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Natal à prova do custo de vida

Ter, 23/12/2025 - 08:51


Às portas do Natal, quando a mesa se quer farta e o tempo parece suspender-se na liturgia dos gestos antigos, há números que irrompem pela tradição dentro. O preço dos ovos, esse ingrediente humilde, praticamente invisível, mas essencial, quase duplicou em três anos. E, com ele, sobe o custo de tudo o que dele depende, os doces que marcam a memória coletiva, as receitas herdadas, a doçura que resiste como último reduto num quotidiano cada vez mais caro.
Há algo de profundamente simbólico neste encarecimento. O ovo não é apenas um bem alimentar, é matéria-prima da celebração, base silenciosa da doçaria que define o Natal português. Quando o seu preço dispara, não é só a economia que acusa o impacto, é a própria ideia de abundância festiva que se vê pressionada. A farinha e o açúcar até podem aliviar, mas basta que um elo da cadeia se fragilize para que todo o conjunto se ressinta. Assim funciona o mercado e, por arrasto, a vida.
Os motivos são conhecidos, escassez global, doenças que atravessam fronteiras, uma procura que não cede perante a incerteza. Também se sabe que há esforços, ao longo da cadeia, para conter o impacto final, comprimindo margens, adiando decisões difíceis. Mas há um ponto em que a aritmética se impõe e chega ao consumidor, esse que, mês após mês, vê o custo de vida subir com uma persistência que já não surpreende, apenas cansa.
E, ainda assim, o Natal resiste. Resiste na decisão de manter o bolo rei, mesmo mais pequeno. Resiste nas filhoses feitas em casa, com contas feitas ao cêntimo em algumas casas. Resiste no esforço silencioso de tantas famílias que guardam “um bocadinho mais” para que nada falte na noite maior. Há nisso uma forma de teimosia virtuosa, quase heroica, remar contra a maré, como se costuma dizer, mantendo a tradição como âncora num mar revolto.
Mas convém não romantizar em excesso esse esforço. Um país não pode depender eternamente da capacidade dos seus cidadãos para absorver choques sucessivos. Quando bens essenciais se tornam voláteis e imprevisíveis, quando cada época festiva traz consigo um novo sobressalto nos preços, impõe-se uma reflexão mais ampla sobre regulação, equilíbrio e justiça económica. O Natal não deveria ser um teste de resistência financeira.
Neste dezembro frio, entre vitrinas cheias e carteiras mais leves, os doces continuarão a chegar à mesa, talvez com menos exuberância, mas com o mesmo significado. Que saibamos saboreá-los sem esquecer o que revelam, que até a doçura tem hoje um preço mais alto e que preservar a dignidade da celebração passa também por cuidar das condições que a tornam possível. Porque o Natal, mais do que consumo, é partilha e essa não deveria nunca tornar-se um luxo.

 

Carina Alves, Diretora de Informação.