Os corpos deste verão

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O corpo no verão exibe-se ao longo das praias ensolaradas. Mas procura também esconder-se atrás dos véus. O que diz o corpo da nossa comunidade humana?
Neste verão já longo, assistimos por todo o lado à exposição máxima das carnes. Não só nas publicidades, na imprensa em geral, mas também na rua. São exibidas para fazer vender, expostas para se dar a ver. Sejam bonitas ou feias – falando das corporalidades dos homens assim como das mulheres – estas submetem-se a determinados padrões, à moda impostFa. Ao ponto de agastar por vezes o olhar mais avisado. 
A esta exposição vem estribar-se para algumas mulheres a reivindicação de não se expor. De enfrentar o olhar dos outros protegendo-se através do que se chama, nos atalhos da imprensa, o burkini. Recusa de exposição para poder acompanhar os filhos à piscina, ou exposição das carnes cobertas para acompanhar uma exigência de reconhecimento? Os corpos mostram-se ou escondem-se, mostram-se para reivindicar uma liberdade, escondem-se para manifestar uma liberdade. 
Mas outros corpos, nestes últimos dias foram dados a ver. Corpos meio cobertos e no entanto expostos; os de Óscar Ramírez e da filha, afogados no Rio Grande, na fronteira entre o México e os Estados Unidos. 
 Corpos fotografados, dados a ver, que aparecem como o símbolo de outros corpos que nós não veremos nunca; cadáveres nos desertos do Novo México, os afogados no Mediterrâneo, os torturados nos campos da Líbia, os esfomeados do Sudão, ou os detidos nos gulags chineses.  
Carnes, corpos, densidade e fragilidade dos tecidos e dos ossos, aparição única de cada pele, mistério combinado dos órgãos … É a nossa humanidade que se expõe e se esconde. Na Bíblia, pode apresentar-se na sua inocente nudez ou esconder-se na vergonha (Génesis), exaltar a graça e a fruição que oferece cada membro (Cântico dos cânticos), exibir o poder do desejo (David e Bate-Seba). Carnes e corpos podem ser também submetidos à sede, à fome, à execução sumária, individual ou massiva. 
Mas, essencialmente, é na carne que se dá a conhecer o Deus dos cristãos. A incarnação duma divindade ou reconhecimento duma humanidade verdadeira, divina, na pessoa de Jesus de Nazaré, a carne é radicalmente colocada no centro das atenções no cristianismo. No centro das atenções ou pelo menos reconhecido como o único lugar de encontro possível com a transcendência, porque “ nunca ninguém viu Deus” (João 1, 18). No entanto não sabemos nada do corpo de Jesus. Nenhum tipo de exposição daquilo que o caracterizava, nenhuma marca tampouco que ele tenha querido esconder.  
Se está exposto, é como um corpo esquartejado na cruz. E se está escondido, é enquanto corpo ressuscitado. Irrecuperável como corpo crucificado, demasiado escandaloso para um Deus. Irrecuperável enquanto corpo ressuscitado, demasiado ausente para constituir uma prova de Deus a ser administrada aos não-crentes. Mas não é por isso que o cristianismo é um inimigo dos corpos, como nos foi apresentado durante muito tempo.   
Hoje ainda, o discurso dominante afirma que seria uma religião onde se subjuga o corpo, onde se esquece a corporalidade. 
Com efeito, o que convém trabalhar é o nosso modo de tomar parte na “luta dos corpos” nos nossos dias. 
Nem sublimar nem negligenciar o corpo: reconhecer que é fonte de alegria, de prazer, de vergonha e de sofrimento, reconhecer que o mesmo tem o direito de se esconder e de se expor, sem quaisquer constrangimentos de alguma espécie que não seja a dignidade daquele ou daquela que olha.
Reconhecer por fim que o escândalo maior é o dos corpos martirizados, crucificados, que convém cuidar e tratar. E, talvez, ressuscitar.

Adriano Valadar