Comeres de Vinhais

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Qua, 21/02/2007 - 16:29


O “Nordeste” lembra-me da Feira do Fumeiro de Vinhais, previne-me do lançamento de um livro de receitas baseado nos famosos enchidos daquelas terras de soledade, de mil cores, da morrinha como dizem os galegos, que são as aldeias-esqueleto do concelho.

Tudo quanto seja o enaltecimento desse território onde fui feliz, faz-me jubiloso, mas para o bem ou mal gire da fortuna a roda quando se trata de vasculhar na memória os comeres de antanho, agora, representados num certame como é o da Feira. Sobre o modelo do evento não emito opinião, porque desde há largos anos não o frequentar, acerca das receitas divulgadas a isso sou forçado por diversas razões, como muito bem sabe o António Monteiro. Num primeiro registo, alegra-me a argúcia dos nordestinos ao terem conseguido fazer do butelo, um secundaríssimo enchido, de restos, a bem dizer um remendo, um produto capaz de engrolar alguns palatos a pontos de postergar o rei e a rainha do fumeiro transmontano – o salpicão e a alheira – como muitos leitores sabem ou já deram conta disso. Se os nossos bisavôs viessem às Feiras não deixariam de soltar grossas e fortes gargalhadas por este feito: o butelo ser estrela na terra onde nasceu um dos pais da psiquiatria portuguesa. Noutras também, diga-se em abono da verdade. Grande figurão, diriam eles. Já o mesmo não se pode afirmar em relação ao bucho de porco recheado à transmontana, como muito bem anota o sempre lembrado Oleboma. Metido a estudar os hábitos alimentares dos portugueses, uma das receitas apresentadas parece-me ser a prova provada do que não se deve fazer, ou seja: acho um desconchavo servir-se “chouriça doce com mel”, mas lá diziam os romanos: em matéria de gostos nada está escrito. O fumeiro de Trás-os-Montes nos receituários antigos, minuciosos e bem escritos, é representado pelas referências tutelares – alheiras, salpicões -, depois surgem as tobafadas ou tabafeias, as linguiças, as “murcellas doces brancas e as murcellas doces pretas ou de sangue”. As bocheiras só merecem a atenção de Carlos Bento da Maia. Num receituário, o autor em relação aos salpicões não se esquece de aludir à sua conservação. Reparem no pormenor:”Podem guardar-se em barris, encamados com carqueja”. Apesar de a matriz destas receitas agora trazidas à tona da água ser uma obra do Padre Firmino Martins, detecto restrições que deixam de fora preparações culinárias onde o porco é elemento de destaque, caso das “orelhas de porco na grelha” e “ensopado de miolos à transmontana”, nesta última, o presunto proporciona invulgar sapidez ao prato em causa. Esquece, igualmente, os caldos e as sopas, entre elas a formidável sopa de alheiras. Num precioso roteiro publicado em 1943, relativamente a Vinhais o autor aconselha os viajantes a visitarem as Igrejas de São Francisco, São Facundo, da Moimenta, Tuizelo, Vilar de Ossos e Quintela e faz mais umas quantas anotações, dando a seguir uma resenha da cozinha e doçaria da região. Em relação às alheiras afirma: “na época própria, de Outubro a Fevereiro”, estão a ver o trabalho dos judeus a fazerem provas de fé comendo-as em Agosto?!, lembra os bifes de presunto com batatas fritas, outros livros de receitas afinam pela mesma diapasão, a cebolada emprega-se (empregava-se) em produtos menos nobres, caso dos fígados, os famosos bifes de vitela com presunto, o chouriço de pão com grelos, as tabafeias e salpicão assado, a fritada avilta-o digo eu. No que ao fumeiro diz respeito fica por essas referências. O dito roteiro está certeiramente elaborado, não esquecendo as rabas guisadas com ovos. Pelo lido, este livrinho é mais um meio de sugerir e abrir o apetite ao visitante, daí não vem mal ao Mundo, antes pelo contrário. A todo o tempo é possível aumentá-lo. Os comeres de Vinhais merecem-no. Amplamente!