Migrantes a trabalhar em Vinhais vivem em condições deploráveis e sem salário

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Ter, 04/04/2023 - 10:10


Grupo de indianos está a fazer reflorestação na União das Freguesias de Quirás e Pinheiro Novo e vive numa casa sem cozinha e sem condições de fazer a higiene pessoal

Um grupo de indianos está na União das Freguesias de Quirás e Pinheiro Novo, no concelho de Vinhais, a fazer trabalhos de reflorestação, mas vive em condições indignas e, pelo menos, alguns dos homens não recebem salário.

Os trabalhadores vivem numa Casa do Povo, em Pinheiro Novo, mas dormem em três ou quatro colchões, no chão. Não têm como tomar banho, já que o local onde estão alojados tem casas de banho, mas apenas dispõem de sanita e lavatório para as mãos. O banho, conforme pudemos ver, é feito numa agueira, nas imediações da casa. Cozinha também não há. Preparam as refeições num barracão, atrás da casa. É ali, naquele espaço sem portas e já antigo, que fazem fogueiras e põem as panelas ao lume.

O espaço foi cedido pela União de Freguesias de Quirás e Pinheiro Novo, que lava as mãos de culpas. A população está revoltada com o cenário e fala de exploração. E a empresa, que foi contratada para os serviços de reflorestação, alega que os indianos vivem com “condições” e que estão “satisfeitos”.

 

“Não me pagam”

Os trabalhos florestais terão sido solicitados a uma empresa de Vila Verde, no distrito de Braga, a Turma Rústica LDA, pelo agrupamento de baldios de Pinheiro Velho.

A empresa bracarense trouxe os indianos até ao concelho de Vinhais, sendo que o grupo, que ronda, habitualmente, entre os oito a dez elementos, vai sendo composto por várias pessoas, todas desta nacionalidade. A troca de funcionários acontece, aparentemente, por dois motivos: a GNR esteve, pelo menos uma vez, no local, após os trabalhadores pedirem ajuda, e alguns simplesmente não voltaram ali e, por outras vezes, há outros que acabam por não querer trabalhar por, alegadamente, não serem pagos pelos serviços e vão embora.

Um dos trabalhadores que não recebe é Jaswinder Singh. Está em Portugal desde Outubro. Foi através de um amigo que conheceu a Turma Rústica LDA, onde trabalha desde 17 de Fevereiro. Juntou-se ao grupo de outros indianos, mas nada previa este cenário.

Há mais de um mês que ali trabalha e disse “nunca” ter recebido dinheiro da empresa. “Não me pagam”, afirmou, explicando que, por isso, deixou de trabalhar e fica, durante o dia, em casa, à espera que seja feito o pagamento. Tem contrato com a empresa, mas diz que o salário não existe. Quer ir embora, para o “Porto” ou até “Lisboa”, porque acredita que encontrará melhores condições de vida.

Tem 44 anos e na Índia deixou a mulher e a filha, de apenas 15 anos. As saudades encheram-lhe os olhos de lágrimas quando o assunto foi a família. Traz consigo uma pulseira com os nomes das duas gravados, como se assim as tivesse mais perto.

Embora os anteriores trabalhadores indianos se tivesse queixado com a fome, Jaswinder Singh, no dia que o visitámos, disse estar bem e que até tinha comido. Porém, percebemos que o que comem não passa uma espécie de papa feita com farinha e água.

 

Indianos pediram ajuda e GNR esteve no local

O trabalho de reflorestação está a ser feito desde Dezembro. Alguns trabalhadores chegaram a ser levados pela GNR, depois de terem pedido ajuda a uma moradora da aldeia.

Eram cerca das 8h quando lhe bateram à porta com um telemóvel na mão, solicitando auxílio. Conseguiram ligar para a guarda, mas pouco se faziam entender e foi aí que a moradora conseguiu explicar toda a situação às autoridades.

Segundo explicou a habitante, os guardas de Vinhais, Rebordelo e Bragança foram à aldeia e “levaram” os oito indianos, mas no mesmo dia, à noite, “a empresa trouxe outros oito”.

“Primeiro dei-lhe de comida, porque me acenavam para a horta de casa e eu vi que eles estavam débeis das pernas. Estavam cheios de fome e disse para o meu marido que lhes ia dar de comer, porque o meu coração estava partidinho”, contou.

