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Um dia para as mulheres de todos os dias da nossa vida

Ter, 12/03/2019 - 10:35


Olá gente boa e amiga! Como estão os leitores da página do Tio João? Nós cá estamos. Como dizem ‘nuestros hermanos’, vamos tirando, um dia de cada vez.

Estamos no mês de Março e como diz o provérbio “em Março crescem os dias um pedaço”, ou ainda “Março marçagão, de manhã Inverno, à tarde Verão”. Ainda foi pouca a água que tem caído do céu para as necessidades da agricultura. As pessoas já andam a estrumar as terras para as preparar para o renovo.

Autognose existencial em Reflexos de Mim, de António Sá Gué

«A mente é um fogo a ser aceso, não um vaso a preencher»

Plutarco

 

«Para compreender os outros, precisamos mais de aprender os seus silêncios do que as suas palavras»

Ivan Illich

 

«O silêncio é apenas um horizonte no futuro, uma linha difusa que nos conduz a uma longa viagem interior»

Sá Gué

 

Neste pequeno livro, em tamanho, mas denso em reflexões e pensamentos, o autor apresenta-nos um espelho, onde se reflete sem rede e outras proteções. Aqui o ‘poeta’ desnuda-se e abre-nos o seu pensamento, escancara-nos a alma para deixar ver claro, através da pureza imaculada das palavras, a matéria de que é/somos feitos e que, nem sempre, temos a coragem e a ousadia de assumir e, utopia desejável, melhorar, como sugere. Com esta postura, o escritor cumpre a máxima de Gonçalo M. Tavares: «A alma deve encher todos os cantos da casa-corpo» (Tavares, 2018: 112).

O escopo principal do autor não é o pendor biográfico, nem confessional, mas sobretudo, reflexivo e intimista. Assim, as meditações que enformam o livro, sendo do autor, podem ser extensíveis ao leitor que se reverá no espelho, mais ou menos baço, que o escritor lhe apresenta na viagem que faz ao centro de si, como lembram estes versos de Emily Dickinson: «Debaixo! Explora-te a ti mesmo! / Pois dentro de ti encontrarás / o continente desconhecido». 

A obra, estruturada em quatro partes, apresenta-se irregular, uma vez que vale, em especial, pelas duas primeiras. A terceira era desnecessária e, quanto à quarta, é, puramente, um equívoco, como se verá a seguir.

Este último livro de António Sá Gué, abrigado à sombra da epígrafe de Rabi Nahman de Bratslav: «Não perguntes o caminho a quem o conhece pois assim não te poderás perder», pode ler-se como uma peregrinação interior sem qualquer tecnologia de orientação. Nesta viagem nunca a pergunta se resolve, antes se amplia, pois só a questionação pode mitigar as pequenas coisas que tecem a existência humana, aprisionada numa enorme teia. Assim, o escritor valoriza mais o processo, na senda da maiêutica socrática, do que o produto. A leitura destes textos lembra-me as palavras do poeta José Tolentino de Mendonça: «A pergunta “qual é o meu desejo?”, não a encontramos sem consentir primeiro na viagem que só começa quando ousamos entrar dentro de nós próprios» (Mendonça, 2018: 40).

Eis o método do escritor: «Não encontro outro método que não seja arrastar o meu centro de gravidade para o pensamento: deduzo, racionalizo, penso» (55). Confiado nesta metodologia, o escritor esboça o projeto para realizar a caminhada terrena: «Voo para lá dos pensamentos e, mesmo assim, não lhe perceciono o sentido. Procuro personagens, mas não as encontro. Clamo por ajuda ao futuro e não recebo respostas. Olho lá para fora e não há nada para ver. Liberto o vazio e as bombas da vida rebentam mesmo a meus pés: as sombras da escuridão erguem-se nas paredes do desfiladeiro onde caminho, os espíritos do gelo arrepiam-me a pele, mas, mesmo assim, continuo» (Sá Gué, 2018: 11, sublinhado meu). E, num eco do «Corvo» de Edgar Allan Poe, confirma o seu caminho: «lanço-me nesta tarefa de entrar na minha sombra, que não é inédita, mas onde o silêncio me impele a que o faça. Eu sei que há nesta imagem algo de corvo solitário a pousar na árvore fronteira da minha própria janela, eu sei, há o perigo de amanhã lamentar a liberdade pela ousadia de desafiar os deuses do vazio, eu sei, mas a beleza está nestes universos interiores, creio, e não na tenebrosa realidade quotidiana» (12, sublinhado meu). Enunciado o propósito, atente-se, ato contínuo, nas dificuldades dessa romagem interior, escalpelizando a estutura e os conteúdos.

