Bragança de olhos fechados para a inclusão

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Ter, 01/08/2023 - 11:12


Francisco Alves e Nuno Rodrigues são cegos e vivem em Bragança, onde dizem não haver condições de acessibilidade

A cidade de Bragança tem alguns obstáculos e precipícios, um pouco caricatos, que podem pôr em perigo o bem- -estar ou até mesmo a vida de qualquer um que, distraidamente, percorra o seu caminho, na sua rotina diária. Se, por vezes, é complicado ver o perigo e evitá-lo… nem se imagina como será para um cego contornar estes pequenos, que podem ser grandes, problemas. Na cidade, as escadas do teatro municipal são um problema bem grande… é possível passar por baixo delas mas quem ande com a cabeça mais na lua pode rápido voltar à Terra. As escadas não têm a mesma regularidade, em termos de altura, e é fácil bater com a cabeça. Também os sinais de trânsito representam perigo. Alguns, colocados no meio dos passeios, estão ao nível de várias cabeças. Acertar-lhes, até para quem vê, é fácil. Alguns candeeiros de rua também estão pouco bem posicionados. Para quem ande de cadeira de rodas, como os encontram mesmo no meio do passeio, é um teste à paciência. Por vezes a cadeira não cabe nem entre a luminária e o prédio/ casa, nem entre a luminária e a estrada. Para os cegos também é, claro, um obstáculo que pouca falta fazia pelo caminho. Junto ao Lidl também há mais um precipício. O estacionamento deste espaço está mais baixo que a estrada. O passeio tem um muro, mas é pequeno, e já algumas pessoas caíram dele para o estacionamento. Como diz o povo, “o tombo não é grande” mas ainda pode fazer estragos. Na Rua da República o passeio acaba e… ou se anda com calma e atenção ou se cai para a estrada ou até para cima de um carro, dos que ali estacionam. Da estrada ao passeio há uma altura de quase 1 metro. Também os mecos e bolas pelos passeios fora, sobretudo no centro histórico, dão que fazer a quem não vê. Não sendo barreira arquitectónicas, também algumas esplanadas plantadas nos passeios, por vezes, estreitos, são jeitosas para andar à joelhada.

Obstáculos, barreiras e precipícios podem provocar uma “desgraça”

Francisco Alves, de 72 anos, residente em Varge, no concelho de Bragança, começou a ter problemas de visão aos 14. Depois perdeu-a completamente. Andar pela cidade, por vezes, é uma aventura já que, em termos de barreiras, sobretudo arquitectónicas, há algumas e, antes de mais, diz esperar “que não seja preciso morrer alguém para se fazer alguma coisa”. O professor aposentado, de Filosofia, que deu aulas, quatro décadas, na Póvoa de Santo Adrião, em Lisboa, tem dedicado bastante tempo, há já alguns anos, a recolher o que está mal, o que pode representar perigo, para, depois, apresentar a quem de direito as situações, de forma a serem corrigidas. E sim, há várias. “Nunca sofri acidentes graves mas há algumas barreiras muito perigosas, para todas as pessoas, não só para cegos. Há uma situação no Parque da Braguinha, do outro lado da estrada, por exemplo, em que, junto ao passeio, há um precipício de cerca de 5 metros. Se lá caísse morria”, esclareceu Francisco Alves, lembrando que este tipo de questões mal pensadas ou resolvidas já lhe roubaram a vida a um amigo, cego, em Coimbra, que caiu, de cabeça, num precipício. “Acho que se aqui, em Bragança, houvesse uma desgraça dessas, as pessoas iam ficar muito tristes”, rematou. Apesar de quase tudo que representa perigo continuar como está, as escadas do shopping de Bragança, que não tinham protecção,ganharam-na muito recentemente. Quem as subir ou descer não corre mais o risco de, por distração, cair e poder sofrer uma queda bem aparatosa em altura. Francisco Alves pode ter contribuído para que este problema se resolvesse, até porque já tinha alertado para a situação, por várias vezes. Vozes como esta, de protesto, de alerta, mudam, de facto, o rumo da história. O ex-professor já pediu a alguns trabalhadores da câmara que com ele se deslocassem a alguns precipícios e obstáculos e garante que não vai parar. “As pessoas não podem saber de tudo e, por isso, é bom alertá-las”, esclareceu, dizendo que “é assim que se cumpre o papel de cidadão”. Francisco Alves diz que tem estado “várias vezes” com o presidente da câmara de Bragança, Hernâni Dias, contudo são encontros destinados a tratar assuntos sobre a associação transfronteiriça de que é presidente, a Rionor. Mas estes perigos eminentes estão a ser devidamente identificados e não vão ficar guardados. “Isto não é um problema dos cegos, nem para quem anda de cadeira de rodas. É um problema de todos. Um senhor que tem uma loja, na rua das Finanças, já socorreu várias pessoas que deram cabeçadas na parte de trás do Centro de Arte Contemporânea Graça Morais”, vincou. Também nesta rua, na Emídio Navarro, junto à Casa do Professor, há um “buraco” profundo. A meio do passeio há umas escadas que dão acesso a uma porta. Mas, ali, não há sinalização, para os que veem. Para quem não vê, nem protecção existe. Para Francisco Alves ser-se cego não é sinónimo de “coitadinho” mas, claro, “não se pode dizer que é bom ser-se cego”, isso “seria cair numa cegueira redobrada”. Com o tempo, percebeu que “o ser humano não tem apenas olhos”, é dotado muitas outras coisas que, por vezes, não se valorizam. “Quando somos confrontados com uma situação destas temos que ser realistas e objectivos. Só resta aceitar. Quando temos um problema que não aceitamos tornamo-nos revoltados”, vincou, assumindo que lhe pesam mais os preconceitos do que a cegueira. E preconceitos, de facto, ainda há muitos.

