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Santa Engrácia, ora pro nobis

Em 2008, o troço Tua – Cachão é encerrado graças a um acidente cujas origens incluem a inacção da REFER em renovar a via, em concordância com as recomendações do LNEC após o acidente de 2007. Em 2009 é estabelecida a cota mínima para a barragem do Tua, garantindo que o troço Brunheda – Cachão nunca será afectado pela albufeira. Em 2010 é lançado o Plano de Mobilidade, que inclui a exploração ferroviária da Brunheda a Carvalhais, Turística e Regional. Em 2011 nasce a Agência de Desenvolvimento do Vale do Tua. Estão reunidas todas as condições para que o comboio volte a servir as populações do Cachão à Brunheda.
Acontece que nove anos e meio depois o serviço ferroviário ainda não voltou a este troço. Desclassificada da rede nacional, com um concessionário definido há 2 anos, a via reparada dos danos causados por roubo de carris e falta de manutenção, e o próprio material circulante parado em Mirandela, dia 19 de Fevereiro deveria ter arrancado o primeiro teste de circulação, de Mirandela ao Cachão. E até mesmo este foi adiado sine die.
Já não há paciência para este desnorte e desresponsabilização do Estado. Este jogo do empurra sobre quem deve custear a manutenção da infra-estrutura já deveria ter ficado explícito no Plano de Mobilidade, ou sanado nos oito anos subsequentes. Estamos em face a incompetência, incúria, ou ambos, tanto da Infraestruturas de Portugal (IP) como da tutela; contudo, “responsabilidade política” rima com “coisa nenhuma”. Enquanto isso quem paga é a Douro Azul, que acumula prejuízos pelos adiamentos do arranque da exploração, e claro os utentes da Linha do Tua e a região, que se vêem privados de transporte, captação de receitas, e criação de emprego.
Entretanto, de Carvalhais a Bragança, 3 autarquias pretendem transformar 76 km da linha numa ecopista, um absurdo que 2 delas herdaram de executivos derrotados, mas que nenhuma parece questionar. São 1,8 M€ (metade do custo por km da obra mais barata do género em Portugal), para limpar mato, tornar 9 pontes transitáveis, colocar iluminação em 3 túneis, e recuperar 6 estações. O canal ficará em terra batida – já está há décadas – desmantela-se património industrial secular, num atropelo a todas as recomendações internacionais, e 12 estações e um conjunto de outros edifícios continuarão entregues a si próprios.
Tudo numa região com 300% de taxa de envelhecimento, 10% de perda de população, milhares de km de percursos com as mesmas valências, temperaturas que vão dos -5ºC aos 35ºC, num traçado com rampas de 8 a 19 km e inclinações de 2%, todas a mais de 10 km da cidade mais próxima, penetração máxima habitual para este tipo de pistas pelos seus utilizadores.
Dirá o protocolo de cedência do canal pela IP que o troço estará “predestinado” à reutilização turística, e que não se “prevê” a reabertura da Linha do Tua. Uma das entidades responsáveis pelo atraso na reabertura do troço Brunheda – Cachão, é a mesma que, numa declaração de teor calvinista, “predestina” outro troço da linha ao lazer. Estou certo que as populações de Carvalhais a Bragança louvarão este ditame quasi divino: qual não é o septagenário que não ansiará por uma ida à sede de concelho a pedalar por um carreiro de terra batida acima, no meio de uma geada ou de 30ºC à sombra? Mas passando a jocosidade desta apoteose vinda de Almada, subsiste a mesma pergunta: o que justifica que autarcas locais – e comunicação social – continuem a ditar como utópica a reabertura da Linha do Tua a Bragança, se nenhum deles apresentou ainda um estudo a comprová-lo? Estará o exercício da soberania — e da comunicação — votado às artes divinatórias?