A obra é constituída por quatro partes. A primeira, subordinada ao sugestivo título «Ouroboros», é composta por cinquenta e dois poemas em prosa. O título, nomeando a serpente que devora a própria cauda, remete, em termos metafóricos, para a deglutição interior propiciadora do autoconhecimento do ser humano. A inquietação/caminho interior faz-se, segundo o autor, lançando mão do pensamento «esse inimigo mortal» (16), que aumenta o sofrimento. Esta conceção pessoana do conhecimento e do sonho vem das «catacumbas do ser, da rotunda que sou e nas voltas em torno das ideias» (16). É, de certo, pelas ideias e pelo pensamento que o homem pode atingir a elevação desejada, como recorda Alberto Caeiro/ F. Pessoa: «Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não, do tamanho da minha altura...». Perante tais descobertas, o escritor afirma que conhece «a condenada condição humana» (19).

O itinerário interior faz-se, também, de palavras que não conseguem transmitir, de forma límpida e impoluta, o pensamento, como é desiderato do autor: «O ideal seria abrir brechas nas palavras que se alinham em torno do pensamento» (21). No entanto, a palavra/escrita é o único bálsamo ao alcance do escritor que se considera um «caótico pedinte de palavras» (27), com as quais tanto cria «universos informes e incompreensíveis» como «seara de palavras nuas, silenciosas e de olhares ocultos» (52).

Nesta hercúlea caminhada, também, há desânimo: «Sou uma coisa sem futuro» (28); «És árido e a tua aridez seca tudo o que toca» (31); «Os sonhos vão-se desfazendo» (32). A este desencanto associa-se o rancor escondido nos olhares de ódio que «quebram os pensamentos» (43). Mas, de novo, sobrevem a coragem: «Ergo-me. Subo a montanha num movimento sisífico» (48). É este esforço, por vezes improdutivo, que deve animar o Homem para que, aos poucos, encontre o objeto da sua procura, ou, nas palavras de Sócrates, se conheça a si mesmo.

A importância da palavra, tradução imperfeita do pensamento, é realçada no final desta parte, sendo autossuficientes para o escritor: «Bastam-me as palavras. Não necessito de mais nada, apenas palavras para mastigar e me alcançar. Apenas palavras para olhar de fora para dentro e vice-versa» (64, sublinhado meu). É, pois, pelas palavras que se faz a introspeção do Ser nesse trânsito recíproco de fora para dentro e de dentro para fora, remetendo, uma vez mais, para o sentido metafórico da víbora Ouroboros, fantasma que assombra este primeiro andamento.

À segunda parte, apresentando o denotativo rótulo «Pedra filosofal», pertencem trinta e seis composições em prosa poética. O poeta, qual alquimista, utiliza a Lapis Philosophorum para transmutar os metais em ouro. Contudo o metal do poeta, o pensamento, continua, como já acontecia na primeira parte, a ser trasladado no único ouro ao alcance do escritor/alquimista, ou seja, as palavras. Nesse sentido, deseja aprisionar o pensamento, estabelecendo uma comunicação cristalina, sem a impureza das palavras, como se infere desta afirmação: «Fotografar um sonho é a minha utopia» (72). Pois caso conseguisse captar a essência dos pensamentos: «Vã seria a exuberância das palavras e a poesia. Vã seria a necessidade de compreensão…» (72).

