Ventos e ventoinhas

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O ser humano viveu durante longos milénios perfeitamente integrado na Natureza, sem prejudicar os biossistemas em que se movimentava. Até que, sabe-se lá porque espúrios desígnios, o progresso da Humanidade começou a causar danos gravosos na própria Mãe Natureza. Sobretudo a partir do momento em que se passou a utilizar materiais fósseis para obtenção da indispensável energia, o que implicou o desventrar ruinoso da crusta terrestre e a progressiva contaminação das águas e dos ares. Dir-se-á que tudo resultou de um certo determinismo civilizacional mas a verdade é que só muito recentemente a Humanidade ganhou consciência de que não pode continuar por esse caminho. Porque tais substâncias fósseis são finitas e o seu processo de transformação em energia, bem como o funcionamento das diversificadas máquinas que dela dependem, são altamente nocivos do meio ambiente. Donde resulta que a água potável e o próprio ar respirável vão escasseando e as associadas alterações climatéricas se tornaram insustentáveis, para lá de que não há mais espaço para mais aviões no ar ou para mais automóveis em terra. A procura de energias alternativas e o desenvolvimento de máquinas compatíveis tornou-se, assim, instante e inevitável. Fenómeno que, como é óbvio, também se faz sentir no pequeno Portugal, com realce para as regiões em que o território dispõe de maiores recursos nesta matéria, designadamente água, vento e sol. Assim é que, numa primeira fase, as águas dos principais rios transmontanos foram perversamente represadas e os seus leitos monstruosamente deformados. Mais recentemente foi a vez das serranias, até então intocadas, serem desfiguradas com a implantação de gigantescas torres coroadas de ventoinhas e das associadas estruturas de transporte de energia. Ventoinhas que agora pretendem cravar bem no coração de Trás-os-Montes, mais precisamente na indefesa Serra da Santa Comba, que se situa bem no centro da mítica Terra Quente transmontana. Terra Quente que possui uma identidade paisagística singular, composta de suaves colinas onde medram olivais e vinhedos, o que lhe confere uma aprazível imagem bíblica. Serra de Santa Comba que já no quinto milénio a.C. albergou seres humanos, um tanto tardiamente, é certo, porquanto por essa altura, já em Jericó viviam mais de 2000 habitantes e nos deltas do Nilo, do Tigre e do Eufrates eclodiam as primeiras civilizações da era histórica. Serra de Santa Comba que é depositária de um riquíssimo património geológico, paleontológico, arqueológico e religioso, constituindo-se, para lá do mais, num dos mais extensivos e deslumbrantes miradouros portugueses. De salientar que a Federação Internacional das Organizações de Arte Rupestre a notabiliza como uma das maiores concentrações de arte rupestre de toda a Europa. Igualmente notáveis são os vestígios glaciares, as chamadas ranhas, ainda visíveis na encosta sul embora tenham sido, em parte, delapidadas. Serra de Santa Comba que especialistas dizem ter impacto determinante no clima da região envolvente porque as massas de ar marítimas quando a encontram, sobem e arrefecem, originando as chuvas abençoadas sem as quais a Terra Quente seria desértica, por certo, faltando saber se de alguma forma as ventoinhas poderão influenciar este sistema. Acresce que a Serra da Santa Comba está profundamente envolta em lendas e narrativas como é o caso da Lenda de Santa Comba e São Leonardo (1) relativa ao santuário com o mesmo nome, que é sede de uma concorrida romaria secular. Importa, ainda, esclarecer que a Serra de Santa Comba se compõe, na verdade, de duas formosas montanhas, a denominada Serra dos Passos e a Serra da Santa Comba propriamente dita, separadas por um profundo vale transversal, com território e património repartidos pelos concelhos de Mirandela e de Valpaços. Ora, por mais instante e legítima que seja a procura de energias alternativas nada justifica que a mesma se faça levianamente, menosprezando tão diversificado património milenar. De salientar que do lado do município valpacense não são conhecidos projectos para a parte da serra que lhe diz respeito. Já do lado do município mirandelense estará em curso, de forma tão surpreendente quanto precipitada, a construção do denominado Parque Eólico de Mirandela que assentará, para lá do mais, num deficiente Estudo de Impacto Ambiental que voz autorizada denunciou como fraudulento, correndo-se o risco de que este mau projecto se transforme num péssimo negócio para a autarquia. A plena salvaguarda de tão vasto e precioso património, a sua defesa, promoção e abertura a visitantes, devidamente ordenada, devem ser condição Sine qua non. Pela parte que me toca gostaria de continuar a ver da minha janela, a mítica Serra da Santa Comba livre de ventoinhas, convertida num santuário natural e com o seu perfil fascinante bem recortado no horizonte. (1) (https://henriquepedro.blogspot.com/2017/10/ lenda-de-santa-comba-e-sao- -leonardo.html)

Henrique Pedro