos torna mais solidários. Afinal, o frio também é inspirador.
  A caça aguça o engenho e o desconhecido caçador veio a terreiro e disse: leiam, este livro, é vosso, A caça na Literatura Portuguesa, do lirismo trovadoresco aos nossos dias.

Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Lopo Rodrigues,vereador da câmara (n. Vila Flor c. 1518)

Lopo Rodrigues nasceu em Vila Flor pelo ano de 1518. Seus pais, Jerónimo Rodrigues e Filipa Lopes pertenceriam à geração dos “batizados em pé”.
Seria um homem abonado de recursos financeiros, pertencendo à classe dos rendeiros. Explorava uma vinha e trazia arrematada a cobrança das rendas de Santa Comba da Vilariça e de Vilarelhos, com tulha instalada em cada uma destas localidades.
E porque era homem rico e conceituado, foi por algumas vezes “eleito” vereador da câmara de Vila Flor. E serviu também o cargo de almotacé, competindo-lhe tratar do policiamento da vila, da limpeza das ruas, da taxação de pesos e medidas e da regulação do preço dos alimentos. A este propósito e tendo em conta os documentos até hoje apresentados, pensamos que a lei de segregação dos cristãos-novos proibindo-os de exercer estes cargos municipais terá exatamente começado em Vila Flor, a título experimental, como hoje se diz. Posteriormente seria estendida a todo o país. (1) O mesmo se diga com a lei da “limpeza de sangue” exigida para servir em qualquer cargo, para entrar em qualquer ordem religiosa, ou na universidade e até mesmo para entrar num barco e viajar para o estrangeiro. (2) Pensamos também que neste processo de escolha de Vila Flor para a aplicação de tais medidas terá sido uma consequência da nomeação do inquisidor Diogo de Sousa para o tribunal de Coimbra em 1571 e da tomada de posse do cargo de abade de Vila Flor do inquisidor de Évora Jerónimo de Sousa.
O facto de Vila Flor ser então escolhida como campo experimental de novas leis antijudaicas, significará que a força da gente da nação era ali muito grande e estava sob vigilância apertada da inquisição. E sendo a terra da circunscrição do arcebispado de Braga, então governado pelo bispo/inquisidor Baltasar Limpo, viu-se assolada por uma vaga de prisões.
No meio do turbilhão foi apanhado um Álvaro Rodrigues, Lamegão de alcunha, estalajadeiro em Vila Flor. (3) E estando preso em Lisboa, contou que, 6 anos atrás, vindo de Santa Comba para Vila Flor, em companhia de Lopo Rodrigues, este lhe disse que andava inquieto e tinha medo de ser preso pois que, em Santa Comba, em presença de João Novo e outro lavrador cujo nome não recordava, ele dissera que Nossa Senhora não era virgem. E tinha medo que João Novo e o outro o denunciassem.
Foi quanto bastou para prenderem também Lopo Rodrigues, na inquisição de Lisboa, em 24 de Maio de 1558. (4)
Aliás, ele tinha já uma curta experiência destas coisas pois que, antes de 1547 fora metido na cadeia de Vila Flor, por ordem do vigário geral de Vila Real que, em nome e por ordem do arcebispo de Braga visitara a terra. O processo decorreu em Braga e não fica claro se ele foi libertado por ser declarado inocente ou em virtude do perdão geral então decretado pelo papa.
Antes de prosseguirmos com o processo, vejamos a situação familiar de Lopo. O pai seria já falecido e a mãe encontrava-se, há 2 anos, a morar na Galiza, com o filho Afonso Rodrigues que ali estava casado e a morar em Vila Ávila (ou Orense?). Tinha mais 3 irmãos, a morar em Vila Flor e uma irmã, casada na mesma Vila Flor e que virá também a conhecer as cadeias da inquisição, anos depois. (5)
Do resto da família, tios e primos, repartiam-se entre Vila Flor, Mirandela, Vila Real, Murça e Galiza, alguns deles seriam também hospedados nas masmorras do santo ofício. Ele era casado com Inês Dias e o casal tinha 7 filhos.
