class="html not-front not-logged-in one-sidebar sidebar-second page-node page-node- page-node-195953 node-type-opiniao">

            

DO ESCRAVO E DO SEU SENHOR DO CRISTÃO, DO ÁRABE E DO JUDEU

“Não há puro sangue, em Portugal”. Disse-o Lídia Jorge e repetiu-o Marcelo Rebelo de Sousa, em Lagos, no passado dia 10 de junho na celebração do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.

A escritora e conselheira de estado, presidindo às comemorações do feriado nacional começou, precisamente, por ser referir à lusitana particularidade de ter escolhido como data para celebração da sua nacionalidade, o dia da morte de um poeta, o maior de todos os que escreveram na materna língua portuguesa, rejeitando qualquer intuito melancólico, muito pelo contrário, resultará da vontade de exaltar quem, pela sua obra e, inclusive, pelo seu percurso de vida, revelou a “nossa peregrinação prometeica sobre a terra”.

Essa epopeia que Luís Vaz de Camões exaltou de forma sublime tendo em Sagres o lugar geométrico da sua narrativa, à data em que foi concebida, tem igualmente, em Lagos, um ponto de referência no prosseguimento da aventura portuguesa pelo mundo. Porque se o árabe tinha chegado à Península, no século VIII por sua iniciativa, invadindo-a, conquistando-a e aculturando-a, os africanos que aportaram a Lagos, após a epopeia das descobertas foram aprisionados na sua terra e trazidos à força para serem escravizados, comercializados e explorados. E por cá ficaram, todos, misturando-se com os lusitanos, os visigodos e os celtas, que por aqui andavam já há vários séculos e com os judeus da diáspora e da expulsão castelhana, bem como com os muçulmanos cuja presença ganhara já foros de nacionalidade. Como pois será possível reclamar a legitimidade da expansão marítima, ao ponto de recusar qualquer devolução de putativos roubos e apropriações culturais das terras onde as nossas caravelas aportaram há cinco séculos e ignorar a presença de mais de um milénio de quem, independentemente de quaisquer laivos nacionalistas veio trazer alguma luz à escuridão que a Ida- de Média lançara sobre toda a Europa.

Permita-me o leitor uma citação: “Não devíamos sentir-nos envergonhados por apreciar a verdade e recolhê-la seja de onde for que ela venha, mesmo que venha de raças distantes e nações diferentes das nossas”. Este pensamento, apesar da sua evidente contemporaneidade, tem mais de um milénio. Foi enunciado por Al-Kindi, um filósofo árabe do século IX mas não perdeu nem valor nem atualidade. Poderia ter sido proferido por qual- quer dos oradores do 10 de junho em Lagos. A universalidade dos bons valores não tem idade nem pátria e todos nos podemos (devemos) rever e sentir herdeiros da sua formulação. Casa bem com o que Lídia Jorge proferiu, a dado momento: “Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas”.

É isso que eu sou e assim me sinto. Tão herdeiro do longínquo filósofo oriental como da próxima e contemporânea escritora algarvia. Do judeu vindo de Jerusalém, ou expulso de Toledo e do cristão que o acolheu e do que o queimou em autos de fé, do árabe proveniente de Bagdad ou de Granada e do ibérico que o combateu ou com que se miscigenou, do africano capturado na costa africana ou traficado na Feitoria da Mina e do continental que o escravizou ou que com ele pacifica e fraternalmente conviveu. Se a língua é a nossa pátria, são meus concidadãos não só os que a falam mas sobretudo os que partilham os valores e ideias de humanidade.

José Mário Leite