Passadeiras sinalizadas precisam-se

“Passeios danificados, acesso às passadeiras com lancil elevado, não marcação das passadeiras, vegetação que ultrapassa o limite do muro e obstrói a passagem no passeio, ramos de árvores demasiado baixos”: são alguns dos obstáculos de que Nuno Rodrigues se queixa. Cego desde 2018, devido a um acidente, queixa-se dos “demasiados obstáculos” que há na cidade de Bragança. A bengala é a sua ajuda, mas não substitui os olhos e, por isso, pequenos objectos podem tornar-se uma tormenta para pessoas invisuais.“Há uma rua junto às estufas do IPB e o passeio de quem desce em direcção à Alameda está totalmente danificado e tem árvores em que os ramos estão mesmo muito baixos e é esse caminho que estou aprender a fazer. É-me impossível ter uma aprendizagem tranquila, porque vou tendo o passeio danificado e a ramas das árvores a tocarem na cara”, contou. As passadeiras são outro dilema. São poucas as que estão sinalizadas e adaptadas para pessoas com deficiência. “Fora da Avenida Sá Carneiro não há passadeiras com marcação, então aí é-nos difícil sabermos onde está a passadeira. Nesse caso temos que aprender os pontos existentes, um passeio danificado, um poste existente. Há uma aprendizagem do caminho o que nem sempre é fácil, porque às vezes basta um pequeno desvio do ponto de referência e já fico um bocadinho baralho com o trajecto”, disse. Quanto ao bairro onde vive, reconhece que é “muito pouco” adaptado para a sua realidade e teve que pedir à Câmara Municipal de Bragança um lugar de estacionamento para deficientes perto do seu prédio, para que a sua companheira pudesse estacionar, facilitando o seu transporte. Nuno Rodrigues lamenta que nem a cidade, nem a sociedade esteja preparada para pessoas como ele. São poucos os filmes e séries adaptados para pessoas invisuais, mas em Bragança um projecto pretende tornar a cultura acessível a todos.

Cultura não é acessível para todos

Há dois anos a Câmara Municipal de Bragança aderiu ao projecto “Cultura para Todos”. O objectivo seria tornar os equipamentos culturais municipais mais acessíveis para todos, o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, o Centro de Fotografia Georges Dussaud, Museu Nacional Ferroviário, Museu Ibérico da Máscara e do Traje e o Teatro Municipal de Bragança. O Instituto Politécnico de Bragança ficou responsável por diagnosticar as condições de acessibilidade destes espaços. “O diagnóstico foi apresentado há ano e meio à câmara e identificava uma série de falhas dentro dos próprios equipamentos, por exemplo o museu Ibérico e o museu de Fotografia é impossível ser visitado por uma pessoa com cadeira de rodas. Para além das questões físicas, há uma série de falhas por exemplo para pessoas com deficiente invisual e auditiva. Creio que uma das grandes responsabilidades do município dar formação aos funcionários para que eles estejam aptos para o mínimo”, explicou a coordenadora e docente do IPB, Cláudia Martins. Apesar de o diagnóstico já ter sido feito, a câmara municipal ainda não terá implementado soluções. “Quando as pessoas dizem que a cultura é para todos não sabem do que estão a falar”, afirmou Cláudia Martins, salientando que “é obrigação do equipamento fornecer os meios de mediação necessários”. O projecto consistia ainda em criar recursos direccionados para pessoas com deficiência, como textos com audiodescrição, textos em linguagem simples, vídeos em língua gestual portuguesa, disponíveis no canal Youtube “Cultura para Todos”, e ainda criação de maquetes e plantas tácteis e textos em braile, que estarão nos espaços culturais municipais.