Metido na cadeia, Lopo Rodrigues organizou a sua defesa provando que era bom cristão, membro das confrarias de Nª Senhora do Toural e do Santíssimo Sacramento e dava esmolas regulares aos mamposteiros (6) do convento dos Trinitários da vizinha freguesia da Lousa e do convento da Graça em Lisboa. E era tão bom cristão que o abade e os confrades do Santíssimo Sacramento de Vila Flor o encarregaram de ir a Espanha comprar um pálio para a igreja. E nessa compra ele entrou ainda com uma avultada quantia: 50 mil réis. Provou também que era um cidadão exemplar que acompanhava sempre “com os homens honrados e de bons feitos”. Aliás, ninguém o acusara de qualquer falta no seu comportamento religioso e sabia bem a doutrina.
Embora os réus não fossem informados sobre as testemunhas de acusação, Lopo Rodrigues facilmente chegaria ao Lamegão, dado o seu historial “judeu” e o facto de ter sido preso anteriormente. E mais facilmente ainda, conseguiu provar que o Lamegão o denunciara por ódio e vingança. E mostrou que, ao contrário dele, o denunciante “era tido por mau cristão por toda a Vila Flor (…) homem de mau viver e falsificador de pesos e medidas de seu ofício de carniceiro, que usou na cidade de Lamego”, de onde fugiu para o reino da Galiza. Além de que era um homem “que se tomava do vinho” muitas vezes.
E contou que, de uma ocasião, na qualidade de vereador, o penhorou por dívida de dois mil réis. Acrescentou que, no ano anterior, em dia da festa de Corpo de Deus, sendo almotacé, lhe aplicou uma multa por não ter a rua varrida à porta da sua estalagem.
Referiu que trazendo ele arrendada a sanjoaneira (7) da comenda de Santa Comba, a trespassou por 100 mil réis/ano a Francisco Fernandes, cunhado do Lamegão “e em obras mais que irmãos”, resultando avultados prejuízos, não conseguindo cobrar tal montante, do que ficaram seus inimigos, dizendo que Lopo o tinha enganado e que havia de pagar.
Falou também de um acontecimento que, anos antes, abalou Vila Flor e que foi o assassínio de Manuel Martins, genro do Lamegão. O matador foi Simão Rodrigues, primo de Lopo. E depois de o matar, encerrou-se na igreja matriz de Vila Flor, lugar onde não podia ser preso. E quem o ajudou nesse “esconderijo” foi o mesmo Lopo, que também o ajudou a fugir para o couto de homiziados de Bragança onde se encontrava a viver, em paz e sossego, com a sua família.
Claro que os inquisidores mandaram o vigário geral de Torre de Moncorvo, Pero Fernandes de Lima, (8) fazer diligências em Vila Flor, sendo ouvidas as testemunhas indicadas por Lopo Rodrigues, as quais confirmaram todos os factos. O próprio João Novo, lavrador de Santa Comba, declarou que não ouvira nunca o réu falar da virgindade de Nossa Senhora e nada comentara com o Lamegão.
Claro que, vistas as provas, a sentença dos inquisidores não podia ser outra senão a absolvição do réu, e ditada nos seguintes termos:
- A pena é o tempo em que esteve preso e vá solto e pague as custas de seu livramento, porém o admoestam muito que procure sempre de viver como verdadeiro cristão, no coração e nas obras.

NOTAS:
1-Alvará de D. Sebastião de 1561 proibindo os cristãos-novos de Vila Flor de servirem em cargos públicos – MORAIS, Cristiano de, Cronologia Histórica de Vila Flor 1286-1986, p. 10.
2-Alvará de 1574, visando os cristãos-novos de Vila Flor – ANDRADE e GUIMARÃES, Caminhos Nordestinos de Judeus e Marranos, in: jornal Terra Quente de 15.12.1999. MEA, Elvira Cunha de Azevedo, A Inquisição de Coimbra, p. 177: - Em 1572 um Breve nega aos cristãos-novos acesso ao hábito de Cristo, logo seguido da provisão de 1574 em que se determina a impossibilidade de conversos se empregarem na câmara de Vila Flor. TAVARES, Maria José Ferro, Los Judíos en Portugal, p. 355: - Cronologia. 1574 Exclusión de los cristianos nuevos de la eleccion para los cargos de la cámara de Vila Flor.
3-ANTT, inq. Lisboa, pº 1581, de Álvaro Rodrigues, lamegão.
4-IDEM, pº 2175, de Lopo Rodrigues.