Mais grave que isso, é continuarem a ignorar de forma alarmantemente despreocupada os dados que, cidadãos como eu, teimam em lhes fazer chegar, sobre custos e proveitos de tal desiderato. Deixo a questão às Comunidades Intermunicipais competentes: para quando a formação de uma equipa multidisciplinar que elabore um estudo sério e rigoroso sobre o regresso do serviço ferroviário a Bragança, e quebrar com este interminável ciclo de autarcas cuja atitude perante este problema da região é “nem sei nem quero saber”?
Valha-nos algum poder divino — que não vindo de Almada — para estas obras de Santa Engrácia terminarem de vez, e se devolver a Linha do Tua a um ambiente respirável de mais alguma decência.

Vila Real, 22 de Fevereiro de 2018

Não escrevo segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Maria Henriques (n. Vila Flor, 1650)

O pai, Rodrigo Vaz de Leão, nasceu em Vila Real, terra de sua mãe, sendo filho de António Vaz de Leão, originário de Sambade. (1) Casou em Vila Flor com Isabel Henriques, filha de Pedro Henriques da Mesquita, de Lebução e de Violante Henriques, de Vila Flor. Depois de algum tempo de morada em Vila Real e Vila Flor, o casal foi-se estabelecer em Lisboa, na Rua Nova, onde abriram uma “loja de sedas, milanesas, baetas, serafinas e duquesas”. Aos 34 anos Rodrigo era já um poderoso homem de negócios. Imaginem: quando o prenderam, acabava de vir de uma feira do Alentejo e trazia consigo, em dinheiro, a quantia de 2 mil cruzados. Quase um conto de réis, produto de uma feira! (2)
Antes de prosseguirmos, convém dizer que Rodrigo tinha um irmão chamado Miguel, que era médico e casou com Guiomar Henriques, irmã de Isabel, que viveram em Lamego. Miguel foi penitenciado pela inquisição, em 1664 e em 1703, era já falecido. Guiomar Henriques vivia em Roma com os filhos.
Voltemos a Isabel Henriques e Rodrigo de Leão, que foram presos ao final de Agosto de 1663. Este saiu penitenciado em cárcere e hábito a arbítrio um ano depois. Sabemos que 40 anos mais tarde ele abandonou o país e foi para a França, sendo ainda vivo em 1725. Isabel Henriques foi relaxada no auto da fé de 4.4.1666. Chegou até nós o registo seguinte, assinado pelo padre Álvaro da Fonseca:
- Foi-me entregue uma estampa de Isabel Henriques, natural desta Vila Flor, a qual mandei fixar na igreja matriz de S. Bartolomeu, junto a outros retratos que nela estão. Por ser verdade e me ser pedida, passei esta por mim feita e assinada aos 12 de março de 1667. (3) 
Quando foram presos, Rodrigo e Isabel deixaram 3 filhas, a mais velha de 13 anos, a nossa biografada, e a mais nova de apenas 3. Esta chamou-se Leonor e sempre viveu na casa paterna, mantendo-se solteira.
Maria Henriques foi casar em Carrazedo de Montenegro, com Gaspar Mendes Cespedes, natural de Medina del Campo, de uma família ascendência em Quintela de Lampaças. Talvez com receio de ser preso, como prenderam o pai e outros familiares, Gaspar tomou a iniciativa de se apresentar em Coimbra, em 1670, quando tinha 18 anos e era ainda solteiro. Saiu em 18.11.1674, condenado em sequestro de bens, cárcere e hábito que lhe foi tirado depois da leitura da sentença. (4)
O casal constituído por Gaspar Mendes Cespedes e Maria Henriques fixou residência em Lisboa, se bem que ele andasse em constantes viagens pela província, “entretido” na cobrança de rendas, como resulta do depoimento de Manuel Arroja:
- Disse que haverá 8 anos, em Lisboa, ao Correio Mor, em casa de Gaspar Mendes Cespedes, casado com Maria Henriques, natural de Trás-os-Montes, morador em Lisboa, de onde se ausentou à mesma província a cobrar umas rendas… (5)
Gaspar e Maria tiveram 7 filhos. Alguns deles, cedo rumaram a França, ainda solteiros. Foi o caso de Diogo Lopes Céspedes; Leonor Mendes e Ângela Mendes.
