Ser-se pianista em Bragança mas ter “mil formas” para vingar

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Qua, 21/04/2021 - 13:07


Estas terras, que Torga eternizou como o Reino Maravilhoso, são marcadas pelos cantos transmontanos, pelas sanfonas e gaitas-de-foles, pelos bombos, os tambores e as flautas. E é aqui, como em qualquer outra parte, que pode surgir qualquer algo diferente, fora da caixa. Nascido em Mirandela, Igor Ferreira, a viver há 12 anos em Bragança, traz-nos outra sonoridade: a força e a magia do piano. Com 36 anos, o músico, que trabalha na Riskivector, sediada no politécnico brigantino, acaba de apresentar o álbum Elíptica. São 12 músicas à espera da disponibilidade de qualquer um de nós. Temas para ouvir no Spotify e para nos ajudar a navegar na nossa própria alma. Fascinado pela época barroca, Igor é uma verdadeira viagem ao neoclássico e ao neoromântico. Admira Bach, Mozart e Beethoven, pelo que foram e fizeram. Quanto ao piano tem como mestres Chopin, o alemão Max Richter e o holandês Joep Beving.

Quando é que o interesse pela música surgiu?

Acho que o interesse pela música sempre esteve lá, mas quem realmente me encaminhou para este mundo, para esta vida, foi o meu pai, foi ele que me inscreveu nas aulas particulares de piano do professor Neto.

 

Durante o seu percurso escolar estudou música e formou-se em violino, mas a primeira paixão foi o piano?

O violino é o meu menino, o meu braço esquerdo. Se eu não o amava é porque não o conhecia. É o instrumento em que tenho mais formação e mais facilidade em ser eu e fazer dele um apêndice de mim. Em relação ao piano, é “o” instrumento. Nunca parei de tocar, só não segui formação.

 

E vive apenas da música neste momento?

Eu não vivo da música, ponto.

 

Era um sonho viver dela?

Tento tocar em todo o lado, em tudo que aparece, mas existe muito aquele estigma do ‘então que fazes da vida?’. Quando respondo que sou músico perguntam ‘mas trabalhas em quê?’. Não se pergunta a um médico se é um sonho viver da medicina... a nós perguntam recorrentemente se é um sonho viver da música sendo músicos. Mas bem, eu tenho um trabalho e as pessoas que trabalham dão-me a liberdade toda para me poder focar naquilo que realmente sou.

 

E projectos, em que é que já esteve envolvido?

A primeira banda que tive foi a convite do Miguel, de Mirandela, um grande amigo. Devia ter uns 12 anos. A banda precisava de um teclista e eles sabiam que eu tinha teclado. Era black metal e a verdade é que eu sempre fui muito ligado à distorção, à palavra, à forma e aos gritos. Curiosamente foi uma das coisas que me virou o cérebro para a música erudita já que as progressões harmónicas do black sinfónico são realmente isso, muito eruditas. A partir daí tive muitos projectos. Já passei pelo raggae, rap, metal, “pimba”, fui violinista dos Lacre, o projecto que conseguimos levar mais longe, que infelizmente já acabou. Depois desse projecto decidi começar a focar-me na minha música. É difícil para um músico decidir isto. É preciso maturidade para perceber quem sou e que estilo de música vou fazer, mas nem foi preciso pensar muito. O piano é o piano. E eu sou eu. Não dá para fugir muito de quem somos.

 

É um caminho solitário?

É. Se isso é mau? Não. Não há chatices. Chateio-me comigo muitas vezes mas tenho uma relação muito especial com a minha música e a forma como a faço. É tudo muito natural.

 

E que projectos já apresentou?

Sempre fiz as minhas coisas sozinho, mesmo quando pertencia aos Lacre. Em relação a este projecto a solo... estamos sempre a comparar-nos com os grandes e a pensar que não somos nada. Quanto mais se estuda mais se apercebe que o caminho é muito comprido. Mas bem, há cerca de um ano lancei uma página de YouTube. Nunca o tinha feito. Pensei que não tinha nada a perder e fui lançando músicas. Este ano meti na cabeça que ia lançar aquilo como um álbum. Basicamente é uma colectânea de 12 músicas que fiz até aqui.

 

O disco chama-se Elíptica, porquê?

Elíptica é a relação. Todas as músicas do álbum têm uma história, significam algo e foram escritas com um propósito. O nome do álbum significa até mesmo a relação que temos connosco próprios, às vezes estarmos melhor, às vezes pior.

 

Em que se inspira?

Há uns dias um grande amigo meu disse-me que o álbum, do início ao fim, parecia uma história e eu disse que sim, que era. Pediu-me para lhe a contar e eu disse que não, porque era minha. A música tem muito esse poder: ser interpretada da forma que bem se quiser. 

 

Como é que tem vivido este período de pandemia?

Tenho tido mais tempo para mim, para o piano, para as minhas coisas. O resto, nomeadamente concertos, foi suspenso.

 

Mas ajudou a criar?

Acho que foi a única coisa de positivo que trouxe, pelo menos a pessoas como eu, que gostam de estar sozinhas. A pandemia veio dar- -me algum tempo porque agora eu vou para casa e fico. Antes tinha que ir ensaiar com aquele projecto e com o outro, fazer um casamento de manhã, um baptizado à tarde, uma festa à noite... enfim. A pandemia veio ajudar- -me a lançar o álbum.

 

Gostava de levar este trabalho para a rua com concertos?

Gostava e estou preparado. Mas nestes moldes penso que não. O álbum é composto, maioritariamente, por peças para piano solo e não acredito que me sentisse confortável em partilhar só isso. Mas coisas novas estão a acontecer, já tenho o próximo EP preparado. Num futuro próximo preparo um concerto.

 

Os transmontanos estão preparados para a música erudita? O país valoriza-a?

Trás-os-Montes é Trás- -os-Montes. Aqui há pessoas que não têm nem menos nem mais cultura. É o gosto musical que estas pessoas têm. Tenho o máximo orgulho nas minhas gentes, do que sou, de onde nasci. Eu gosto de pensar “eu escolhi Bragança, não foi Bragança que me escolheu a mim”. Estamos no século XXI, não há desculpas. Tentar arranjar culpados porque não conseguimos atingir objectivos é ridículo. Há mil formas de atingir o que queremos. Hoje em dia temos o YouTube, o Spotify, um milhão de redes sociais e um milhão de serviços de streaming que são o futuro.

 

Tem gente mais próxima que o ajuda e inspira?

Sim. O João Balouta de Vila Real. É um músico excepcional e um ser humano ainda maior. É compositor pianista, neo-clássico, crossover também, conheci- -o porque veio tocar ao teatro de Bragança. Achei interessante o facto de ele estar a fazer algo com que eu me identificava. Procurei-o e foi assim que começamos a falar e a criar algo. Ele está muito bem lançado e tem-me ajudado imenso.

 

 

Jornalista: 
Carina Alves