Desejos de primavera

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Chegou desta vez no meio da chuva a que anuncia a epifania das cores; amarelas em primeiro lugar nas flores de forsítia, os pompons da mimosa e a trompete dos narcisos. Há já alguns dias, a primavera pinta de cor- -de-rosa as bochechas envergonhadas dos transeuntes. Agudiza o grito das crianças, assim como o passo mais largo dos que passeiam e acalma o passo dos namorados. A primavera, finalmente! A primavera, como uma embriaguez. Este ano mais do que nunca, sentimos subir em nós a jovem seiva, pretendemos ficar aturdidos. Eis-nos objetos consentidores duma metamorfose que toca tudo o que vive, tudo o que cresce, tudo o que vibra. A primavera, deleita-nos vê-la em ação, no poder arrebatador das tonalidades verdes por todo o lado em fusão, e a explosão vegetal dos rebentos. Respira- -se o seu perfume de violeta. Ouve-se no bico dourado dos melros, e no canto de tantos passarinhos irrequietos e velozes. A brisa larga da primavera arremanga-nos a alma. A transparência dos céus de abril dá- -nos uma leveza, parecidos às bolas de praia. Eis-nos ligados a uma realidade mais alta – o renascimento para o qual nos sentimos todos convidados, e ao qual condescendemos todos a partir dum novo fôlego. É que tudo se torna noutra coisa que aquilo é – uma promessa, uma subida, um regenerar completo. A primavera lembra-nos que a beleza da vida renascente duplica-se sempre de outra beleza, a que cria o jogo profundo das correspondências com a natureza, com toda a criação. Sente-se mais profundamente a oposição entre a noite e o dia, a relva e o gelo, as brumas e o sol, a vida e a morte. Ah, a primavera! Quanta felicidade na sua celebração por fim, deixar-se intoxicar pelo seu vigor. A primavera, esperamo-la contagiante. Pedimos para que dê aos que partiram para o combate em guerras absurdas o desejo bem mais vivo de se alegrar perante a vida que lhes foi concedida. Sonhamos que toque, pela sua juventude, tão tenra, dos soldados russos e que abandonem então, como quem deixa os sapatos à beira mar, as armas, os uniformes, que desobedeçam às ordens que recebem. Que a primavera lhes traga com a sua brisa leve algo da sua força, que perturbe os suspiros das namoradas tão longe no seu país. Que os contamine com a doçura dos sonhos, com as agitações da longa espera e do fogo do desejo de serem livres e felizes. Alguns de entre eles, pretende-se que já teriam sido atingidos, que se demarcaram da solidariedade com Putine. Apelam ao fim da guerra. Segundo um responsável da defesa, dois ou três batalhões “ teriam deliberadamente furado” os reservatórios dos veículos para evitar ir combater. Outros teriam sabotado os tanques. Outros teriam fugido das suas unidades para não disparar contra as melícias, prontas a defender até à morte a proximidade das maiores cidades da Ucrânia. Satisfaz-me dizer que no ressurgimento da primavera, na carícia dos seus mornos raios de sol, perante o trigo em erva ainda, outros soldados serão tentados a desertar e correr para a vida. Penso para mim próprio que foi por esta razão – convencer os soldados de que a primavera só pode ser a estação em que tudo é amor – que se apresentou este ano um dia mais cedo. O equinócio não aconteceu dia 21 de março como o anunciam os nossos calendários, mas sim dia 20 de março, às 16 h 33 exatamente. Foi nesse dia, a essa hora precisa, que o Sol se alinhou com o equador, com a perfeição que exige o equinócio. Mas porquê este desvio no calendário? A Terra gira à volta do Sol como um aro colorido à volta da cintura duma menina. E como acontece com o aro, a Terra escorrega por vezes um pouco mais e desvia-se da elipse perfeita do seu eixo. Estas fantasias giratórias perturbam as estações. “Temos de nos habituar. O fenómeno deverá durar muito tempo; a próxima vez que a primavera cairá dia 21de março, será em 2102, e tendo sido inventados os anos bissextos para corrigir estas diferenças horárias astronómicas, estes não poderão fazer nada”, dizem os astrónomos. 2102 ! Dentro de noventa anos! Terão ouvido bem os soldados que vivem e lutam hoje, a injunção de Vladimir Jankélévitch : « Não percais a vossa única manhã de primavera”.

Adriano Valadar