Festival de Cinema Acessível

É único no país e consiste na exibição de filmes com audiodescrição e legendagem para surdos e ensurdecidos e ainda visitas ao Centro de Arte Contemporânea Graça Morais ou ao Museu do Abade de Baçal com audiodescrição e interpretação em Língua Gestual Portuguesa ao vivo. O objectivo é sensibilizar para a criação de recursos que promovam a acessibilidade de todos a espaços e actividades culturais. É organizado pela Escola Superior de Educação do IPB.

Mais “sensibilidade para a inclusão”

Na região há 33 pessoas que são apoiadas ou já tiveram o apoio da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal. Esta associação dispõe de vários serviços de apoio, nomeadamente apoio psicológico, social, psicomotricidade, tecnologias, orientação, mobilidade e actividades da vida diária e ensinamento de braile. Fazem ainda actividades de cultura e lazer, como visita a museus, workshops, mas também trocam experiências. Está ainda a ser desenvolvido um projecto de basquetebol adaptado para pessoas com deficiência invisual. A delegação mais perto é em Vila Real, mas abrange os dois distritos, Vila Real e Bragança. No entanto, em colaboração com o Instituto Politécnico de Bragança prestam atendimento numa das salas do politécnico. Segundo Carina Ferreira, directora técnica da ACAPO de Vila Real, actualmente já há mais “sensibilidade para a inclusão” e a “diversidade já está muito mais presente no dia-a-dia”. No entanto, lamenta que os transportes públicos, ou a falta deles, seja um problema na região, que também afecta os cegos. “Quando são empresas do Estado a forma de comunicação é diferente, quando falamos em empresas com gestão privada é muito mais complicado”, disse, explicando que o autocarro é o único meio de transporte público em Trás-os-Montes e, contrariamente ao comboio, não há descontos nos bilhetes para pessoas cegas. Uma luta que diz estarem a travar, mas que não é só da ACAPO, mas de todas as pessoas com deficiência.

Questões resolvidas: quando?

Em Maio de 2018, os principais problemas que Bragança apresenta ao nível da acessibilidade estiveram em destaque no primeiro debate “A arte de criar uma sociedade cada vez mais inclusiva”, no âmbito do programa Erasmus+ - Art of Inclusion. Nessa iniciativa, o presidente da câmara de Bragança, depois de ouvir as queixas de Francisco Alves e de um homem que se deslocava em cadeira de rodas, baseou a sua intervenção na apresentação do Plano de Acção de Mobilidade Urbana Sustentável (PAMUS), um dos três instrumentos que compõe o Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano (PEDU), apresentado em 2017. Na altura, disse que estavam “definidas várias acções” por forma a que a mobilidade dentro da cidade fosse “facilitada”, tanto para peões, como para pessoas que usam bicicletas, como para automobilistas. Na parte pedonal, apontou com exemplo que se iria fazer o rebaixamento de passeios, sobreleveação de passadeiras e colocação de algumas inteligentes, reforço de iluminação em algumas zonas e a criação do resto da circular urbana de Bragança. Vincou ainda que o PAMUS previa que fossem resolvidas “uma boa parte destas questões”. Até agora, algumas foram resolvidas, mas os precipícios, barreiras e obstáculos continuam a existir. Tentámos chegar à fala com Hernâni Dias mas não foi possível.

Como indicar o caminho a um cego?

Muitas vezes as pessoas dão a mão aos cegos para os ajudar a atravessar a rua ou para lhes indicar o caminho, mas isso pode deixá-los “inseguros”. O ideal é dar- -lhes o cotovelo. Assim, o cego fica atrás da pessoa, seguindo-a e dando-lhe mais segurança.

Jornalista: 
Carina Alves/Ângela Pais