Com o nome do avô materno, Rodrigo Vaz de Leão, foi batizado o mais novo dos filhos de Gaspar e Maria Henriques, nascido por 1692. Foi casar em Trancoso, com Ana Maria Guterres e ganhou nome e prestígio na classe dos rendeiros e contratadores. Em 1721, de parceria com Gaspar Lopes Pinheiro, arremataram por 10 00 cruzados/ano, o assento das tropas da Beira, conforme informação colhida no processo do pai de Gaspar:
- No ano de 1721 para 1722 arrematou seu filho, Gaspar Lopes Pinheiro e Rodrigo Vaz de Leão, de Trancoso, o assento da província da Beira, de que ficaram ambos com igual parte, tendo ele declarante uma escritura da sociedade pela qual se obrigava a custear em 5 000 cruzados por parte de seu filho… (6)
Consciente do passado da família no tribunal da inquisição, Rodrigo decidiu ele próprio, em 1727, apresentar-se nos Estaus e confessar suas culpas. Com esta atitude conseguiu que os seus bens não fossem penhorados. Mas não o salvou de ficar encarcerado por dois anos, saindo condenado em cárcere e hábito. (7)
A filha Isabel Mendes, casou com o seu parente Francisco Lopes Céspedes, o qual, em 1725, viria também a conhecer as prisões do santo ofício. Com residência estabelecida em Carrazedo de Montenegro, Francisco era igualmente rendeiro e trabalhava em conjunto com o pai e os parentes. Veja-se, a propósito, o testemunho do mesmo contratador de Freixo de Numão:
- O sobredito Rodrigo Vaz de Leão arrematou o triénio passado a renda do almoxarifado da vila de Chaves na Casa se Bragança, de que é fiador seu primo Diogo Lopes Cespedes e seu filho Francisco Lopes Cespedes cunhado do dito Rodrigo Vaz de Leão, moradores em Montenegro, termo de Chaves, e por serem fiadores deviam de ter sociedade da metade do dito contrato (…) em que tem havido muitos e crescidos ganhos (…) que passavam de 6 contos de réis os lucros… (8)
Branca Mendes se chamou outra filha de Gaspar e Maria. Casou com Mateus de Sousa Henriques, nascido no Fundão, por 1670, filho de Jorge Coelho Henriques e Ana Maria de Sousa, ambos penitenciados pela inquisição de Lisboa. Pelo ano de 1700, o casal foi para França, fixando-se em Bayonne. Na diáspora, assumiram abertamente a condição de judeus, tomando os nomes de Rachel Henriques e Abraham Sousa Henriques. Abraham fez seu testamento em Saint Esprit, perto de Bayonne, em 17.6.1731 e nele pedia à sua “amada mulher que se encarregue das exéquias do meu funeral”. (9) Resta acrescentar que o casal teve 13 filhos, que se espalharam pelo mundo, aportando nomeadamente à Jamaica, com descendência ainda hoje referenciada.
O filho Francisco Lopes Céspedes, nascido por volta de 1682, formou-se em medicina e casou com sua parente Guiomar Henriques. Foi também preso pela inquisição e, depois de retomar a liberdade, abalou para a França.  
Voltemos a Maria Henriques. Contava 50 anos quando foi presa pela inquisição de Lisboa, em dezembro de 1703, juntamente com sua irmã Leonor e o seu filho Francisco, que então era estudante de medicina. Saíram penitenciados em cárcere e hábito, no auto da fé de20.10.1704. (10) Depois foram todos para França.
Notas:
1-ANDRADE e GUIMARÃES – Marranos em Trás-os-Montes Judeus-Novos da Diáspora O Caso de Sambade, pp. 105-112, ed. Lema d´Origem, Porto, 2013.
