Comportamento grupal (Factos, Notas e Paradoxos)

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A propósito de um telefonema recente do meu cunhado João, para ir lá a casa ver o jogo do Glorioso no estádio do Fenerbahçe, lembrei-me de um outro convite que me fez há largos meses para ir com ele ver, ao vivo um (quase) decisivo Sporting-Benfica, no estádio de Alvalade partilhando comigo um dos dois bilhetes que lhe tinham oferecido. Não sou frequentador de estádios de futebol, mas, nem sempre nem nunca, aceitei o repto, pedi emprestado um cachecol do SLB à minha filha e lá fomos até ao Campo Grande. Estacionámos na Alameda Universitária e, desconhecedor destes ambientes que, erradamente, supus serem tal e qual como nos são apresentados nas reportagens televisivas, cometi a imprudência de, atrevidamente, me aproximar do estádio com o identificador clubista à volta do pescoço. Estava certo que o propalado e celebrado fair-play se sobreporia ao fervor aficionado, julgando que a diferença de preferência, podendo ser olhada com desconfiança ou até mesmo desagrado, não deixaria de ser tolerada. Erro meu. Em três tempos os olhares de soslaio acentuaram-se e sem ter tempo de emendar a mão fui violentamente puxado pela parte posterior da tira de pano encarnada que quase me sufocou. Em tom ameaçador fui “aconselhado” a retirar a identificação. Não me fiz rogado e tratei de a retirar e escondê-la completamente no bolso interior do casaco, perante o olhar reprovador de um casal que, com dois filhos pequenos, faziam o mesmo percurso que nós, completamente “equipados” de verde e branco. Por oposição à forma como me censuravam, trocaram um gesto de cumplicidade com o arruaceiro que me ameaçara.

A porta de entrada no recinto que nos coube usar era a mesma que milhares de sportinguistas, não se vendo por ali, pelo menos de forma identificável, nenhum adepto ou simpatizante do adversário do outro lado da Segunda Circular. Havia várias manifestações clubistas naturais mas nada que se assemelhasse à sobranceria de alguns metros atrás. Contudo não conseguia já sentir-me seguro dando comigo, várias vezes, a confirmar que tinha o distintivo têxtil, devidamente guardado. Estava ansioso por entrar mas, não sabendo logo, percebi depois, a entrada estava bloqueada porque tinham feito um cordão de segurança com várias barreiras metálicas para permitir que a claque benfiquista que chegava, fortemente guardada e em ruidosa provocação, pudesse entrar sem qualquer tipo de contacto com os adeptos verde e brancos. Foi então que verificámos que havia, entre nós, mais adeptos do clube da Luz pois que se dirigiram ao polícia de guarda, pedindo para galgarem o espaço vazio, manifestando a sua preferência. Resolvemos fazer o mesmo, já que a demora na entrada nos iria, seguramente, privar do início do jogo. E foi assim que, pela primeira vez e, certamente, pela última, me vi no meio de uma claque de futebol do clube da minha simpatia. Felizmente os lugares correspondentes afastaram-nos da horda ululante e o resto pouco interessa para a história. Diga-se que o Benfica, tendo estado a perder acabou por empatar e nesse ano foi campeão. Mas isso é, para o caso que aqui trago, irrelevante. Em nada acrescenta ou diminui ao que pretendo analisar.

O que me espanta e disso quero dar conta é esta perplexidade: como posso eu ter-me sentido mais seguro e tranquilo junto de um bando de arruaceiros, provocadores e malandros (para não exagerar nos epítetos) do que junto de gente cordata e cumpridora da lei, só porque partilhava com aqueles, por oposição a estes, a mesma preferência desportiva? Igualmente, do outro lado, que razão poderei invocar para me sentir reprovado e renegado por um casal que, sem outros dados, tudo haveria neles que se identificassem mais comigo do que com o energúmeno que me provocou, para lá de um indicador clubista? Fossem outras as circunstâncias e as atitudes, em qualquer dos casos, seriam certamente diferentes; seriam inquestionavelmente opostas.

A natureza gregária e corporativa que geneticamente nos marca e define leva-nos a olhar com benevolência os nossos, e com intolerância os do grupo rival. A facilidade com que desculpamos ou, pelo menos damos o benefício da dúvida, às atitudes e atos reprováveis do político do nosso partido, contrasta, com frequência, com a intransigência com que exigimos a condenação ou, no mínimo, a retratação de atitudes, quantas vezes bem menos graves, do dirigente do partido, que não colhe a nossa simpatia.

José Mário Leite