A RUGA NA TESTA

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Parece cena de filme: sábado de manhã. Desço as escadas do prédio, chego à rua e, quase como se estivesse à minha espera, uma amiga de longa data, entre o rotineiro cumprimento e a cumplicidade da amizade, desabafa: “-Descobri que tenho rugas na testa…”. O inusitado da situação e o lento despertar da manhã, levam-me a esboçar um sorriso que amareleceu quando descubro uma lágrima grossa e fria a precipitar-se-lhe pela face. Também me apercebi que aquela amiga tem a capacidade de chorar apenas de um olho… ou nunca terei reparado nisso. Na tentativa de aliviar a tensão, disparei: “-Deixa lá, podes dar-te por feliz porque só agora começam a aparecer…”. Sem me deixar acabar a frase, explode: “- Não é isso! É que me apercebi que tenho rugas quando vi uma fotografia que tirei há quatro anos!”
Sem propósito nenhum, ou pelo menos, relação alguma, também eu fico com rugas, quando um antigo alto comissário da ONU, convidado a participar nas jornadas do PSD que decorreram em Santarém, afirmou que o mundo perdeu a capacidade de prevenir e resolver conflitos. De facto, António Guterres constata aquilo de que qualquer cidadão se apercebe: a falência dos modelos, sejam eles económicos ou sociais, e o aparecimento repentino de novas conjunturas para as quais ninguém está preparado, pese embora se tenham verificado melhorias significativas nos métodos de análise e, cada vez mais, existam organizações dedicadas a estudos de mercado e afins. Se é esta a realidade, o que falha então, partindo do pressuposto de que a afirmação de Guterres é válida? Uma das causas poderá ser o próprio método de análise. A partir do século dezoito, só tem validade o que pode ser mensurado e legitimado pela força dos números. Esta ditadura é tão ou mais perniciosa quando, até para aferir pontos de vista e opiniões se recorre aos métodos estatísticos. Não deixa de ser curioso que, ainda recentemente, um grupo de trabalho que coordenado, tenha aplicado um questionário sobre a percepção relativamente a uma determinada realidade e os resultados foram excelentes. Quando se cruzaram estes dados com o que foi captado em entrevista, e onde os entrevistados eram os mesmos da amostra do questionário, os dados foram contraditórios. As metodologias estavam validadas, o que se altera é a percepção face aos instrumentos de recolha.
O mundo atual, e sobretudo os líderes mundiais, vivem um momento em que estão tão concentrados na procura de respostas para os problemas atuais que se esquecem de que uma das suas missões é preparar o futuro. Seria bom que alguém recordasse, a todos quantos têm funções políticas, as máximas e os pensamentos do nosso povo até aos anos setenta do século passado. A gente das nossas terras, quando conseguia ter algum dinheiro punha de parte uma quantia, para o futuro. E este futuro tanto podia ser pagar a um médico, comprar mais uma terra ou os estudos dos filhos. Havia esta preocupação e, por isso, não raras vezes, chegava-se ao fim da vida e só aí e que os herdeiros descobriam o monte das notas ou o pote de barro com os fios de ouro. Não importava que se concretizasse, havia o ideal e vivia-se por ele sacrificando o presente, em alguns casos. Ideais, pensamento e valores. Tudo o que organiza a vida em sociedade decorre da reflexão e do pensamento. Ora num mundo frenético onde não há lugar para nenhum destes valores e começa a escassear espaço para o livre pensamento e para o que é específico do homem, não admira que se perca a capacidade de projetar e prever seja o que for.
Anchor Disfarço a ruga e esboço um sorriso ao ser informado que, durante este mês, a editora Objetiva irá lançar o livro de Paul Mason “Pós-capitalismo – um guia para o nosso futuro” onde para além de se tentar explicar a contradição entre o capitalismo e a economia global, também se advoga que as novas tecnologias trouxeram uma nova forma de fazer política e dinheiro, não havendo por parte do sistema capitalista a necessária capacidade de adaptação, pelo que, numa perspetiva evolucionista, dir-se-á que estará para breve o fim desta espécie. Novos céus e nova terra, quem sabe?

Por Raúl Gomes