2-ANTT, inq. Lisboa, pº 2842, de Rodrigo Vaz de Leão. Entre os fornecedores de mercadorias a Rodrigo identificamos vários comerciantes ingleses, um hamburguês, um holandês, três franceses e um italiano, o que deixa antever um forte movimento de importações. Dos muitos fornecedores nacionais, destacamos Diogo Rodrigues Marques, gerente da firma dos Mogadouro. Em contrapartida, Rodrigo Vaz fornecia comerciantes com loja na província, nomeadamente em Coimbra, Trancoso e Mogadouro. Da qualidade dos produtos vendidos, temos notícia de que, querendo o conde de Castelo Melhor oferecer um gibão a el-rei, mandou comprar os panos à loja de Rodrigo. Este, para além de mercador, era rendeiro, trazendo arrematadas as comendas de S. João e S. Salvador de Ansiães, “pertencentes à filha de D. Leonor de Vilhena, que agora está casada com D. Manuel de Melo”.
3-IDEM, pº 7294, de Isabel Henriques, tif 195. Por dois anos e meio, Isabel se manteve no cárcere, negando todas as acusações. Depois confessou que “haverá 18 ou 19 anos, em Vila Flor, foi a casa de Isabel Henriques, tia materna dela confitente, casada com Diogo Rodrigues Coutinho, cristão-novo, mercador e com Ana Henriques, tia materna dela confitente, viúva de Bernardo Lopes, meio cristão-novo, e com Leonor Coutinho e Maria Henriques, todas cristãs-novas, irmãs entre si e primas dela confitente, filhas de Diogo Rodrigues Coutinho e Isabel Henriques, e Leonor Coutinho é já defunta e as outras eram solteiras, ao tempo de sua prisão e viviam com a mãe. E ali se apartou e a dita crença lhe durou até se resolver a confessar”. Nas suas confissões, Isabel procurou sempre salvaguardar a sua família, pelo que os inquisidores a consideraram diminuta e a condenaram a relaxe. Foram dramáticos os últimos dois dias de vida de Isabel. Quando lhe ataram as mãos e a informaram que ia ser queimada, ela pediu mesa e fez novas confissões. Ao outro dia, de manhã e de tarde, novos pedidos de mesa e mais confissões. Finalmente, no decurso do auto, voltou a pedir mesa e “na casa apartada para as audiências” confessou que também se declarara com seu marido como seguidora da lei de Moisés. Concluíram os inquisidores que “as últimas confissões não foram recebidas por deixar de dizer de sua irmã e cunhado, que são testemunhas contra a ré e a denúncia contra o marido é diminuta”.
4-IDEM, inq. Coimbra, pº 2481, de Gaspar Mendes Cespedes.
5-IDEM, inq. Lisboa, pº 3686, de Francisco Lopes Cespedes.
6- IDEM, inq. Lisboa, pº 1437, de António Dias Fernandes, tif. 182.
7-IDEM, pº 3777, de Rodrigo Vaz de Leão.
8-IDEM, pº 1437, pp. 197-198.
9-ANDRADE e GUIMARÃES, ob cit., onde se publica o seu testamento. ANTT, inq. Lisboa, pº 10736, de Jorge Coelho Henriques; pº 10085, de Ana Maria de Sousa.
10-ANTT, inq. Lisboa, pº 1950, de Maria Henriques; pº 5779, de Leonor Henriques; pº 3686, de Francisco Lopes Céspedes.

CRÓNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA OU ENSAIO SOBRE A HIPOCRISIA

Confrontamo-nos diariamente com um certo cinismo pretensos defensores da coesão territorial, opositores das assimetrias, mas no fundo sem coragem para lutar pela equidade ou mesmo pela justiça territorial, em detrimento de interesses de alguns.
Lembro-me de em 1982 integrar um grupo que agregava os interesses e o sentimento patriótico de alguns transmontanos na diáspora. Era um Fórum Cívico que daria origem a tertúlias e mais tarde à génese casa de Trás-os-Montes em Coimbra.
Já nessa altura defendia o transmontanismo e a autonomia do território.