5-IDEM, inq. Coimbra, pº 8377. De Isabel jerónima, casada com Diogo Dias;
6-Os mamposteiros eram pessoas que nas diferentes terras estavam nomeadas para recolher esmolas para resgatar os cristãos que se encontravam prisioneiros dos mouros ou dos turcos.
7-Sanjoaneira porque se iniciava e terminava em dia de S. João.ANTT, inq. Coimbra, pº 8013, de Francisco Fernandes.
8-O vigário Pero Fernandes de Lima sucedeu no cargo ao licenciado Aleixo Dias Falcão que em 15.3.1560 foi instalar o tribunal da inquisição de Goa. Um e outro eram homens de confiança do bispo/inquisidor Baltasar Limpo.

Professores, esses desconhecidos (Notas)

Em tempos escrevi um texto sobre os professores onde fazia uma analogia entre as imagens refletidas dos professores e as de Dorian Grey( do “Retrato de Dorian Grey” de Oscar Wilde). Grey tem no reflexo do espelho a imagem dele sempre novo, imutável no tempo e os professores vêem na turma uma imagem que, também, não envelhece . Seria (será?) o seu reflexo. Esse texto tinha umas notas que por razões editoriais não foram publicadas com o artigo. As notas eram sobre a criação de personagens pelos autores de ficção (nota 1) e sobre o fenómeno do “apoderamento”(nota 2). As notas tinham sido introduzidas na altura em que o retrato de Grey passa a envelhecer em tempo real, logo passa a ter dinâmica própria e ao mesmo tempo que se apodera do espírito do retratado pois condiciona-lhe toda a ação. Dizia assim:
(Nota 1) É Barthes e a sua “morte do autor”. Segundo Barthes tem que morrer o autor para nascer o leitor. E este só nasce se as personagens tiverem vida própria, autonomia, liberdade, em suma, tiverem poder de decisão. Tem que morrer Wilde para nascer Grey. Em linha com esta ideia está este apontamento de Jorge Amado, que quando questionado sobre as razões dum casamento contra natura de dois seus personagens – ela bonita, doce, enfim, prendadíssima e ele um bardino, um mau “caratista militante” – disse ter feito tudo para evitar esse casamento mas em vão, não lograra vencer a vontade dos personagens. Ou ainda aquela história curiosa de Saramago com seu último livro “Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas” que não chegou a acabar. A ficção prendia-se com um caso de corrupção numa fábrica de armamento e quem conhecia toda essa maquinação era o Eng. da fábrica. Saramago, que registava em diário os avanços e recuos da sua obra, escreveu então que se o Eng. começasse a escrever um diário com os segredos que conhecia, seria o melhor que lhe podia acontecer, mas que isso não era garantido. Resumindo: tanto Saramago como Jorge Amado não conseguem controlar as suas próprias criações porque elas já tinham ganho “carta de alforria”. Criar é mesmo isso. É dar o sopro da vida. É o personagem criado libertar-se da tutela. Como em todas as religiões Teiístas em que o Homem é entendido como uma criação Divina que ganha autonomia, vida própria, responsabilização. Mas este conceito entra em confronto com o pensamento fatalista criando assim esta dualidade. Tenho liberdade de desenhar o meu futuro ou ele está determinado desde que nasci? Não é pois de estranhar que Cunhal experimentasse algum gozo quando criticava Victor Hugo, e para isso socorria-se de Goethe, acusando os seus “Miseráveis“ de não terem vida própria, de serem “ pau mandado”, de parecerem marionetas, de serem objecto de uma determinação. Assim, o fatalismo, determinismo, é desculpabilizante não exige responsabilização. “É o destino”, “tinha que ser”, “estava escrito”, “não havia nada a fazer” são alguns chavões fatalistas reveladores duma certa cobardia existencial. O fatalismo entende as criações como actores de uma peça teatral cujo guião tem um desfecho conhecido à partida. Criações permanentemente tuteladas pelo criador logo sem autonomia, sem responsabiliza­ção portanto inimputáveis. As­sim entende-se que Giovanni Papinni no seu “Juízo Final” ponha o Diabo a acusar Deus de todos as suas próprias malfeitorias argumentando que a matriz comportamental com que o tinha dotado não daria para fazer melhor. “Não tenho culpa. Sou assim porque fui feito assim” disse o Diabo.

