Um tiro de bazuca contra o interior

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Ter, 04/08/2020 - 00:45


Milhões, milhões e mais milhões. Desde a década de oitenta do século passado tem sido um festim, dinheiro a chover sobre este país à beira mar plantado, que se escoa para bolsos impados, moradias de luxo, carrões para mostrar ao povo e contas obscuras por tudo quanto é banca de feira em tenebrosos arquipélagos do Atlântico, do Índico ou do Pacífico, porque no Ártico e no Antártico a friagem não convida à cupidez ostensiva, babada, barriguda, ajaezada de ouro e pedrarias.
Nada de novo neste Portugal de fortuna e azar, já lá vão nove centúrias. A fortuna de poucos foi quase sempre a miséria dos restantes, tragédia vivida às escuras, enquanto a vã cobiça fazia o seu caminho vitorioso pelos arredores da fome e da miséria, repetidamente.
Cegou-nos o brilho do ouro, deixámo-nos inebriar pelo cheiro da canela há seiscentos anos. Depois encontrámos no açúcar doçuras perversas, amargas para milhões de africanos que lançámos na salgadeira do oceano, até que reencontrámos ouro reluzente nesse Brasil, que já foi terra de promissão, mas que hoje nos provoca tremeliques, como se pudessemos lavar dali as nossas mãos.
O ouro serviu para dar largas ao fausto bacôco, à ilusão de prosperidade, mirrada logo ali, ao fim de uma geração, uma história triste que nos conduziu à humilhação da mão estendida, da subserviência, da dependência científica e tecnológica, do atavismo político, estético e cultural.
Sobreveio obscuridade, longa e dolorosa, que nos afundou na vergonha, apesar do império pífio, anacrónico, concebido pelo provincianismo remendão, amargo e taciturno que nos invadira a alma.
O país é hoje o resultado do que se foi desfazendo de possibilidades de encarar com determinação presentes e futuros. Mais uma vez preferimos o remanso do imediato e vamos desperdiçando alegremente recursos que nos vêm parar às mãos quase por milagre, até que alguém se canse e nos feche a porta na cara.
De facto, os fluxos de dinheiro europeu não garantiram o desenvolvimento equilibrado do país. Pelo contrário, acentuaram desigualdades e injustiças, instalando a iniquidade, o que é inadmissível numa sociedade de verdadeiros cidadãos, com lideranças políticas respeitáveis.
Eis que a novíssima peste, dolorosa tormenta, também tem o seu lado de esperança. A recuperação passará por monumental injecção de dinheiro, a famosa bazuca, entusiasticamente celebrada pelo líder do governo e aplaudida pelo Presidente da República.
Podíamos encará-la como uma oportunidade de repensar os investimentos para a próxima década, de modo a atingir um desenvolvimento mais equilibrado do país. Mas, pelo que se vai sabendo, os novos milhões servirão para acentuar a discriminação dos territórios e das comunidades que não cederam à tentação do “tudo ao monte e fé em Deus”, que é a marca do reino do litoral e do algarve, caldo morno com risco de azedar na próxima curva da história.
Estamos assim numa situação em que o tiro de bazuca, em vez de abrir o caminho para a vitória do país e dos seus cidadãos na construção de um futuro possível, pode simplesmente significar a redução a pó das últimas expectativas para o interior, como uma consequência surpreendente: o próprio país encontrará, mais cedo ou mais tarde, a carantonha do senhor dos infernos.