O centralismo, concentraria fundos europeus que eram destinados ao nosso território, despojando-nos desse investimento financeiro crucial para o desenvolvimento e mesmo sabendo que havendo uma dinâmica económica local com base no potencial endógeno; lembro-me da energia elétrica produzida nas barragens do Douro, as explorações de mármore de Vimioso que eram exportadas para Itália, sendo depois vendidas com a marca de Carrara, o ouro de Jales, o volfrâmio e as múltiplas potencialidades gastronómicas e vínicas que no seu conjunto prenunciavam a nossa independência económica, se esses benefícios fossem investidos no território nativo.
Mas os nossos génios autóctones procuravam a glória fora da sua “nação”.
Alguns de nós foram “longe”! Dois primeiros-ministros, grandes catedráticos e muitos outros notáveis, constrangidos a trabalhar a soldo de uma imposta centralidade cultural e económica.
Hoje apelam para a solidariedade nacional, para um país unificado, mas depois a prática governamental ignora os interesses do território e dos que cá vivem.
As assimetrias acentuam-se.
Ter um bem que é nosso, como a água da barragem do Azibo e chegar ao cúmulo humilhante de ninguém perguntar como nem porquê se revogam processos contratuais, nada vantajosos para um pequeno município como o nosso, que fica refém de uma pseudodivida déspota e ditatorial, detida pelas Águas do Norte e posições cedidas a entidades bancárias num total de cerca de 11 milhões de euros entre divida, juros e amortizações.
Imaginem o que é ser-nos imposta uma “cegueira” e suportar uma não solução que é simultaneamente uma dependência e uma inoperância orçamental por incapacidade de investimento imposta ao município e que de forma dramática se poderá estender até 2045, “amordaçando-nos e impondo-nos um silêncio” e a obrigatoriedade de “oferecer” o correspondente a um veículo topo de gama todos os meses, às entidades detentoras da dívida e dos seus escandalosos dividendos que no seu valor representariam o investimento suficiente para retirar as nossas freguesias da pobreza.
Somos reféns de uma “escravatura vil” que não nos permite opinar sobre uma decisão que além de injusta, ameaça a possibilidade de contrariarmos a desigualdade, a fatalidade do interior e a sangria demográfica – é a morte anunciada!
Uma caminhada acelerada para a desertificação!
Sinto-me triste, humilhado e amordaçado.
Este é apenas um dos fatores precipitantes da descoesão territorial, da desconcertação social, mas mais existem como a exploração das nossas capacidades endógenas, descartando a obrigatoriedade normal de investir nos concelhos que disponibilizam territórios e meios endógenos.

O fim da estória

Na semana passada tive notícias da Becas.
A Becas é uma gata com padrão tartaruga, de olhos verdes, que eu ajudei a salvar. Tinha a bicha algum meio ano quando a minha vizinha do lado foi passar uns dias fora e a deixou sozinha em casa. Sem água e sem comida, já num desespero, era ver a gatinha na varanda, de boca aberta com a sede e a aproximar-se perigosamente do beiral do segundo andar, à procura de uma saída. Chamámos os bombeiros, mas ela assustou-se e foi-se empoleirar num reclame luminoso, onde não era seguro ir buscá-la. Passei uma madrugada de calor na minha janela, a tentar convencer a Becas a vir ter comigo. Mas ela tinha medo, coitadinha. No dia seguinte, lá se encheu de coragem e entrou dentro de um dos apartamentos, onde foi possível, finalmente, deitar-lhe a mão para a pôr em segurança. Bravo, Becas!
A Becas foi adoptada pelo casal do primeiro andar. Quando "fugia" e passeava pelo prédio, via-a muitas vezes. Ou me preparava emboscadas nas escadas, ou me acompanhava até à porta. Entrava como um foguete, e metia-se debaixo da cama. Brincava com o que lhe aparecia, até que era hora de a devolver aos donos, antes que ficassem preocupados. Quando ouvia ecoar nos corredores "Becas! Onde estás?", punha uma expressão de "está na hora de te deixar", e lá a conseguia convencer a terminar a visita. Acho que era a maneira dela demonstrar apreço por ter participado no seu salvamento.