(Nota 2) Seja este romance ( refiro-me ao “Retrato de Dorian Grey”) uma ficção que está para lá do místico ou tão só um expediente tático para suportar uma efabulação é um facto a preocupação do autor com o tema do apoderamento, da apropriação da personalidade, da cativação das vontades. Clarisse Lispector preocupou-se com o tema e falou dos nomes que se apropriam das coisas, coisas que se apropriam de coisas, pessoas que se apoderam de outras. (casos do dia a dia que tratamos de forma mecânica, de certa forma, confirmam isso: dizemos Katerpillar quando devíamos dizer tractor de rastos da marca Katerpillar porque Katerpillar é só uma marca; também Black&Deker refere um berbequim que pode ser de variadíssimas marcas; dizemos Jeep quando nos referimos a veículos todo o terreno quando afinal Jeep é só uma marca desse tipo de veículos. A marca, nome, apoderou-se de todos os objetos com a mesma função. No Brasil, fotocopiar diz-se Xerocar pois a fotocopiadora mais conhecida é da marca Rank Xerox. E o que é o “cimbalino”? É um café “tirado” de uma máquina cuja marca pode ser ou não “La Cimbali”. E porquê dizer que o pavimento de uma rua é em paralelo (de paralelepípedo) quando é quase sempre em cubos? E as “boutades”, que não deixando de o ser, são elucidativas como “uma lata de sardinhas de atum”, o” aviário de coelhos” não esquecendo a “alheira de bacalhau”). Virginia Woof também conjecturou nesse mesmo tema com a sua teoria dos espelhos côncavos. A própria Igreja preocupa-se com esse fenómeno tendo até um organismo, a Congregação para a Doutrina da Fé, para resolver questões de cativação da vontade por outrem ou por outra coisa, sei lá. E a nós ficamos com o silêncio das não respostas. O que são os possessos? Quem é Dr. Jekyll e Mr. Hyde? Quem é Drácula? E o Lobisomen? O que é estar com os espíritos? O que é o mau olhado? Para que servem os amuletos? Quem são os “tifosi “, esses adeptos de uma equipa de futebol, que a propósito de um (simples?) jogo tem posturas das quais, no dia seguinte, eles próprios se envergonham? Ficam, embora temporariamente, cativos de quê? E que dizer dos fãs de um qualquer cantor Rock que nos concertos, choram, gritam, entram em transe, transfiguram-se, parecendo autenticamente possessos? E que pensar daquele actor que depois de ter interpretado a figura da Abraham Lincoln numa peça teatral, (como se sabe Abraham Lincoln foi morto a tiro num camarote quando assistia a uma peça de teatro) passou o resto dos seus dias em camarotes assistindo a peças teatrais à espera de uma bala que fosse o desfecho” óptimo” de toda a sua encenação? Valerá a pena lembrar o requiem que foi encomendado a Mozart e que se apoderou de tal forma do espirito do autor destroçando-o, física e psiquicamente, atirando-o para uma morte que ele próprio achava um corolário lógico dessa sua última criação? O que é um “fetiche”? E o que é o “Santo Graal? E a espada do Rei Artur? E a premonição? E a ferradura na porta? E a superstição? E quem, num dia em que suspensos e tementes de uma revelação importante, não escolheu uma camisa, uns sapatos, um trajeto ou qualquer outra coisa onde nos pareceu ver inscrito aquilo que Afonso Henriques viu nos céus de Ourique? E o que é um exorcista? E quem é o exorcizado? E exorcizam o quê? E já agora um exemplo grosseiro mas com alguma graça: quando o Bibi, o da casa Pia, saiu da cadeia, vinha de fato escuro, óculos escuros e uma imagem em nada parecida com aquela dos tempos em que rebentou o escândalo, que era a de um homem acossado e sempre vestido de casaca vermelha. Isto levou a que alguém tivesse dito, que aquele não era o Bibi, porque o Bibi era o “gajo” da casaca vermelha. A coisa a apoderar-se do homem? Não sei.
E qual é a função da cabeleira dos juízes? E do vestido de noiva, do fraque ou da capa e batina? Será que o criador desses adereços e destas vestes talares quis tão só fazer um elemento distintivo e puramente estético ou por outro lado pensava que assim haveria uma certa cativação do espirito daqueles que os usassem? Em “morena de Angola “ Chico Buarque é assaltado pela dúvida – “será que ela mexe no chocalho ou o chocalho é que mexe com ela?”
