Avó Julita

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Boas tardes. Escrevi antes sobre uma tia, agora a avó. Talvez esta época estival me tenha dado para falar um pouco das coisas que me ligam ao nordeste. Sinto- -me um pouco aqui o vizinho Sr. Armando Fernandes - todos temos já um pouco de Lagarelhos dentro de nós - embora com menos vivências para a colecção e muito menos engenho para a descrição. Sou de outra geração que conheceu as aldeias já muito quietinhas, talvez excepto em Agosto, com antenas parabólicas, carros para ir ao café e voltar, e muito menos bosta de vaca espalhadas pelas ruas. Mas ainda me lembro de se apagarem as luzes à meia- -noite, medida que contribuía para a poupança de energia e para menor libertação de dióxido de carbono. Paradoxos dos tempos, hoje demasiado falamos, mas em algumas coisas nem tanto fazemos. A minha avó, Tia Julita, de nome Julieta, educou uma dezena de filhos sem saber ler nem escrever, dos quais dois não passaram além do Bojador que era superar o cabo das tormentas de recém- -nascer no Nordeste em meados do século passado. Mas adiante que minha avó sempre esteve para além da dor, inclusive no finalzinho quando os médicos a quem raramente precisou de recorrer lhe diziam para se manter sossegada por causa do coração teimoso que a empurrava todos os dias para passeios no termo ou mais que não fosse para arranjar algo com que enzonar na faceira junto de casa. Quando muito esporadicamente se via enjaulada nos apartamentos dos filhos não durava lá mais de três dias. Eu já conheci a tia Julita como avó de algumas décadas, toda vestida de preto, às vezes uns azuis escuros ou castanhos se o dia era festivo. A mim por vezes chamava-me “criatura” irritada por eu deitar as cerillas para as brasas da lareira e gostar de as ver a pegar fogo, esgotando-lhe as caixas. Quando eu aparecia sem aviso pela hora de jantar preparava-me em modo fast-food uma tomatada de comer e se pelar por mais que ninguém mais nunca soube reproduzir. Sopas de fideu, o pote e a travessa cheios sempre em íntima e fumegante parceria, uma mosqueira na cozinha, uma caldeira no lume sempre pronta a laborar com a ajuda da qual em tempos fazia sabão, um escano de costas largas, um banco comprido e meio tosco do qual se dizia ser o melhor para endireitar as costas, no Inverno o porco, o cheiro a tripas cozidas que eu abria para ela encher com a massa das alheiras, o fumeiro acabado de colgar a pingar no xisto, chavianos doces com um toque de mel, sempre uma fogaça no centro da mesa coberta por um pano, uma gata que entrava e saía pelo sobrado mas que nunca se deixava apanhar, manteiga e uma espécie de tuli-creme espanhol que vinha nuns copos de vidro guardados para os netos numa gaveta, raios de sol que furavam as telhas e fogo-cruzavam a cozinha, uma máquina de costura Singer, esquecido no canto de um quarto uma espécie de lavatório portável, debaixo da cama um penico de loiça, na cabeceira um grande álbum de fotografias de paradeiro actualmente desconhecido, em baixo uma porta com postigo às vezes aberto, um pátio com caldeiretas e melancias ou melões nas tardes de Verão, um pequeno lagar onde repousava lenha e uma despensa funda e cavernosa com ferramentas de trabalho e grandes bocados de carne de porco em salga numa casa em que, não sendo nada pequena para as casas daquele tempo, se acomodava muito mais gente do que cabe em qualquer casa de hoje em dia. Tudo isto nunca mais vi, senti ou comi desde que a minha avó partiu de um gole sem incomodar, como sempre, a porta de sua casa se fechou e as coisas por lá devem estar a aguardar e a envelhecer tal como eu me lembro delas. Antes dos tempos em que eu a conheci, diz que trabalhou sempre muito em casa e fora dela, às vezes fazendo pausas para parir e voltar ao trabalho se os dias eram de segada, deu abrigo aos fugidos da guerra civil espanhola que traziam medo, fome e piolhos, passou muitas noites adentro no contrabando para sustento da família e dizia que nessas clandestinas mercancias era alvo da cobiça de muitos espanhóis. Passava corda, camisas, tecido, sabão, café acho que não. Célebre no contrabando, reza a lenda que não foi apanhada uma única vez sequer, provavelmente graças aos responsos que a Tia Aurora lançava, sua vizinha, amiga e maior companheira no fintar nocturno de guardas e carabineiros, sendo que os responsos eram quem davam ou negavam autorização de partida pois se a água e os azeites lhe fizessem má cara nessa noite desse por onde desse já não saíam. Creio que a minha avó teve um coração muito bom para os filhos, principalmente quando os ajudava a lidar com as indisposições do meu avô, e para os netos ainda mais, nas férias grandes conseguia ter sempre uma nota de 20 euros para cada um, de tal maneira que eu me metia com um primo meu dizendo- -lhe que só ia visitar a avó Julita para receber a notica. Não havia pela aldeia quem não lhe quisesse bem, nas noites de Verão gostava de se juntar à conversa com a vizinhança da Rua de Baixo a conversar, às vezes com o desbulhar das feijoeiras como digestivo. Possuía a sabedoria que os livros não mostram, por isso ainda guardo algumas suas palavras sábias apenas ao alcance de quem tem as lições da vida bem sabidas e vividas de trás para a frente. Ela partiu num dia e no mesmo dia, exactamente dez redondos anos depois, nasceu a minha filha, para mim é um sinal, uma bênção, o que lhe queiram chamar. Para mim a Avó Julita é uma nuvem muito branca num fundo de céu azul claro como os seus olhos que anda por aí a olhar pelos filhos, netos, bisnetos, pelos que andam nos campos, contrabandistas e todos os que vierem por bem. Porque ela parada não fica. Saúde! Um abraço!

Manuel Pires