Soube na semana passada que a gata Becas morreu de leucemia. Não sabia dela há três anos, apesar de me lembrar bem das cabriolas e da missão de salvamento, que mobilizou, numa determinada altura, toda a minha rua. Fiquei triste, mas pelo menos aliviada por saber que a curta vida que teve foi feliz e com carinho. Mesmo quando eu deixei de fazer parte da vida dela.
Esta era uma das raras estórias que me teria bastado saber o que já sabia. Por ser triste, provavelmente. Porque, de resto, gosto sempre de ver respondida a pergunta: "E depois, o que aconteceu?". Nos livros, filmes e séries de televisão, posso até compreender que haja um final, mas nunca aceitar. Se gosto das personagens, do enredo, do que se está a passar, preciso de saber mais. Para sempre, se possível! A certo ponto, parece que somos cuspidos da estória, e ficámos à margem de algo do qual já fizemos parte.
É estranho quando deixámos para trás uma estória. Até mesmo quando não gostamos dela. Fizemos parte de um caminho juntos, e, depois, numa qualquer encruzilhada, seguem-se caminhos opostos. De uma estória passam a ser duas, ou três, ou quatro. Mas já não estamos todos na mesma estória. Isso, devo admitir, deixa um amargo de boca. E agora, o que vamos fazer sem uma estória que já foi nossa mas onde já não estamos? A estória continua sem nós, e nós sem ela, sem saber muito bem o que fica por dizer ou saber. É estranho quando percebemos que há um curso que pode seguir sem nós, e que vai mesmo seguir, sem qualquer pudor e, muito menos, sem a nosso aval ou opinião.
Se fosse hoje,  antes de ter mudado de casa e de ter sido cuspida daquela estória, tinha chamado mais vezes a Becas para brincar debaixo da minha cama com as meias sujas e o que por lá encontrava. Porque essa foi uma estória da qual fiz parte e que me fez feliz.E há estórias que terminam para nunca mais voltar.

Folares

A Páscoa este ano é madrugadora e festeja-se no dia das mentiras. No entanto, a mensagem Pascal não é mentirosa para centenas de milhões de crentes e não crentes amigos de pensar sobre a sua grandeza espiritual seja no tocante a suscitar-nos apreensões, seja no que tange à espiritualidade multiforme numa liberdade livre mas prenha do sentido de responsabilidade perante o próximo de forma a exigirmos reciprocidade nas várias gradações quotidianas no fazer fazendo na esfera da cidadania.
O mês de Março ao contrário dos antecedentes tem sido pluvioso originando tapetes verdes recheados de rebentamentos florais a amenizarem a solidão provocada pelos tremendos incêndios e a seca severa evocadora de outras semelhantes cujos efeitos séculos atrás redundaram em penúria, fome, doença e morte. E, neste ponto o contraste é claríssimo, no antecedente a pura miséria, nos dias de hoje os efeitos do progresso científico e técnico enchem os celeiros e os mercados do mundo Ocidental, sendo as excepções na maior parte dos casos originadas pelo mau governo de ditadores populistas ou não, devido à ganância de multinacionais compradoras de consciências, sem esquecer as catástrofes naturais, muitas delas da autoria da mão escondida ou revelada dos homens. A quadra pascal intima-me a pensar relativamente ao acima referido, intima-me a não ficar preso à música sacra e profana da época desleixando o dever de escrever abrindo as feridas provenientes do meu egoísmo do não te rales, do tapar as chagas sociais existentes porque somos acomodatícios com a manta dos desgostos colhidos na prematura morte de um querido filho, na doença aguda, nas consequências e lenta na recuperação, na alacridade autoelogiosa porque a mão esquerda praticou acção elogiosa sem a direita saber.
Encomendaram-me um artigo relativo à violência individual contra a violência das instituições, aceitei o encargo sem cuidar das implicações, o leitor pode considerar esta crónica como desabafo na justa medida de ainda não saber como o principiar. É verdade.
