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Call Girl, o Filme

Ter, 29/01/2008 - 11:38


Hoje, sinto aqui uma espécie de responsabilidade moral de escrever grandes verdades. De fazer afirmações cheias de princípios. Porque, calculo, nunca terei escrito um texto que tenha tanta gente a interessar-se por ele como este. Digo eu. E se o leitor persistir, pode ser que não se desiluda muito. É que eu acabarei por fazer referência à Soraia Chaves. Desenhos é que não farei, mas também não é preciso. O leitor é certamente inteligente.

Quando António Pedro Vasconcelos apresentou o filme, em Lisboa, em Junho do ano passado, citou Renoir e Truffaut para caracterizar Call Girl como “a história de uma mulher e três homens que vão dar, de certeza, sarilho”. Ao chamar a si dois dos maiores nomes da cinematografia francesa, António Pedro Vasconcelos começou por marcar a vertente estética do filme (não, ainda não me estou a referir à Soraia Chaves), através da homenagem constante ao cinema de autor europeu e americano. São muitas as referências. As réplicas prontas e desafiadoras da protagonista têm um toque de Lauren Bacall, quando contracena com Bogart, sob a direcção de Hawks, no “Grande Abismo”. O seu gesto estudado de levar a mão ao pescoço lembra a pose de Ava Gardner em “A condessa descalça”, de Mankiewicz. O olhar desencantado com que fixa a câmara faz pensar em Maria Cabral, no “Cerco”, de António da Cunha Telles, quando o novo cinema português, no final dos anos 60, já imergia na onda do politicamente incorrecto.
Nem Hitchcock foi esquecido quando, quase no final da acção, o realizador António Pedro Vasconcelos surge, como mero passageiro, no avião que levará a mulher fatal a parte certamente incerta. Como faria o mestre inglês do suspense que tinha por hábito figurar, ao longe, por breves instantes, em todos os seus filmes. E nem o desconcertante e pouco ortodoxo Tarantino esteve ausente desta homenagem: o espectador que sentisse como familiares certas reacções da dupla de polícias de Call Girl veria as suas suspeitas confirmadas, no momento em que a personagem Vasco Madeira arranca da parede um cartaz que anuncia o filme “Cães Danados”, que marcou a estreia em cinema daquele realizador e argumentista americano.
Como filme de imagens de referência, Call Girl vale (e não me refiro, ainda à Soraia Chaves). Como filme de intriga policial, Call Girl não deixa de valer. O tema da corrupção e das escutas telefónicas enreda-se com o fascínio que uma mulher, contratada para o efeito, exerce sobre um homem que tem, afinal, tudo a perder e que acaba por perder tudo.
O jogo de interesses económicos – que vão desde a prostituta de luxo até à empresa inglesa que quer construir um projecto turístico numa zona protegida, passando pelo intermediário que contrata a profissional – é uma imagem de substância do exercício do poder, nas suas diversas manifestações. O poder físico, o poder financeiro, o poder político. Sendo este, afinal, o que se mostra mais frágil perante a força dos outros dois. Quando Meireles, o autarca alentejano (impressionante Nicolau Breyner) cede, enlouquecido, perante os encantos de Maria, deixando-se arrastar inconscientemente numa espiral de esquemas sem regresso. Quando o ministro da saúde (inesquecível Virgílio Castelo, com um impagável tique de linguagem) diz ao presidente da Câmara de Vilanova, que lhe pede um hospital para a sua terra, que se deixe de coisas e que aprecie o que é bom. Porque é melhor ir de carro jogar golfe do que ir de ambulância para o hospital. Numa clara alusão ao negócio que, por então, o autarca alentejano se recusava a fazer.
Tudo parece estar à venda e cada um ter o seu preço. Como se o título do filme e a profissão a que ele se refere fosse, afinal, um símbolo generalizador das actividades e atitudes a que todas as personagens dão corpo e alma. E não só Maria, que diz que prefere “ser infeliz num Audí do que num banco de autocarro”, numa afirmação de desencanto que se confirma no desfecho assumidamente amoral do filme.
O próprio chefe da polícia é invectivado de “prostituta” pelo jovem e dinâmico agente (eficaz Ivo Canelas) que se dispõe a usar Maria (sua antiga paixão) para desmontar a teia de corrupção de que já tem conhecimento. Mas ela mostra-lhe, num diálogo simbólico mas claro, que cada profissão tem a sua ética, o seu valor e a sua linha de acção.
E Soraia Chaves, afinal? Está muito bem (e muita gente haverá para a recomendar), entre um grupo de excelentes actores que não lhe fazem sombra. Aqui, os cínicos dirão que não teriam como ensombrá-la. Mas a mim parece-me que Maria, a personagem amoral (mas às vezes comovente) que ela recria, tem uma força dramática tão grande que só uma actriz verdadeiramente eficiente a conseguiria recriar.
Filme de conflitos sociais e pessoais, e da maneira como as personagens os vivem, Call Girl mostra, talvez, como diz o seu realizador, que “ a ficção é vampírica, alimenta-se do sangue da realidade”.