Se na primeira parte a busca era pessoal e o Ser respondia à sua interpelação, agora a busca é extensível à sociedade, como comprova a frase de Pessoa, retirada da obra O Banqueiro Anarquista: «Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais» (107). A vida consome-se entre forças antagónicas: montar, desmontar; reconstruir, desconstruir, e nessa roda: «Desmontarmo-nos a nós próprios, com ou sem ajuda de palavras, interpretar de forma diferente esta realidade que damos por adquirida e que diz tudo fazer por nós, leva-nos para outros caminhos» (77). O desejo, associado à ousadia, mantém-se, e o homem empenha-se em superar os seus limites «Ninguém nos obriga a subir a montanha e, no entanto, trepamo-la» (75).  Esta vontade é afetada pela ignorância que tudo explica: «Explica o Homem e a virtualidade do seu imaginário» (78).

A apatia e a disforia apoderam-se do poeta ao qual nada mais resta a não ser esperar, mas mesmo nesse momento abúlico ainda clama: «espero até que o silêncio se torne mais denso e me queime o pensamento» (89). O silêncio aparece com duas conotações: a negativa, «Talvez o segredo seja silenciar. Primeiro silenciar as armas, depois silenciar os pensamentos suspensos. Nesse silêncio darei a volta ao medo que me transforma» (84); a positiva, «mas, simultaneamente, beberei a coragem para continuar a caminhar. Nesse silêncio brindarei aos amores e desamores, à prisão e à liberdade de dizer. Nele encontrarei gotas vibrantes de ser» (84). É, pois, em silêncio, como já asseverei, que o escritor transforma as suas vivências, isto é, a vida em palavras.

Em resumo, o poeta, noite dentro, procura arduamente a sua «Pedra filosofal» que lhe permita transformar em ouro/palavras as suas reflexões, ou os seus Reflexos. Afinal a palavra é o ouro alquímico com o qual o escritor cristaliza o seu pensamento e nomeia o real que o cerca, levando o leitor à cogitação. Para a consecução desse desiderato, o poeta pretende: «Elevar o plasma literário à categoria universal e fixar a ausência das coisas na sinuosidade das palavras é o sonho de qualquer gota de tinta que vive esquecida no mundo absurdo das nuvens» (98, sublinhado meu).

A terceira, «Ad infinitum» título ambíguo, apresenta seis textos que, em meu juízo, encaixavam perfeitamente na segunda parte da obra, pelas temáticas e os motivos que desenvolvem e por amplificarem a pluralidade do eu. Estes seis poemas, segundo penso, seriam a conclusão perfeita da «Pedra filosofal», porque acentuam a vertente escura que vinha galgando terreno. A intrepidez da primeira parte é uma miragem, porque, no presente, se afirma: «Não compreendo esta apatia de ser que me invade» (115). O estado imóvel é acentuado pelo texto «o mito da Medusa» (116), cristalizando-se esta abulia plural em: «Vão cabisbaixos, pensativos, debruçados sobre as sombras que os perseguem. Alheios de si, seguem a escolha já feita e, na vastidão limitada das suas recordações, adivinham a felicidade na igualitária morte. Expulsos do Éden e do seu corpo, acham-se confinados a um vale de lágrimas, esquecem-se de si, delimitam o gesto e as palavras e, na mais profunda das comunhões, o fatalismo da servidão humana voluntária recupera subtis formas de compaixão» (117, sublinhado meu).

No fim, fica o silêncio que «é apenas um horizonte no futuro, uma linha difusa que nos conduz a uma viagem interior» (118). Conclui-se que o livro é circular pois abre e fecha com a ideia de viagem interior, elucidada atrás. O escritor, qual soldado do futuro, não desanima ao afirmar: «Analiso a liturgia das palavras e, de olhos eclipsados, remexo, em círculos, no inerte lodo dos dias que se magoam a enfrentar a realidade quotidiana» (119).

Por fim, na quarta parte «Os outros em mim» deparamo-nos com nove textos sobre obras publicadas pelo autor, enquanto editor. Entende-se, agora, o motivo pelo qual a excluí acima. Estes textos são, cada qual a seu modo, pequenas recensões sobre os livros publicados. Podem, ainda, funcionar como breves apresentações dos mesmos, uma vez que o desiderato do autor é patentear aos leitores possíveis linhas de leitura que as mesmas desenvolvem.