O leitor pode não acreditar, mas fique ciente quão grande é o prazer de desabafar escrevendo correndo o risco de recolher o epíteto de lamechas ou incapaz de guardar os desabafos para mim próprio.
Em pleno período quaresmal a sucessão de episódios grotescos no universo do futebol e consequentes relatos bem salivados das atitudes dos actores incluindo os violadores do segredo de justiça leva-me a desabafar: este País não tem emenda, muitos nichos da sua representação têm cromatismo suspeito, negro, conspurcado a justificar o queirosiano palavrão – choldra –, por nossa absoluta e profunda culpa.
Sim, eu sei, nesta altura a maioria dos leitores do Nordeste está prioritariamente ocupada no conseguirem sol na eira e chuva no nabal a fim de gozarem plenamente a quadra pascal, sim, eu sei do estar a repetir-me, sim, eu sei da possibilidade de uma ínfima parte das mulheres transmontanas apesar dos incidentes abafadores do passado ainda se preocupam na elaboração de folares verdadeiramente artesanais, sentido grego do technikos, significando que o artesão não consegue conceber duas peças escrupulosamente iguais. No cados folares a massa, os enchidos, a carne entremeada, os enchidos e o presunto não são diferentes, específicos na forma, muitas vezes as quantidades no seu bojo, incluindo o azeite e/ou a manteiga ou o sucedâneo espúrio (aqui) da margarina. Posso acrescentar o tamanho e o peso, a feição exterior derivada da acção do lume vivo ou brando empregue nas cozeduras.
Essas Mestras artesãs são cada vez mais raras, a maquinaria adoça as tarefas e reduz a individual tecnicidade, sem esquecer a indústria dita artesanal da fabricação de folares em série segundo a cartilha certificadora, normalizadora e mimética. Os meus desabafos são mero jogo de adivinhas adivinhadas em face da grandiosidade simbólica dos folares sem mácula do barrenhão berço ao semblante numa autenticidade a principiar na farinha peneirada em três peneiras até a Mestra conseguir o – beijinho – da farinha, se for de trigo serôdio ainda melhor.
As distintas pessoas que ganham paciência lendo os meus textos podem desta feita pensarem estar ante um preciosismo de sinuosidade identitária do Folar como referência matricial, pensam bem. A vulgarização material do folar, o facto de realizarem concursos de molde a serem premiados os melhores folares sem ser levada em linha de conta a outra matricialidade longa, custosa, profunda do artesão de nenhuma peça igual e os artesãos do amassar automático até à embalagem em celofane obrigam-me a desabafar: será que a nossa herança imaterial ainda persiste numa ou noutra família citadina ou rural do Nordeste?
Eu não sei responder à interrogação, desconheço os programas de ensino das nossas sinuosidades culturais, procuro conhecer as origens, viagens, fixações, alterações, experimentações das matérias-primas base dos produtos por seu turno objecto de transformação em alimentos.
Todos conhecemos o significado de serôdio (fora de tempo, para lá da estação própria), pois bem a farinha de trigo serôdio talvez capricho da natureza a ensinar o Homem que a sua felicidade ganha consistência na exaltação e fruição das subtilezas serôdias porque são mais fortes. Bons folares!
Armando Fernandes
PS. A composição dos folares tem segredos de cada autora, desde as quantidades aos ovos utilizados, passando pelas gorduras animais e vegetais.

Vendavais - Nas “Cristas” das ondas

Num fim-de-semana em que o tempo climatérico esteve muito mau e causou demasiados estragos, outros assuntos estiveram na baila.
É verdade que Portugal tem sido varrido por demasiadas intempéries nestes últimos tempos, desde o Algarve ao Minho. Todo o litoral foi fustigado pela ventania e por ondas enormes que impediram a circulação em estradas importantes como a marginal de Cascais, as zonas ribeirinhas ou a Ponte 25 de abril.
