Varanda de memórias

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Todos os domingos ia a Rebordainhos, uma pequena aldeia no Distrito de Bragança, visitar o meu avô paterno, César Ramos (ou Tio César para os mais próximos). À chegada, já era previsto que ele estivesse de pé, na varanda de casa, à espera de que eu e os meus pais passássemos de carro para nos acenar. Enquanto o meu pai estacionava o carro, eu abria a porta e corria para as escadas onde se encontrava o meu avô e dava-lhe, como o habitual, um beijo “na careca”. No lado direito estava a porta da sua pequena e humilde casa por onde entrava a pensar nas torradas feitas ao lume que já sabia que tinha à minha espera. Apesar de suportar as dores de costas que carregavam a sua vida inteira dedicada ao trabalho árduo no campo, levava-me à loja ver a Burra e os restantes animais. Era a minha parte favorita e sei que a dele também. Tal como o Tio César, eu adorava, e adoro, animais. Menos vacas. Sempre que elas passavam pela aldeia, eu escondia-me e ele soltava aquele sorriso contagiante da sua boca, já sem dentes. Durante o caminho, o cheiro a alecrim e a ar puro deixava-nos num mundo à parte – no nosso mundo. No fim do dia, regressávamos a casa e eu voltava para Bragança com os meus pais. As semanas passavam. As mãos dele já tremiam pela idade. A sua incapacidade física já não lhe permitia levar-me à loja ver a Burra nem o resto dos animais. Eu não percebia porquê. A cada semana, mais uma ruga lhe nascia no rosto. Vi-o envelhecer. A idade não o perdoou e ele só piorava. Com o passar dos anos, o meu avô começou a adoecer cada vez mais. Na varanda, continuava a acenar-me, mas, agora, sempre sentado. Em 2011 foi levado para o lar de Bragança. Continuei a visitá-lo todos os domingos. Aquele já não era o nosso mundo. Já não havia campo. Já não estava no cantinho de conforto de sua casa onde brincávamos. Agora, era só o lar. Sabia que ele tinha saudades de casa, de brincar lá comigo e de passearmos por aquele ambiente campestre, mas não havia solução. Já não conseguia tomar conta de si próprio. Continuava a ir visitá-lo aos domingos, agora, não tão coloridos como no campo. Com a minha chegada, os olhos dele brilhavam e, ao mesmo tempo, soltava um sorriso como se o tivesse guardado a semana toda para o soltar ali, naquele momento. Os domingos eram os dias dele. O beijo “na careca” à chegada não podia faltar. A cada domingo, ele parecia mais distante. O pior avistava-se e os meus pais foram-me preparando. - O avô, um dia, vai ter de ir para o céu. – diziam-me eles. Eu não queria acreditar. Do que eu ouvia, o céu era um lugar para pessoas boas, mas eu não queria que ele fosse. Queria-o perto de mim. À hora de ir embora, voltava a dar-lhe o beijo “na careca”. -Adeus, avô. - Despedia-me acenando-lhe. No dia 17 de junho de 2012 às 23h45, o meu pai recebe um telefonema. Como eu já dormitava, acabei por não o ouvir. No dia seguinte acordei e vi, pela primeira vez, o meu pai chorar. Era pequena, mas senti-o, já sabia do que se tratava. O meu avô morreu. Aquele foi o último adeus, o último beijo “na careca”, a última vez que o vi. Foi o pior dia da minha vida. O pior das nossas vidas, nunca me vou esquecer. Os domingos passaram a ser cinzentos. Escrevo agora com a mesma dor que senti na altura. As saudades aumentam. O coração aperta. A pessoa mais bondosa que alguma vez conheci e que me fez crescer partiu. Imagino, várias vezes, na minha cabeça, a reação dele se soubesse que hoje estudo Jornalismo na Universidade de Coimbra, pois a última vez que me perguntou, queria ser médica pediatra. Para me sentir mais próxima dele, às vezes, vou à aldeia. Ir lá devia aliviar-me, mas a verdade é que isso não acontece. Ao passar à frente de sua casa olho para a varanda, mas já não avisto ninguém. O seu canto transformou-se numa varanda de memórias. A ti, avô, que no próximo ano faz cem anos que vieste ao mundo e dez que me deixaste, até um dia.

Ana Sofia Pereira