“Ainda hoje há muita gente que venera José Jorge como santo”

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Ter, 04/04/2023 - 10:08


O professor e escritor Fernando Calado, natural de Milhão, concelho de Bragança, acaba de lançar o livro “José Jorge O santo ou o último condenado à forca no distrito de Bragança”. Esta segunda-feira faz precisamente 180 anos que o soldado morreu, tendo até mais tarde sido reconhecido que foi condenado injustamente. Está sepultado no cemitério de Bragança e tem ainda uma capela em sua homenagem. Ao Jornal Nordeste o escritor falou desta obra e do objectivo de a ter escrito
Teve que pesquisar bastante para conseguir escrever este livro?
Sim. Como eu costumo dizer, não fui eu que procurei o José Jorge, foi ele que me procurou a mim, porque estando a ler um livro do José Saramago quando chega à visita a Bragança uma das personagens que ele refere abundantemente é a personagem de José Jorge e isso criou-me alguma curiosidade. Por outro lado, o Abade Baçal, nas memórias arqueológicas do distrito de Bragança, também se refere de uma forma muito documental ao José Jorge. E também porque este ano faz 180 anos que José Jorge foi condenado à forca, em 1843, acho que é oportuno, até por uma questão de cidadania referir em documento mais actual a vida e a desgraça deste pobre soldado de Maçainhas, no concelho de Belmonte.
 
Que soldado foi este?
Este soldado veio para Bragança para incorporar uma divisão de auxílio a Espanha num conflito que houve entre D. Carlos e D. Isabel II. Houve recrutamento de jovens para  fortaleza de Almeida e Bragança e lá vem José Jorge para constituir essa força militar. Depois desertou de Bragança e foi ter a uma quinta no Alentejo e vai ser nessa quinta, segundo relato do Abade Baçal, que terá começado a desgraça deste soldado, que é remetido de novo para o quartel de Bragança, onde foi julgado num processo sumário e depois condenado à morte por enforcamento no Largo de Santo António, numa cidade pacata, onde não acontecia nada. Foi de facto um motivo de grande aglomerado de pessoas e ainda havia esperança que a corda se partisse, a bandeira da Santa Casa da Misericórdia o protegesse, como era tradição, mas isso não aconteceu e acabou mesmo por morrer.
Mais tarde veio-se provar que ele teria sido condena- do injustamente e daí criar esta aureolada de santidade, o que o tem mantido vivo até hoje na memória e no imaginário popular.
 
Porque veio ser condenado aqui?
No Alentejo um patrão tê-lo-á acusado de um caso ilícito amoroso com um familiar e ele terá fugido.
Esse patrão também o acusou que seria um criminoso e como era militar em Bragança foi entregue ao seu quartel e aqui num processo sumaríssimo acharam que ele teria sido o autor de
um crime de homicídio e de fogo posto e rapidamente foi condenado à morte.
 
Como foi todo o trabalho de investigação?
O trabalho de investigação começou pela leitura dos documentos de Abade Baçal e também com consulta de atas, documentos da época, informações do Ministério do exército e depois também alguma ficção da minha parte, portanto tem a parte real e a parte ficcionada, como convém ao romance. Por outro lado, a investigação que esteve subjacente a este romance também teve a ver com as múltiplas histórias que se contam à volta do José Jorge. Mesmo os coveiros dos cemitérios, quando vai lá um visitante, contam uma história diferente. Um capitão do mesmo batalhão, António Trancoso, inscreveu uma peça de teatro, que eu também insiro neste livro, que foi imensamente representada nos anos 20, a última vez que foi representada foi para a Academia do Liceu em 1973. A última vez que fui ao cemitério fotografar a campa de José Jorge impressionou-me, porque está muito mal tratada.
 
Porque será que com o tempo as pessoas deixaram de falar sobre este soldado?
Por dois motivos. Um, porque, entretanto, o tempo tudo apaga, se efectivamente não houver a preocupação de renovar as personagens. Outro, porque as autoridades eclesiásticas nunca pegaram neste caso de santidade. Portanto, nunca conduziram a sua beatificação e canonização para o Vaticano, portanto a sua fama de santidade registou-se só no imaginário popular e ainda hoje há muita gente que venera esta personagem como santo.
 
Mas reconheceu-se mais tarde que foi injusto...
Sim. O relato do capitão Trancoso diz que quando estava o carrasco a colocar-lhe a corda ao pescoço que terá vindo o verdadeiro autor do crime a confessar o seu crime, de uma forma alucinado, mas as autoridades que estavam presentes achavam que era um louco, portanto ninguém deu muita importância e o que queriam era despachar aquilo rapidamente, porque a dado momento houve um clamor público de que estavam a condenar um inocente, a pedir misericórdia. E a população de Bragança achou que tínhamos ali um santo e que tinha sido condenado injustamente, que era preciso construir rapidamente uma capelinha para lhe prestar a homenagem de santidade e ainda hoje está lá a capelinha, embora muito maltratada o que no meu ver devia ser reparada, porque o José Jorge ainda continua a atrair visitantes, ainda continua a atrair o turismo religioso. O próprio José Saramago foi visitar a campa de José Jorge e escreveu uma peça importante sobre esta personagem.
 
E quanto à parte da ficção, em que se baseou para se inspirar?
O facto de eu ter lido muito na minha juventude, ficou-me uma formação literária que vem dos clássicos e isso repercute-se também nos meus livros, depois também a questão emotiva
que eu gosto de colocar nos livros. Quando se começa um livro não sabemos onde vai terminar, as personagens a dado momento tomam conta de nós e são as personagens que exigem um determinado tratamento e uma determinada abordagem do tema.
 
Qual foi o objectivo deste livro?
Uma questão de cidadania, para chamar à atenção para as questões de injustiça e dos erros judiciais que se cometem, toda a gente é inocente até prova em contrário.
Jornalista: 
Ângela Pais