Face a estas intempéries e à quantidade de chuva que tem vindo, poderíamos dizer que finalmente foi feita a reposição dos níveis das barragens e dos níveis freáticos que nos permitirão passar um verão mais descansado, mas não. Efetivamente ainda não chega. Tem sido muita a chuva, mas tudo o que vem demasiado depressa, também vai da mesma forma.
Todo este vendaval vai muito para além disso mesmo. Este ano é um ano de lançamento político. E se nos lembrarmos, decerto concordamos que este temporal já começou antes do Congresso do PSD, quando Passos Coelho se viu obrigado a prescindir da liderança do partido. Vimos e assistimos a uma onda de manifestações sobre quem poderia liderar na época pós-Passos. Santana, Rio ou qualquer outro que estivesse no escuro. E como iria ser? Uma série de incógnitas que só obteriam resposta firme nas eleições internas e no Congresso onde Rio foi empossado como presidente. Passos saía pela porta pequena! Não esteve muito tempo na crista da onda!
Mas as ondas não pararam de agitar o panorama político dentro do PSD. As escolhas de Rio e a necessidade de um líder parlamentar seriam as ondas que agitariam ainda mais todo o espectro político social-democrata. Montenegro resolveu amenizar a situação ao não concorrer para o lugar da bancada parlamentar, mas a solução que veio a lume também não foi pacífica nem convincente. Tal situação não trouxe acalmia nas hostes internas partidárias. Há falta de garra, de acutilância política, de segurança. Rio, interpelado sobre a situação, disse que deveria ser desse modo, com calma, sem arrogância, sem gritaria, que um líder de bancada teria de agir. E que não fosse! Não tinha outra alternativa!
Onda quebrada, ou não, foi a escolha para vice-presidente do partido. Uma onda enorme de vozes contra levantou-se. Outras ondas mais pequenas se levantaram, mas quebraram para não desembocar em temporal. Enfim! Agora, com o mar mais chão, procuram-se limar arestas e rumar seguro até 2019. Mas como fazer oposição? Passos abandonou a bancada parlamentar! Um a menos. Bom ou mau, estava lá e sabia o que se passava. Agora há incertezas. Dava jeito Rio poder ocupar o lugar de Passos. Será que pode? Não! Também se pode fazer oposição cá fora, mas é diferente, muito diferente. O combate político não tem a mesma graça, nem a mesma força. Vamos esperar para ver.
Neste fim-de-semana teve lugar o Congresso do CDS. Uma nova onda! Toda a força e garra que era possível esperar da líder, teve eco. Cristas afirmou-se e adiantou-se na confirmação de líder da oposição. Quer o CDS como um partido forte, seguro, de oposição e também foi o primeiro a apresentar o cabeça de lista para o Parlamento Europeu. Adiantou-se a todos os outros. Cristas está na onda da vitória, por enquanto.
Sem “papas na língua” disse o que queria e ao que vinha. Pediu para dentro e disse para fora. O CDS nunca esteve parado, nem vai ficar parado. Está em movimento e em direção a 2019. Alertou para a esquerda unida e a necessidade de a derrubar. Uma oposição séria e eficaz no palco legislativo por excelência. Pedem-se votos sobre assuntos importantes. Votos ganhadores. É preciso encostar os partidos ou comprometê-los.
Cristas disse e voltou a afirmar que o centro direita está vivo e firme e que o seu espaço é para ocupar plenamente. No centro e na direita. Recado para fora e para quem pode precisar. Os valores e a história não são para esquecer. São para pôr em prática. Deverão enformar tudo o que o CDS fizer ou vier a fazer. Ações. Leis. Diplomas.
Mas Cristas disse mais. Disse que se os portugueses quiserem, ela pode ser a presidente do próximo governo. Claro. Outros o foram sem tantos atributos. Porque não?
É esta garra de líder que leva ao topo os políticos. O guindaste indispensável que eleva e sustenta toda a ambição de quem se quer afirmar e vencer. Na crista da onda, Cristas, navega, por enquanto, em mar calmo. Mas terá de saber surfar e aproveitar bem o vento favorável!