Cronicando - OS IMPRESCÍNDIVEIS

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Não sei se há diferença entre “indispensáveis” e “imprescindíveis”. Na esfera capitalista é provável que "dispensável" e “indispensável” sejam usados quando os patrões se reúnem para decidir quem são os que vão embora ou os que vão manter, por mais algum tempo, enquanto os sugam até ao tutano. Já o “imprescindível” será a única palavra que as elites devem usar quando se referem aos seus. Do “imprescindível” ao “tachinho” a distância é mínima por esses lados, porque o primeiro protege o segundo e o segundo alimenta o primeiro.
As previsões para dois mil e dezassete, segundo os astrólogos mais conceituados na praça, será um ano de virar de página, no qual a revisão de valores adquiridos ou o trabalho em grupo irão orientar os nativos de diversos signos. Os mais especialistas e, sobretudo, os que sondam os astros em busca da conjuntura nacional ou do que virá em seguida, não revelam ao comum dos mortais o que por aí vem. Quer parecer-me que o motivo por que tal continua no segredo dos deuses, é única e simplesmente porque não é segredo. Em termos sociais, as mudanças de ciclo demoram mais tempo; até mesmo quando acontecem fenómenos como as revoluções, eles acontecem após um processo lento e gradativo em que as massas, lenta mas progressivamente, tomam consciência de que é necessário mudar, e, de uma vez por todas, afastar dos centros de decisão os “imprescindíveis” que, naquele exato momento, só já o são para si e para o pequeno grupo que os sustenta.
Sem previsões, nem consultas de búzios ou tarot, é deveras fácil prever que muitos “imprescindíveis” vão saltar para as páginas dos jornais e outros vão querer aparecer nem que para tal tenham de abrir os cordões à bolsa ou se pague com outros “tachinhos” aumentando o círculo e corrompendo a sociedade. Em ano de eleições, e ainda por cima, autárquicas já começam as movimentações no burgo, mais que não seja para os indispensáveis mostrarem ao lado de que imprescindível se posicionam. Não é por acaso que a linguagem jornalística integrou o conceito de “contar armas” como se de um conflito bélico se tratasse: Já há quem esteja a fazer o inventário e, de facto, quem detém o poder tende a encontrar formas de se perpetuar, seja pela manutenção no cargo, pela obra feita com a respetiva placa evocativa, ou ainda pela indicação do sucessor. Em todas as situações tem de se saber com quem se pode contar.
Faz parte da natureza humana que assim seja. A ciência política tem estudado estas e outras movimentações e, ao contrário do esperável, cada vez mais as palavras se mostram acutilantes, as posições extremam-se e as massas tendem a seguir quem apresenta um discurso disruptivo com o discurso oficial. Esta tendência longe de fazer emergir verdadeiros líderes, tende a legitimar personalidades nonsense. No entanto, os tópicos são sempre os mesmos. Deixou-se de falar de pessoas e infraestruturas que o cidadão entendia e passou a falar-se de milhões e projetos que, mesmo que sejam apresentados como fundamentais para a melhoria da qualidade de vida, nada significam para quem está habituado a ter apenas umas dezenas e se preocupa com o básico do dia-a-dia.
Em termos pessoais, não sou contra a lei que obriga os “imprescindíveis” a abandonar as lideranças autárquicas após três mandatos, embora aceitasse que um desses me governasse por muito e longos anos, desde que melhorasse as condições de vida dos munícipes, defendesse os seus interesses e não se deixasse enredar nas armadilhas da vida política: nos favorzinhos, nos lugarzinhos na corrupçãozinha. Já me custa mais a aceitar que um “dispensável” se considere “imprescindível” seja por que motivo for, e vá criando o seu pequeno exército que a breve trecho o transformará num ditadorzinho da pior espécie. Com as devidas distâncias, veio-me à memória um poema de Guerra Junqueiro: “Como se Faz um Monstro.” Mas, para além do mais, quem pretenda desempenhar cargos de natureza política deve, acima de tudo, ter como referência e valor supremo a dignidade da pessoa, seja quando pensa em si ou olha para os outros. Tudo o resto é efémero e o tempo apaga.

Raúl Gomes