Jude Law actor cinematográfico interpretou num filme a figura de um Papa. Numa entrevista sobre esse filme fez esta revelação: “Vesti a roupa de Papa e senti-me um super-herói. Aquelas vestes são como uma declaração de princípios.”
O hábito não faz o monge? Será que ajuda?
 

Vendavais Regresso ao passado

Portugal bem podia ser o país das experiências falhadas. Na verdade, já tivemos tantas tentativas para resolver alguns dos assuntos mais prementes e sem sucesso que o melhor será equacionar muito bem o modo de as implementar antes de saírem completamente goradas. De facto não é bom sinal andar a tentar resolver determinadas vertentes sociais e saltarmos de falhanço em falhanço sem avançar um metro que seja.
A Educação é bem o paradigma de tal insucesso e das tentativas falhadas. Sem grande esforço, conseguimos recordar as várias tentativas de reforma na Educação e nos currículos e a desistência de uns e outros para recomeçar numa outra perspectiva. A verdade +e que andamos neste vai e vem há imensos anos e sem resultados papáveis e profundos que sirvam de uma vez por todas, de cimento para a formação de uma sociedade futura digna e conhecedora.
Neste momento e com este Ministério da Educação a Educação volta a estar em risco de mudança profunda. O termo mudança é possivelmente demasiado assertivo. Seja como for, a informação que está a ser veiculada é a de que os currículos vão ser alterados. Os alunos vão ter menos tempos de Português e menos de Matemática, as disciplinas que continuam sem ter grande sucesso em termos de aprendizagem. Vai voltar a Educação para a cidadania e desta vez desde o pré-escolar e em termos obrigatórios. Eu até me atreveria a dizer “ainda bem” perante tanta falta dessa tal cidadania, especialmente no que respeita a aspetos como a corrupção e lavagem de dinheiro e à ladroagem que pulula por este país fora. A este nível até podia dar jeito!
Pois então, tal como em 2001, volta a estar inserida nos currículos a Educação para a cidadania! Nada de novo, como vemos. Mais uma tentativa de formar ou moldar uma juventude para amanhã ser o futuro da nação! Isto faz-me lembrar outros tempos, mas enfim!
As ideias agora avançadas já foram práticas correntes até 2012. Nuno Crato retirou-as e agora estes governantes querem voltar ao passado e experimentar o que não terá dado o resultado esperado. Não me parece muito acertado tal resolução.
O querer pôr em prática um “novo modelo” de ensino e novos currículos, envolvendo as escolas, professores e alunos de diferentes áreas, não me parece exequível. No mínimo, não é fácil face à carga horária quer dos professores, quer dos alunos. Na verdade, os professores não têm tempo para perder com reuniões transdisciplinares, pois o trabalho que têm com os alunos e com as aulas retira-lhes tempo para essas avarias curriculares. Depois ainda temos a pressão que os alunos e os professores têm com os exames, especialmente a nível do ensino secundário.
Acresce a tudo isto o facto de querer dar às escolas a possibilidade de flexibilizar os seus currículos de acordo com as regiões onde se inserem. Pois bem, isto até podia ser uma vantagem se não criasse desigualdades de aprendizagem em termos curriculares, já que os alunos passariam a aprender coisas diferentes de acordo com a região onde vivessem, para não falar também de outro problema que é o dos professores que não pertencem a essas regiões e andam a percorrer Portugal consoante as suas colocações. Estes teriam de passar ano após ano a aprender os assuntos temáticos dos currículos regionais. Parece-me uma aberração.
De tudo isto o que me parece ter algo de positivo é o facto de dar mais tempo às Ciências Sociais especialmente à disciplina de História. Na verdade, a História de Portugal tem passado para segundo plano e parece-me que já é tempo de os alunos aprenderem um pouco mais da História que enche a boca de todos quando se referem aos feitos antigos dos portugueses para preencher a lacuna dos tempos modernos da nossa História.
Se este regresso ao passado é mais uma tentativa para falhar, mais vale deixar tudo como está. Aos olhos dos outros países, que até seguem de perto este percurso sinuoso de tentativas goradas, este passo não merece aplausos da sua parte e não nos dá o retorno que desejamos, nem da juventude, nem de uma sociedade mais justa, equitativa e formada, para um futuro mais próximo.

