O acontecimento político mais relevante do ano transacto, para
Bragança, foi, indiscutivelmente, a escolha da Dr.ª Isabel Ferreira para Secretária de Estado da Valorização do Interior. Não que os outros Secretários de Estado, também bragançanos, não mereçam o nosso entusiasmo já que são pessoas trabalhadoras e superiormente preparadas. O que é que torna, então, Isabel Ferreira um “primus inter pares”? É o tema que vai trabalhar e que tão caro é aos bragançanos (e a todo o interior) pois é do seu futuro que se trata. E também porque representa o último reduto para dirimir os males que a interioridade impõe já que o “think tank” transmontano cheio de eminências, umas purpúreas outras mais pardas, depois de variadíssimos debates, mesas redondas, congressos, “brainstormings” conseguiu… o que se vê. É, pois, o rosto da última esperança para aqueles que pensam, ainda, ser possível reverter a desertificação e as desvantagens que a interioridade acarreta. É para ela que eles dirigem tanto o apelo dramático, ouvido a João Miguel Tavares no discurso do 10 de Junho, “dêem-nos algo em que acreditar” como a exigência humilde “precisamos de sentir que contamos para alguma coisa”.
Também eu gostava de acreditar. Mas o pessimista é o optimista com experiência, não é? Além disso há outras razões para ter algumas reservas quanto à reversão da situação actual sobretudo no que diz respeito à situação demográfica que é a mãe de todos os males. Desde logo por um certo determinismo histórico. O interior perdeu população porque a agricultura perdeu trabalhadores. Em 1974 havia 1.290.000 trabalhadores agrícolas e em 2018 temos 294.000. Comparando os anos 2008 com 2018 vemos que a população activa na agricultura em Portugal passou de 11,4% para 6% enquanto que a média europeia passou de 5,2% para 4%. Por aqui se vê que Portugal ainda vai perder mais trabalhadores agrícolas se quiser acompanhar a média europeia. E não podemos esquecer que a média europeia (4%) está inflacionada porque tem lá uns “tangas”, Roménia (23%), Grécia (12,3%), Polonia (9,6%) e outros que a fazem subir porque os países evoluídos como a Alemanha, Bélgica ou Reino Unido têm respectivamente 1,2%, 1% e 1,1%. Acho que ainda há muita gente “a mais” na agricultura se queremos ser um país de 1.ª linha.
Mas há outros indicadores que mais fazem avolumar as minhas reservas que são a rejeição ou não implementação de explorações capazes de fixar população no interior. A saber: apesar desta “corrida” à castanha por parte dos agricultores não se vê qualquer resposta da parte da transformação. Produzimos castanha para os outros ganharem as mais-valias; em relação ao ferro de Moncorvo já se discutiu até à exaustão a forma de levar o minério até à siderurgia do Seixal. Nunca ouvi ninguém levantar, sequer, a hipótese de o minério ser tratado ali mesmo; vemos os Montalegrenses indignados com a possibilidade de o Lítio ser explorado no seu território; vemos, também, os nossos vizinhos Espanhóis de Alcañices profundamente indignados com a quase certa instalação de “mega-granjas” nas suas terras. Estes indicadores, objectivos, que não se compaginam muito bem com a urgência do combate à desertificação ou à demanda de investimentos, tem explicações subjectivas que não sei dar e por isso me socorro de uma história que talvez ajude a enquadrar esta questão. É assim: Giuseppe Tornatore, realizador italiano, fez um filme sobre o percurso de vida de um individuo que apareceu bebé no porão de um paquete de cruzeiros. Adoptado por todos os marinheiros, cresceu, fez-se adulto e com isso um excelente músico e um inexcedível executante de piano. Era ele a alma musical das “soirées” que o paquete oferecia aos turistas. Quando o paquete atracava numa cidade, o pianista fazia as malas, despedia-se de toda a gente e dizia ir viver para terra. Mas quando se encontrava a meio do passadiço dava meia volta e voltava a entrar no barco. Fez isto uma série de vezes e entretanto o barco tornou-se obsoleto e foi para a sucata para ser desmontado por meio de explosivos. Começaram a tirar do interior tudo que tinha valor mas o pianista não saiu. Um amigo conseguiu descobri-lo (porque ele escondia-se) lá dentro e procurou fazer com que saísse. Mas ele manteve-se irredutível. “Que não sabia viver lá fora”, “que tinha medo de viver lá fora”, foram alguns dos argumentos invocados. (Curiosamente tinha medo de viver fora do navio e não tinha medo de morrer dentro dele. Postura em tudo semelhante à dos presos de muito longa duração quando são dados à liberdade.) De qualquer forma o navio é desmontado por explosivos e o pianista morre com o navio.
Tornatore, siciliano, disse em entrevista que o filme é uma parábola sobre a Sicília e que o pianista é um siciliano que se nega a abandonar a “sua” Sicília. O pianista é em tudo parecido com os Transmontanos que seguem no “seu barco”, sem lamentos, e se negam a abandoná-lo. Acho que somos do interior com muito gosto. São estes indicadores, alguns contraditórios, que me deixam perplexo e até baralhado. Não sei o que queremos, não sei como queremos e não sei, até, se queremos.
Apesar de todo este meu pessimismo e cepticismo, dou todo o benefício da dúvida à Dr.ª Isabel Ferreira até ao dia, necessariamente breve, em que as dúvidas se desvanecem em certezas. Boas ou más.