Haja ventura

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Escrever para um jornal é ter a dita de partilhar pontos de vista sem outra pretensão que não seja o questionamento da realidade, pese embora se esteja sujeito ao escrutínio público e ao respeito pelos valores da liberdade de expressão por parte de quem nos lê. Por este facto, e tendo já ultrapassado em larga medida a meia centena de textos publicados neste jornal, aproveito este parágrafo para demonstrar o meu reconhecimento, à gerência do NORDESTE, ao seu diretor e aos leitores que me leem, sobretudo, aos que manifestam o seu ponto de vista da forma que mais lhe apraz. Nos dias que correm, que mais poderiam ser chamados dias do avesso, qualquer cidadão se confronta com a necessidade de fazer opções na sua economia diária já que o orçamento familiar tem de ser gerido de acordo com os objetivos e as finalidades que se pretende atingir. No entender de quem não é economista, o mesmo princípio deveria ser aplicado à gestão da coisa pública, sendo que, sistematicamente, se verifica o contrário, dando a impressão de que o Estado passou a ser governado por privados que, em tempo de vacas gordas o hostilizam e em época de vacas magras se agarram obstinadamente às protuberâncias que os alimentam. Está a ser assim com o Novo Banco, já o foi em 2008 com o BPN e já se prepara um novo sorvedouro de fundos públicos com o apoio à TAP. Neste caso, penso que a opinião pública deveria ser esclarecida sobre as razões que levam o executivo a querer manter uma companhia de bandeira que não deu lucros enquanto estatal e continuou a dar prejuízo quando privatizada. Dos especialistas já se ouviram comentários que apontam para a necessidade de haver uma companhia área nacional porque deste modo se podem definir as rotas que estão em linha com os interesses estratégicos do país. Até a necessidade de salvar postos de trabalho diretos já foi referida. Independentemente dos motivos evocados, nas últimas décadas somos confrontados com a necessidade de capitalizar empresas e bancos, colocando sobre o estado uma pressão financeira que não lhe permite continuar a suprimir as necessidades efetivas não de um sector mas de uma nação. Se se considerar que um estado democrático tem o dever de zelar pelo bem-estar de todos em áreas fundamentais como a saúde e a educação não vai ser possível dar resposta aos desafios quando se observam desvios de fundo para áreas que não sendo fundamentais passaram a ser consideradas essenciais, sabe-se lá porquê. Nesta conjuntura onde o cidadão comum está longe de entender os critérios que ditam determinadas opções que de pontuais se tornam sistemáticas, é compreensível que cinco cidadãos, dois deles ex-candidatos à presidência da República e um presidente da Associação Transparência e Integridade, tenham endereçado uma carta ao presidente da Assembleia da República no sentido de se analisarem os conflitos de interesse que subjazem ao exercício do cargo de deputado. De acordo com a missiva, quem consultar o site do parlamento, constata que o conflito de interesses real, potencial ou, pelo menos, aparente é uma realidade tanto nesta como em outras legislaturas. Os subscritores elencam uma série de exemplos, concluindo que na dupla condição de deputados e empresários, os parlamentares não só têm acesso a informação privilegiada, como estão em condições de condicionar a legislação em função de interesses pessoais. Ora, a não satisfação das necessidades básicas da população por falta de liquidez conduz, inevitavelmente, ao aumento de impostos até ao limite das possibilidades. A exploração mediática destas situações pouco claras, por sectores mais radicais, abre caminho ao populismo e à emergência de lideranças que se apresentam acima de qualquer suspeita. Por isso não é de estranhar que o partido liderado por André Ventura tenha atingido os índices de popularidade já que nas suas medidas parece querer combater aqui que para outros são apenas males da democracia. Seria de todo conveniente que este partido com assento parlamentar conseguisse implementar uma das medidas que propõe: “a obrigatoriedade da exclusividade no exercício do mandato de deputado.” Contudo, tal como no PAN que combatia os recibos verdes quando também ele tinha funcionários nessas condições, também o CHEGA tem uma liderança que integra a Comissão de Orçamento e Finanças e, ao mesmo tempo, trabalha para a consultora Finparten, subsidiária de um grupo da área do planeamento fiscal – que, segundo Paulo Batalha, aos microfones da TSF se dedica a ensinar aos seus clientes como fugir do radar das finanças. Face ao exposto, e vendo os caminhos da nossa democracia, resta exclamar: “Haja ventura!”.

Raúl Gomes