O medo e o risco que punham o pão na mesa dos transmontanos

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Ter, 18/04/2023 - 12:33


Xosé Pordomingo e Miguel Arribas são rostos do contrabando, que relembram tempos difíceis e dos quais não têm saudades
Cada traço de ruga no rosto podia representar o medo que sentiam todas as semanas quando tinham que atravessar a fronteira, por vezes a pé, outras vezes a nado. “Eram tempos difíceis” e por isso tinham que se fazer à vida. A luz ao fundo do túnel foi o contrabando. Ali sabiam que podiam ganhar algum dinheiro, mas também tinham plena consciência das consequências caso corresse mal. Mas que sorte tiveram Xosé Pordomingo e Miguel Arribas, um espanhol e um mirandês, que apesar dos sustos, nunca se deixaram apanhar.
Com 87 anos, Xosé Pordomingo ainda se lembra bem de como foram aqueles tempos. Não há anos que apaguem as memórias do contrabando. Vivia a 15 Km da cidade de Miranda do
Douro, mas já em território espanhol. Começou por volta dos 18 anos e não era o único. Na sua terra eram “uns 20”. “Toda a gente fazia o que podia”. Lembra-se que no tempo de Francisco Franco “as coisas eram más” e as pessoas tinham que se fazer à vida.
Para Portugal trazia lã, porcos pequenos, tecido, calças. Para Espanha levava azeite, aguardente, ovos e bacalhau. Mas para conseguirem passar a fronteira era preciso dominar uma técnica de cordas. “Primeiro havia uma corda mais fina, do tamanho do dedo, íamos de noite, atirávamos a corda delgada primeiro e punha uma pedra na ponta e atirávamos para outro lado, víamos onde caía e prendia-se à corda mais grossa. Depois prendíamo-la no outro lado, um que soubesse nadar, mas no Inverno a água estava muito fria e não nos metíamos lá. Fazia-se uma laçada na ponta da corda, mas quando era para atirar a corda, puxávamos e a laçada desfazia-se e puxávamos a corda novamente”, conta.
Admite que tinha medo, mas tinha que “arriscar”. Se fosse apanhado já sabia o que acontecia. Ficava sem a carga, levava uma tareia e ainda tinha que pagar uma multa. “Nunca nos chegaram a apanhar e passei quilos e quilos de café e polvo. Uma vez passámos uma masseira, dessas para amassar o pão, usámo-la como um barco, com um pau fazia de remo, até chegarmos ao outro lado, passávamos de tudo”, disse.
Apesar de nunca ter sido
apanhado, esteve lá perto.
Numa das vezes que tentava levar lã, às costas, sentiu o verdadeiro significado da palavra traição. “Uma vez que vínhamos de Palaçoulo, eramos uns 14, havia um que estava ali connosco e queria-nos ajudar e disse um tal de Benjamim ‘não é preciso’ e o sem vergonha foi ao guarda denunciar-nos”, contou. Momentos depois só viu “uma luz muito clara e diziam ‘alto’, deram quatro ou cinco tiros e o que ia à frente atirou com a saca e nós também”. Começaram a fugir e desceram até ao rio, acabando por se safarem, já que os guardas-fiscais nunca desciam até lá. Perde-
ram tudo, mas conseguiram livrar-se.
Fez contrabando durante mais de vinte anos, mas não faz questão de voltar a reviver aqueles tempos. “Não tenho saudades, não gostaria de voltar a viver esses tempos, havia muito medo e muita fome e tratavam-me mal. Os guardas espanhóis eram piores que os portugueses. Com os portugueses cheguei a estar até dias seguidos e ofereciam um copo e tudo para beber, mas aqui em Espanha, por qualquer coisa prendiam”, referiu.
Xosé Pordomingo conhece bem os antigos contrabandistas do lado português. Um deles era Miguel Arribas, de Freixiosa, Miranda do Douro.
Também começou com 17 ou 18 anos e a justificação é clara. “Fui por causa da fome, da necessidade, para ganhar algum”, disse.
Reconhece que ganhavam muito dinheiro com o café e com o tecido. Mas o medo também tomava conta de si, principalmente quando corria risco. “Só de uma vez tira- ram-nos duas peças de pano e um rolo grande. Com medo meti-me a correr e eu ainda consegui levar uma peça de pano. Apanhei um barco pequeno depois meti-me por um caminho até lá em cima,
mas os guardas já vinham com outras peças que apa-nharam do rio e prenderam o meu irmão, mas eu vim para casa”, contou, salientando que “sempre” conseguiu fugir.
Fazia contrabando uma vez por semana, quando não era duas. Sabiam falar espanhol e combinavam com os contrabandistas do país vizinho, que os esperavam. “Usávamos seis caminhos para não serem sempre os mesmos e conseguir fugir aos guardas”, explicou.
Ainda assim, perdiam “muitas cargas”, mas não tinham alternativa senão continuar, tinham que “ganhar o pão”.
Tempos difíceis dos quais também não tem saudades. “Não voltava a esse tempo, andávamos sempre com medo e vínhamos muitas vezes para casa sem nada, porque nos tiravam o contrabando”, frisou.
Já do outro lado da moeda estava o pai de Abílio Barril. Foi guarda-fiscal e lembra-se bem dos tempos em que morava em Constatim e via o pai tirar o contrabando. “Via o contrabando, porque o meu pai muitas vezes tirava-o às pessoas e depois mandava-as a nossa casa buscar a fogaça. A vida era tão difícil, coitados”, recorda.
Mas salienta que par ao seu pai, enquanto guarda-fiscal, também não era fácil. “O meu pai para vir a Miranda do Douro chegou a ir a Movheros, em Espanha, comprar uma ou duas latas de escabeche e vir apresentá-las à secção a Miranda para depois poder ter uma folga e poder vir a casa”, contou.
O material tirado aos contrabandistas era depois leiloado na alfândega de Miranda do Douro.
Agora os caminhos que eram utilizados para o contrabando e que garantiam o sustento de muitas famílias estão já cobertos de mato, como se o tempo quisesse de alguma forma apagar a história.
 
 
Jornalista: 
Ângela Pais