Termino recorrendo, uma vez mais às palavras do escritor, um peregrino da inquietação interior, que resumem o intuito que presidiu à elaboração desta reflexão: «A realidade humana acaba por se concretizar dentro da amálgama do carácter irreal de ser, e nesta fuga, constante e indefinida, tudo se constrói e desconstrói. Chegamos a descobrir a voz dos pássaros nas palavras e, no silêncio dessas vozes, surgem-nos outros sinais, outros pressentimentos e a casa assombrada, esta tragédia humana, vai-se construindo nas bases desse mundo, pessoal e intransmissível, onde tudo cabe» (80, sublinhado meu).

António Sá Gué, com esta obra, continua a admirar-se na aceção de Alberto Caeiro, pois sabe: «ter o pasmo essencial / Que tem uma criança se, ao nascer, / Reparasse que nascera deveras...»; ou, ainda, na senda de Theodor Adorno: «Espanto é um longo e inocente olhar sobre o objeto». Este estranhamento, permanente, sobre o Homem, enquanto ser em construção, obriga-o a uma constante reflexão sobre o conhecimento que tem dele e do mundo. Com estes silêncios, como lembra a epígrafe de Illich, o escritor facilita a nossa dupla compreensão, enquanto incendeia a nossa mente, na aceção plutarquiana. Nesta ação cogitativa, realiza uma viagem de depuração interior, continuando a colocar a eterna questão de Elsinore que torturou Hamlet e que prossegue no âmago da existência humana. A leitura de Reflexos de Mim é, sem dúvida, uma oportunidade de inteleção da mesma.

 

Bibliografia:

MENDONÇA, José Tolentino. O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas.

Lisboa: Quetzal, 2018.

SÁ GUÉ, António. Reflexos de Mim. Carviçais TMC: Lema d’Origem, 2018.

TAVARES, Gonçalo M. Livro da Dança. 2.ª ed. Lisboa: Relógio D’Água, 2018.

Vendavais … e nela mando eu

O Mundo acabou de homenagear a mulher num dia simbólico para o efeito. Ótimo. Quando existem dias para comemorar tantas coisas e algumas delas dispensáveis, seria péssimo que não se dedicasse um dia especial à mulher. E não me venham dizer que sem os homens as mulheres não existiam e vice-versa. Machistas e falsos moralistas não fazem História.

A mulher desempenhou sempre ao longo da História um papel importantíssimo. Esposa e mãe, rainha e governante, aliada e até moeda de troca para os grandes Tratados de Paz e harmonia entre Estados.

Desde os tempos pré-históricos que ela foi olhada com importância, porque fazia crescer o grupo e quanto mais elementos este tivesse melhor se podia defender dos outros grupos, pela cobiça, inveja e disputa entre os elementos do grupo, mas também com desdém quando era relegada para um segundo plano, cabendo-lhe tarefas consideradas próprias das mulheres. Mas na Grécia Antiga não era muito diferente num regime onde se apregoava a democracia e a igualdade. Aqui valia pouco na sociedade.

Foram precisos séculos para que a mulher tentasse conquistar um lugar digno na sociedade mundial. No início do século XX iniciou-se essa luta pela afirmação da mulher com Emmeline Pankhurst na Inglaterra. Nascia o movimento feminista que se iria alastrar por todo o mundo, embora de uma forma bastante irregular. A mulher era considerada somente como mãe e esposa, a cuidadora do lar, a progenitora.

A primeira Grande Guerra e a Segunda Guerra Mundial vieram dar-lhe um lugar merecido, quer no mundo do trabalho, quer na família. Desde então vemos a mulher a ocupar o lugar do homem em muitas empresas e a ter um papel de algum relevo até mesmo na política, onde os homens sempre pontuaram.

Mas ser mulher é muito mais do que tudo isto. Não é só mais uma peça de uma engrenagem enorme. A mulher tem de ser vista como mulher e não como uma peça sobresselente. E ao ser descortinada como um ser feminino com todos os atributos que lhe são devidos, descobrimos facilmente os problemas que muitos querem ignorar. A solidão atroz a que muitas são devotadas, não só pelos maridos, mas também porque estão verdadeiramente sós. Não têm família porque não conseguiram casar ou porque a família simplesmente não existe. Abandonadas, vêem-se num mundo de predadores e o esconderijo é uma das soluções para escapar. A infertilidade que atinge muitas mulheres que gostariam de ser mães, coloca-as numa zona desconfortável, porque os maridos as culpam da culpa que não têm. Daí até as agredirem por essa culpa ou porque essa será a desculpa para todas as agressões, é um passo muito pequeno.

