PUB.

PERPLEXIDADES

PUB.

Perante mais um bárbaro ataque terrorista, desta feita em Nice, são, tal como a muitos dos comuns cidadãos, várias as interrogações, angústias e sentimentos que me assolam. Alguns deles parecem-me normais, outros inquietam-me havendo ainda os que me deixam perplexo.
Há, desde logo, a paradoxal lógica do terror. Os seus atores, mais do que os seus mentores são, na maioria dos casos, pessoas com alguma “normalidade” de vida, gente que convive connosco e que connosco partilha, desde há muito, um modo de vida e uma coabitação, em muitos casos procurada e aceite livremente. Que facto, que acontecimento, que revelação fez alterar este estado de espírito? Que epifania, que movimento, que ato comum de uma sociedade pacífica e tolerante (como aquela a que pertencem a esmagadora maioria das vítimas) fez despertar tal revolta, tanto ódio, tamanha indignação?
Há, depois, a comoção, a angústia, a solidariedade explosiva que alguns destes miseráveis atos provocam. Uns, muito mais que outros. Há sempre quem questione (e eu sinto-me questionado, tal como questionados se sentem, estou certo, os leitores) por que razão se levanta tamanha onda de protestos perante este acontecimento dramático e outros idênticos ou piores, passam na imprensa e na consciência comum, com simples notas de rodapé. É certo que em Nice morreram pessoas inocentes, famílias inteiras, muitas crianças, numa palavra, pessoas comuns cujo único “erro” foi estarem a festejar uma data assinalável. Mas foram crianças e famílias e inocentes, em número que em nada é inferior, os que morreram, recentemente, em Bagdad, quando festejavam, não a data do início da revolução francesa, mas o final do mês do Ramadão! Com maior destaque é certo, mas longe da “importância” do ataque a Zaventem em Bruxelas foi ataque idêntico no aeroporto turco de Ataturk em Istambul. Não é possível descobrir nenhuma razão lógica e racional, mas antes uma “normalidade” emocional que todos sentimos e acatamos sem questionar. É assim, porque é assim que o sentimos. Uma bomba de carnaval que me rebente debaixo dos pés assusta-me a desperta todo o meu sistema inato de defesa, em grau muitíssimo superior ao de uma explosão de forte carga de dinamite a alguns quilómetros de distância. É esta proximidade que modela a intensidade da nossa perceção. Proximidade mais emocional que física. Em Paris, Bruxelas ou Nice, qualquer um de nós poderia, facilmente ser uma das vítimas. Em Instambul, em menor grau também. Em Bagdad dificilmente! E é por isso que é assim e é por isso que assim o entendemos.
O que não se entende, o que custa a justificar, o que nos deixa perplexos são as inúmeras gravações de telemóveis que aparecem, em número vário e frequente, dos diferentes cenários destes terríveis dramas. Quem é que, perante tamanha desgraça, a primeira coisa que lhe vem à cabeça é puxar do telemóvel e começar a gravar o que está a acontecer? E que perante a angústia dilacerante de tantos, perante o pânico generalizado, perante o massacre e o terror, nada mais fazem que gravar a ocorrência para sabe-se lá o quê? Eu até posso conceder que algumas dessas gravações possam ter alguma utilidade, para a polícia, para os investigadores, para os média. Terão. O que não consigo entender é como é que perante a barbárie, perante a agonia, perante o desespero alguém possa sequer pensar em gravar o acontecimento.
Não sei se, em vez disso, algo poderia ser feito de ajuda às vítimas ou de ataque aos agressores. Mas sei que não é, seguramente, natural e inato, fazer uma filmagem perante a agonia e o tormento de tantos.

Por José Mário Leite