A derrota do unto

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Ter, 04/04/2006 - 14:54


Percebermos a construção do Mundo através da história da alimentação, além de fascinante, é saliente condição para dar importância àquilo que por ser tão natural não damos: o acto de comer.

Alimentos estratégicos existiram sempre, os magistrais trabalhos de Fernand Braudel o demonstraram, economistas e especialistas de toda a espécie o comprovam. O sal foi um deles, o trigo e o açúcar são-no agora. Dos ouriços arreganhados caem castanhas, imprescindíveis na alimentação dos nordestinos antes do aparecimento da batata e convencimento das populações em consumi-la. Os nordestinos ficam mucosos a chorarem o seu desvalimento, a perda de serviços e importância, porque os políticos teimam em não nos darem nem palha, nem grão. Tenho para mim que merecemos tal sorte, pois somos pouco ousados e damo-nos ao luxo de não vermos para além da alheira, da chouriça, do butelo e do salpicão. Uma questão de olfacto fumareiro, dirão os caçadores de fortunas baseadas na apreciação de ideias, produtos na obscuridade e práticas inovadoras. Na minha modesta opinião o Nordeste deve transformar-se numa região de excelência em matéria de comeres e beberes, capaz de gerar entusiasmos a obrigarem o percorrer de centenas de quilómetros para se refeiçoar a preceito nestas paragens. Já o disse, já o escrevi, abstenho-me de referir exemplos a corroborarem tais opiniões. Hoje trago à colação a derrota do unto, do pingo, em suma do toucinho. O unto foi derrotado em toda a linha pelo azeite. No entanto, talvez valha a pena tecer algumas considerações em defesa desta saborosa gordura, mais a mais, devido a médicos americanos virem falar nos benéficos efeitos retirados do consumo de banha de porcos convenientemente preparados para o efeito. Para além da sonoridade da chamada dieta mediterrânica, não podemos esquecer o importante receituário baseado na gordura de porco a correr riscos de desaparecer não só dos nossos hábitos, mas também da própria história alimentar. Vou ser mais preciso: os cozinheiros cristãos preferiam cozinhar com manteiga de porco, enquanto aos gostos culinários dos judeus e muçulmanos repugnava semelhante gordura, até porque o consumo do porco lhes estava e está interdito. Temos, tinhamos, muitos pratos tradicionais confeccionados sem azeite, basta lembrarmos os maravilhosos comeres engendrados pela imaginação das nossas avós ou recordarmos os receituários antigos. E ao contrário do propagandeado por doutos e arautos do azeite, isso mesmo acontecia noutras nações da Europa, ao mais alto nível. Por exemplo no precioso e custoso livro de Bartolomeo Scappi, “ A Arte de Cozinhar” encontramos em todo o livro 476 menções a manteiga, 174 menções a manteiga de porco e apenas 35 a azeite de oliveira. Este Bartolomeo foi cozinheiro privado do Papa Pio V e ainda hoje o seu livro é estudado minuciosamente pelos que têm a sorte de o possuir. Aqui há uns meses num afamado restaurante de Bilbau apreciei uma rebitesa gastronómica elaborada à base de toucinho. Deliciado, repeti a dose, até porque a dita rebitesa era muito fina, como convém. A graça custou-me vinte e cinco euros. Não dei o dinheiro por mal empregue, mas sem querer, a memória puxou-me até ao rincão de Lagarelhos, aí, batedor de caminhos e montes recolhia ao toque de Trindades e muitas vezes deliciava-me com uma sopa de unto acolitada por toucinho rijado mais um carolo de centeio. Alhos, castanhas, grão-de-bico, queijos, cogumelos, feijões, feijocas, chícharos, melões, lentilhas, nabos, grelos (os galegos mandam-nos em frascos para Lisboa e Madrid) são só por si produtos de atracção turística, de valor económico e, façam favor de não esquecer o toucinho e o unto. Sem ademanes teatrais, sem corridas para a fotografia valia a pena pensarmos a sério na forma de salvar o receituário com base nestes e noutros produtos que por aí anda perdido, sem esquecer a recuperação destas lindezas, só o nabo tem uma importância enorme nos nossos comeres de antanho, para as vendermos em quantidades apreciáveis. Sendo um impenitente abusador do azeite, não posso esquecer o tal unto ter sido barreira ideológica e religiosa a par do toucinho. Mafoma falava muito mal deste último. Lembram-se? E lembram-se da pita a tirar ninhadas da capoeira? Pois é!