Um dos trabalhadores queixava-se ainda que o patrão “lhe tinha batido”. “O patrão é que está a explorar estas pessoas. Há que ter pena destas pessoas que têm frio, fome e estão a ser exploradas”, afirmou.

A GNR confirmou ter estado no local no dia “15 de Fevereiro”. “A Guarda recebeu uma denúncia sobre alegados maus tratos de vários cidadãos de nacionalidade indiana, que residiam e trabalhavam na localidade de Pinheiro Novo. Atendendo ao depoimento das vítimas e das diligências policiais, foi possível verificar que as vítimas não tinham condições para permanecer na habitação onde estavam”, referiu, em resposta ao Jornal Nordeste.

Os oito indianos foram encaminhados através do Centro de Acolhimento de Vítimas da Tráfico de Seres Humanos das Equipas Multidisciplinares Especializadas (EME) do Norte.

A GNR reportou ainda os factos ao Tribunal de Bragança e aos serviços do Alto Comissariado para a Imigração.

 

População indignada

A casa de Armindo Pais é imediatamente ao lado do local onde os indianos estão alojados. Vive em Lisboa, mas vem passar férias à aldeia. Quando chegou percebeu que a casa tinha sinais de arrombamento. Alguém terá tentado “entrar pela janela e partiu o estore e a mosquiteira”. Até agora não sabe quem terá sido, mas desconfia. À sua chegada, um dos seus bidões e até a mangueira estava na propriedade da Casa do Povo. “Tenho uma mangueira, que eu uso para as plantas, e quando cheguei estava para este lado. Puseram-na ali junto à rede que divide o meu terreno na casa do povo e eu suponho que eles tomavam banho com a mangueira”, disse.

Contou ter ido à GNR, mas não apresentou queixa, queria apenas dar conhecimento do que está acontecer na aldeia e verem “a desgraça que se vê de fora, como eles andam, coitados”. “Estou revoltado porque isto não é sítio para alojar ninguém, para viver, porque não tem condições de habitabilidade. Basta olhar para lá e não vemos chaminé e se não tem chaminé não tem cozinha, se não tem cozinha as pessoas não podem viver lá. E têm colchões, mas que os vizinhos puseram lá”, disse.

Armindo Pais vê-os sair às “6h30 ou 7h”, só regressam por volta das “18h” e, à hora de almoço, “não vêm comer”.

Tiago Gomes está emigrado, mas regressou há duas semanas à aldeia. Mal chegou soube logo do que se estava a passar e frisou que “não se metem com ninguém” e que toda a situação “não é culpa deles, é culpa do patrão”.

Quem garante o mesmo é Ovídeo Alves Ferreira, residente em Pinheiro Novo. “São impecáveis, bons rapazes”. Além do mais, “não causam desacatos, nunca se meteram com ninguém”.

Mas fome diz que passam. “Ainda outro dia lhes fiz cinco quilos de moelas e trouxe-as cá e agradeceram, ficaram todos contentes”, contou, afirmando ainda que outras pessoas da aldeia também já os ajudaram, nomeadamente cedendo colchões para que não dormissem directamente no chão.

O que revolta este morador, que diz que “só há dois ou três com passaporte”, é que “esta gente não está a passar muito bem”, que “não têm comida” e que a pouca que têm “é o patrão que lha traz, mas só é farinha”. “Não tem fogão nem onde tomar banho. A casa serve para dormirem mas não têm comodidade”, frisou.

 

União de freguesias diz não ter culpa

Contactámos a presidente da União das Freguesias de Quirás e Pinheiro Novo, Zélia Diegues, que, inicialmente, se mostrou disponível para explicar a situação, noutra altura. Contudo, depois de várias tentativas telefónicas, nunca mais atendou as nossas chamadas.

Ainda assim, na visita à aldeia, o tesoureiro da união de freguesias, Manuel Borges, confirmou que a casa “foi cedida pela junta”. “Pediram-nos que arranjássemos um espaço, porque estes trabalhadores não tinham onde ficar alojados, e decidimos que era melhor ficarem aqui do que numa tenda na rua”, esclareceu.

Segundo disse, o pedido foi feito pelo “presidente dos baldios do Pinheiro Velho e pelo engenheiro responsável pelo projecto de plantação da floresta”.