BUTELOS, e…

De enchido de carácter entrudeiro e passaporte a validar no rito de passagem dessa quadra a produto culinário representativo de Bragança, foi determinante e trabalho da Confraria do Butelo, que recebeu e recebe apoio sem reservas da Autarquia bragançana.
Acerca das origens e influência do butelo já escrevi, desta feita o ter-se realizado no passado dia 16, em Lisboa, no restaurante da Dona Justa e do Sr. Nobre, o já habitual jantar de exaltação deste enchido e das cascas ou casulas leva-me a produzir nova crónica a extravasar o acontecimento em si.
Ninguém acredita no desinteresse da Câmara Municipal ao promover o achegamento de nordestinos, jornalistas, cozinheiros e tutti-quanti do universo culinário, obviamente o Dr. Hernâni Dias e seus colaboradores aspiram, desejam, querem aumentar a projecção e reconhecimento das amplas qualidades matriciais do concelho trazendo para cima da mesa um produto que «no antigamente» era concebido em estreita faixa da Terra Fria do Nordeste a na província de Leão até às adjacências de Bilbao.
O butelo ainda provoca indagações e se justifica documentário eivado de estridência ou alacridade, o ser apresentado na categoria de marca identitária de Bragança acarreta graves responsabilidades de vário recorte e matizes – autenticidade dos produtos, originalidade das receitas (assunto espinhoso), usanças culinárias, enlaces, apresentação – a que a Câmara e a Confraria têm de continuar e consequentemente a aumentar desvelos e atenções ao butelo. E…não só!
O E… acrescido das reticências titulares s têm a intenção de provocarem curiosidade, não no sentido de meter o nariz postado no Facebook, sim no propósito de levarem o leitor a tentar saber quais são as restantes Marcas emblemáticas do tesouro culinário de Bragança, seja no referente a entradas, caldos, pratos de peixe, de carne, folares e lambiscos. Ora, nesse tesouro existem fórmulas culinárias merecedoras de serem guindadas ao escalão da alta cozinha, de lograrem reconhecimento internacional tal como outras de menor rango o conseguiram, se há dúvidas consultem-se as tabelas classificativas da UNESCO.
O concelho brigantino não pode deixar passar ao lado a oportunidade de através da gastrónoma crescer e afirmar-se na Ibéria, os pessimistas façam o favor de pensarem no fascinante percurso do «jamon» até se transformar em poderosa arma da economia de Espanha.
Goste-se ou não os produtos transgénicos vão ganhar quota de mercado no atlas alimentar mundial, nos Estados Unidos acabam de ser aprovadas duas novas variedades comestíveis – maças rosadas e batatas – para já não entram na União Europeia, depois logo se vê.
Tendo em conta a acutilante realidade poderem-se perseverar e fruir produtos sem mácula e cozinhados ao modo dos nossos ancestrais é filão a explorar no bom sentido da palavra não descurando a sua sazão e engenhosos métodos de operacionalidade gastronómica e respectiva conservação. É a recuperação do Mundo perdido utilizando os benefícios do progresso científico e técnico. A competição é feroz, o competidor mora ao lado!
O jantar proporcionou-me rever caras e apertar mãos de gente conhecida, a fim de não cometer lapsos e obter resmungos não saliento ninguém, apesar da intenção cumpro a intonação de Orwell destacando a nossa referência moral da transmontanidade, o Professor Adriano Moreira, sempre arguto e informado, o anfitrião Hernâni Dias porque consegue transmitir eficazmente a mensagem sem ser maçudo, o advogado José Luís Seixas, deu-me a possibilidade de rememorar a nossa vetusta e querida cidade, ainda a sua Avó a distinta e respeitada professora Doa Beatriz Monteiro, e a sua Prima, a minha estimada amiga, a Maria do Loreto, e o Ezequiel Sequeira, fortaleza da boa disposição e cuidadosa encenação colateral.
Trocando um pedido por miúdos. Peço formalmente ao Presidente da Câmara de Bragança o favor de não esquecer o cabrito ao modo de Montesinho e o torradeiro. Vem aí a época. Obrigado. A seu tempo farei outras solicitações de defesa de comeres de cunho específico da Terra Fria.
Armando Fernandes 
PS. À Dona Justa e ao Sr. Nobre agradeço os efusivos cumprimentos.