Não será um problema somente atribuído à sociedade portuguesa, aquele com que nos deparamos hoje em dia, o da agressão gratuita. Quando nos informam que só este ano já foram assassinadas mais de uma dezena de mulheres sujeitas a violência doméstica, temos forçosamente de parar para pensar e pensar profundamente, pois algo está muito mal na nossa sociedade do século XXI.

Portugal sempre foi tido como um país pacífico, conservador e acolhedor. Pois toda a agressividade que está patente neste ranking, não abona nada em nosso favor e desvirtua completamente os adjectivos que nos têm sido atribuídos.

A mulher não pode ser um bombo de festa onde o homem descarrega todo o seu mal-estar. As razões que vêm a lume para justificar toda a série de violações e assassinatos de mulheres, são na sua grande parte, o justificativo do falhanço dos homens ao não saber lidar com os seus problemas familiares e mesmo profissionais. Isto é inadmissível.

Por outro lado a justiça pouco faz para resolver o problema. A legislação é muito dúbia e a sua aplicação divergente. Mas acima de tudo isto o que não existe é consideração. Todo o ser humano merece ser considerado e se a mulher é tida como mais fraca fisicamente, e só aqui, não é razão para o homem abusar da sua força e descarrega-la onde a fraqueza abunda para que possa vangloriar-se da sua ação. Fraqueza é o homem usar a sua força para castigar a mulher indefesa para justificar o seu próprio falhanço e incapacidade. Pior ainda é matar. Matar a esposa, a mão dos seus filhos e muitas vezes matar a sua própria mãe. Simplesmente inqualificável. O velho ditado sobre a mulher que dizia “Lá em casa manda ela e nela mando eu” tem de ser alterado urgentemente em nome do feminismo e de uma sociedade mais justa e igualitária. O homem que pense a sério qual o seu lugar nesta sociedade moderna, antes que não tenha lugar certo.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - António Rodrigues Mogadouro (Mogadouro, 1599 – Lisboa, 1679

Afonso Álvares, natural de Vilvestre, Castela, veio para Mogadouro e ali se tornou rendeiro e casou com Ana Dias. O casal teve uma filha, chamada Branca Lopes, a qual casou em Mogadouro com António de la Peña. Teve também um filho, de António Álvares, que casou com Ana Rodrigues, emigrando o casal para Madrid onde ele amealhou fortuna, tornando-se o maior fornecedor de tijolos na capital do reino, alcançando até o monopólio do fabrico e venda daquele material.(1)

Um outro filho de Afonso e Ana chamou-se Diogo Álvares Marques, que viveu em Mogadouro, casado com Marquesa Rodrigues. Estes foram os pais do nosso biografado, António Rodrigues Mogadouro.(2)

No Mogadouro viveu António até aos 22 anos, altura em que rumou a Madrid, onde permaneceu por 5/6 anos. Regressou a Mogadouro e logo casou com Maria Lopes, de Vila Real, para esta terra mudando a residência. Cedo ficou viúvo e sem filhos. Voltou a Madrid e ali permaneceu mais 2 anos. Ao início da década de 1630, viajou para Lisboa e ali casou, de novo, com Isabel Henriques, também originária da capital trasmontana, irmã do célebre diplomata Manuel Fernandes Vila Real.

Da numerosa prole de António Mogadouro e Isabel Henriques, chegaram à maioridade 3 filhos e 5 filhas. Deles falaremos adiante, que todos se viram envolvidos no processo que a inquisição moveu ao patriarca, sendo já viúvo e contando 73 anos.

Situemo-nos agora em Lisboa, na Rua das Mudas onde a Casa Mogadouro se destacava pelo movimento comercial. Seria efetivamente uma das maiores firmas de importação de produtos, nomeadamente açúcar do Brasil, especiarias e diamantes da Índia, tecidos, ferro e utensílios do Norte da Europa e da Itália. De referir que os Mogadouro tinham representação comercial na Baía, por vezes dirigida por seus filhos e trabalhavam em rede com parentes seus de Madrid, Bordéus e Livorno.