Mas e as condições em que estas pessoas vivem? “Nós cedemos o que tínhamos. Quando dei a chave de casa avisei logo que isto não tinha todas as condições necessárias e eles disseram que não havia problema. Foi o patrão que anda com eles que disse que as condições eram com eles”, respondeu o tesoureiro.

Dizendo que “a culpa é do patrão deles”, afirmou ainda que “há alguns que vêm enganados, que pensam que arranjaram trabalho, mas não gostam e querem ir embora e vão”.

A população, conforme ainda vincou, “não está descontente com nada”. Ou seja, falam por falar. “Já vi gente a viver em condições piores”, concluiu.

Tentámos também contactar o presidente dos baldios do Pinheiro Velho, mas apesar das várias tentativas, não conseguimos obter qualquer esclarecimento.

 

Turma Rústica escusa-se a explicar

A Turma Rústica LDA assume-se como uma empresa que presta serviços na área da silvicultura e exploração florestal, prestando trabalhos de colheitas, podas, embalamentos, plantações, trabalhos de limpeza de vegetação, silvicultura, entre outros ofícios nas áreas de negócio da Agricultura e Floresta. “Perante, no nosso país, uma falta generalizada de mão-de-obra capaz, pontual e assídua, assumimos o compromisso de disponibilizar um serviço que seja capaz de dar resposta à presente lacuna”, lê-se no site da empresa.

Com sede em Pico de Regalados, em Vila Verde, no distrito de Braga, a empresa diz então que tem mão-de-obra capaz, mas serão eles capazes de garantir condições aos trabalhadores? Aparentemente, segundo a empresa, sim. Mas já lá vamos.

Contactámos Kuldeep Poonia, que o trabalhador indiano, Jaswinder Singh, nos indicou com seu patrão, mas, inicialmente, quem prestou declarações foi Sara Moreira, do departamento financeiro, que disse estar a atender o telefone de Kuldeep porque este “é indiano e não sabe falar tudo em português”.

Sara Moreira mostrou-se, numa primeira abordagem, pronta a esclarecer algumas questões, assumindo que a empresa foi, de facto, contratada para aqueles trabalhos. Depois, quando surgiram as questões de condições de habitabilidade, o discurso mudou. “Não prestamos declarações. O máximo que posso responder é às autoridades. Aos jornalistas… por amor de Deus”, assumiu.

Ainda assim, acabou por clarificar que a polícia já a contactara, quando os indianos pediram ajuda à GNR. “Ligaram-me do posto e eu cedi toda a informação. Enviei os contratos todos direitinhos e estava tudo ok. A GNR foi lá e verificou que eles tinham o básico. Portanto, não sei que se passa”, esclareceu.

Quanto a condições de habitabilidade não falou mas quando questionada sobre se os trabalhadores estão bem disse que sim. “Se foi a junta que lhes arranjou a casa você entenda-se com a junta”, respondeu, acrescentando não saber, em concreto, se foi ou não a empresa que solicitou a casa para os trabalhadores terem onde ficar alojados. “Faço serviço administrativo e o serviço externo não é comigo”, rematou.

E no que toca a salários, apesar de inicialmente dizer que não sabia de nada, sendo que até pertence ao departamento financeiro, explicou, depois, que “os pagamentos são com a entidade patronal, com o Kuldeep”. “Isso já é fora da minha alçada. Não sei. Eu apenas emito os recibos… se ele paga ou não eu não sei”, esclareceu.

Já as trocas e mexidas na equipa de trabalho desculpa-as com a cultura destas pessoas. “Eles são nómadas. Pegam na mochila e vão. Depois voltam, depois vão e depois voltam. O que quer que faça e que diga mais?”, questionou.

Numa segunda tentativa conseguimos então chegar à fala com Kuldeep Poonia. Confirmou os trabalhos no concelho de Vinhais, mas questionado sobre as condições em que os seus trabalhadores vivem disse não compreender o que lhe perguntávamos.

Acabou por desligar a chamada e não voltou a atender após ser questionado sobre pagamentos e de haver, pelo menos, um empregado que nunca recebera um cêntimo. “Que empregado é esse? Quero saber! Quero falar com ele”, disse. Após a recusa em identificar o indiano, simplesmente desligou a chamada.

Jornalista: 
Carina Alves / Ângela Pais