E se mercadorias estrangeiras chegavam de barco a Lisboa e entravam nos armazéns da Casa Mogadouro, era também ali que muitos mercadores de Trás-os-Montes, Porto, Coimbra e outras terras vinham abastecer-se para suas vendas a retalho. Muito em especial os de origem hebreia e trasmontana, estabelecidos por todo o território nacional.

Para além disso, numa época em que os bancos davam os primeiros passos entre nós, a Casa Mogadouro desempenhava também algumas funções de crédito e penhora, próprias de uma casa bancária.

E tratando-se de uma das grandes empresas do País, obviamente que o seu alinhamento político era importante, ainda mais numa época de grandes alterações, derivadas do “golpe de estado” de 27.1.1668 em que o rei D. Afonso VI foi deposto e no trono colocado o seu irmão D. Pedro II. Nesse “golpe de estado” o papel da inquisição terá sido essencial e as Cortes que sancionaram o novo rei eram absolutamente dominadas por familiares da inquisição.

E se, em tempos do rei D. João IV e Afonso VI e muito em especial durante a governação do “primeiro-ministro” Conde de Castelo Melhor, as empresas Mogadouro ajudaram a suportar o poder político, nomeadamente no abastecimento de géneros e pagamento às tropas estacionadas em Trás-os-Montes,

na Guerra da Restauração (1640-

-1668),(3) já com o novo rei e o aumento do poder da inquisição, o horizonte começou a enevoar-se e a Casa Mogadouro seria referenciada em alguns círculos do poder e da inquisição, como um alvo a abater.

Assim se explica a vigilância mantida por vários familiares da inquisição sobre os Mogadouro e as pessoas de suas relações, não apenas em Lisboa, mas também em Madrid, Bordéus e Livorno. Isso mesmo é atestado por várias cartas arroladas no seu processo. E também isso explica os boatos que surgiram a seguir ao caso do Senhor Roubado da igreja de Odivelas, na noite de 10-

-11.5.1671, dizendo que foram os Mogadouro os mandantes do roubo. Na Guarda, por exemplo, dias depois, apareceu um indivíduo a dizer que o autor do roubo foi um seu irmão, mandado pelos Mogadouro e pelos Penso.(4)

A primeira denúncia contra António Mogadouro foi feita na inquisição de Coimbra, em 1666, por Manuel Mascarenhas, prebendeiro da universidade, dizendo que “havia 11 anos” em Lisboa, na Rua das Mudas, em casa de António Mogadouro, com ele se tinha declarado seguidor da lei de Moisés. Um ano depois, revogou esta declaração.

Em fevereiro de 1670, João e Isabel, dois escravos de António Rodrigues Marques, sobrinho de António Mogadouro, dirigiram-se à inquisição e denunciaram seus amos dizendo que 3 anos atrás tinham guardado o jejum do dia grande e que à noite vieram ter a sua casa António Mogadouro e os filhos e ali cearam peixe e ficaram até às duas horas depois da meia-noite.

Em 23.5.1672, o familiar Pedro Ferreira apresentou-se nos Estaus e contou que no Tejo estava fundeada uma nau inglesa, contratada pelos Mogadouro para nela se embarcarem e fugirem para Livorno onde estavam construindo grandes casas para eles, estando planeado o casamento do filho mais velho do Mogadouro com uma filha de Gabriel Medina, seu sobrinho, filho de sua irmã Ana.

O familiar Pedro Ferreira entregou também duas cartas recebidas de informadores de Madrid e Bordéus denunciando os Mogadouro como “passadores de judeus” na nau “Jerusalém”, pro­priedade sua e de seu sobrinho Gabriel de Medina.

Logo de seguida, apareceu outro familiar, António Castro Guimarães, acrescentando denúncias de planos de fuga e contando que dias antes, na nau “Jerusalém”, os Mogadouro tinham despachado para Itália grande quantidade de diamantes e que, para maior segurança, a tripulação foi aumentada com 50 homens. Estas informações foram corroboradas por um terceiro familiar do santo ofício chamado Luís Rodrigues.

Entretanto, a inquisição tinha prendido alguns mercadores da capital e um deles, Manuel da Costa Martins, contratador dos portos secos, membro da também poderosa família Pestana, confessou que, 9 anos antes, ele e António Mogadouro se tinham declarado seguidores da lei de Moisés.

Dois dias depois, a inquisição prendeu António Mogadouro e os dois filhos mais velhos: Diogo Rodrigues Henriques e Francisco Rodrigues Mogadouro.(5)

Os três se mantinham negativos, negando todas as acusações. Talvez por isso e com o objetivo de conseguir provas mais concludentes contra eles, um ano e meio depois, os inquisidores mandaram prender 3 filhas e o filho mais novo de António Mogadouro. Uma delas, Violante Henriques, viúva do contratador Pedro Franco Azevedo e prometida em casamento a seu primo João Lopes de Leão, faleceu de parto, 20 dias depois de entrar na cadeia. O mesmo aconteceu com Branca Henriques que faleceu no cárcere em 20.8.1676. A sua estátua e ossos foram queimados no auto da fé de 16.8.1684. Brites Henriques e Pantaleão Rodrigues, os filhos mais novos, esses sobreviveram e denunciaram seu pai e irmãos.(6) Sobrevivente e também denunciador do pai foi o irmão Francisco Rodrigues, atrás referido.

Por 5 anos, o velho Mogadouro aguentou os tormentos da prisão, vindo a falecer em 8.7.1679, tendo-se confessado por 3 vezes no decurso da doença que o vitimou, conforme declarou Bernardo de Sousa, seu companheiro de cárcere que acrescentou:

— Entende que ele morrera com actos de cristão fazendo várias orações e actos de contrição, que ele testemunha lhe estava repetindo.

Apesar deste e de outros testemunhos semelhantes, o processo continuou seus trâmites, apenas se encerrando em 26.10.1684, com os inquisidores a concluírem que ele “em sua vida não quis confessar suas culpas e delas pedir perdão (…) que viveu e morreu em seus erros e na chamada crença da lei de Moisés” pelo que ordenaram que os seus ossos fossem desenterrados e queimados com sua estátua. A sentença foi cumprida no auto-da-fé de 26.11.1684, realizado na igreja de S. Domingos. Escusado será dizer que grande parte da fortuna dos Mogadouro foi sequestrada e comida pela inquisição. E não seria toda porque, entretanto, eles conseguiram encaminhar muitos valores e capitais para Itália, nomeadamente um baú cheio de diamantes.

 

Notas:

1 - SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid, p.135 Stuttgard, Steiner Verlag, 1994.

2 - Outros filhos de Diogo Álvares e Marquesa Rodrigues: Francisca Lopes, que morou em Sambade, casada com Manuel de Leão e foi presa pela inquisição de Coimbra – pº 1253; Isabel Rodrigues, que casou com Francisco Vaz de Leão; Diogo Álvares Marques, que casou em Vila Real, com Branca Henriques, seguindo para Madrid onde ganhou relevo entre os “hombres de negócios” de origem portuguesa e acabaria os seus dias em França; Ana Rodrigues, moradora em Miranda do Douro, relaxada pela inquisição de Coimbra – pº 4990; Francisco Rodrigues Marques, que casou em Miranda do Douro, com Maria Lopes e viveram em Lisboa, na Rua da Fancaria de Cima, pais de António e Diogo Rodrigues Marques.

3 - ANDRADE, António Júlio e GUIMARÃES, Maria Fernanda – A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, pp. 111-119, ed. Nova Veja, 2009.

4 - Inq. Lisboa, pº 131320, de Clemente da Fonseca Pinto.

5 - Idem, pº 5412, de António Rodrigues Mogadouro; pº 11262, de Diogo Rodrigues Henriques; pº 1747, de Francisco Rodrigues Mogadouro.

6 - Idem, pº 8408, de Violante Henriques; pº 8447, de Branca Henriques; pº 4427, de Brites Henriques; pº 7100, de Pantaleão Rodrigues.