Eduardo Pires

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Alguns modismos

Alguém disse uma vez que a palavra cão não morde. Podíamos acrescentar que a palavra ébola não é contagiosa, bosta não cheira mal nem suja as solas dos sapatos, pobreza não faz um rico descer de classe, e assim por diante. As palavras referem-se àquilo a que chamamos a realidade. Como alguns aspetos dela evocam sentimentos desagradáveis, ou até penosos, transferimos esses sentimentos para as palavras que os designam, que ganham assim um valor emotivo para além do significado que têm no dicionário. Quando tal acontece podemos evitar pronunciá-las e ouvi-las, mas se isso não for possível reagimos a elas com as mesmas sensações de medo, desprezo, raiva, nojo, que teríamos na presença das próprias coisas.

O contrário também é verdadeiro. Há palavras que nos caem no goto porque de alguma forma se ligam a algo que desejamos ter ou ser. Usá-las pode ainda dar-nos a ilusão de participar ativamente no que está a acontecer à nossa volta, de não perder pitada. Há tempos uma adolescente dizia-me com o ar mais ressentido do mundo que tinha mudado de escola porque sofria “bullying” por parte dos colegas e da diretora de turma. Tadita, mas como poderia ela resistir a um estrangeirismo que não podia estar mais na berra? Por outro lado, sendo a linguagem socialização, usar certas palavras num grupo significa que queremos pertencer-lhe. Lembro-me bem do prazer que os jovens esquerdistas da minha geração experimentávamos entremeando as conversas políticas com “contexto” para aqui, “infraestrutura” para ali, entre milhentas novidades verbais que a revolução tinha trazido. Por essa altura tive um amigo que não conseguia dizer nada sem enfiar “pcebes, ptanto, pá?” na parte final das frases. De uma assentada juntava três bordões que, isolados, todos usávamos à farta por achar que davam um ar prá frentex, aquilo que na altura fazíamos questão de ser.

Os tempos mudaram. Mas continua a ser como forma de afirmar o desejo de ser reconhecida entre os pares e mostrar-se atual que a ganapada de hoje tem necessidade de saltear os discursos com aquele irritante “tipo” (irritante para quem, como eu, já se esqueceu do que dizia). É pela mesma razão que há quem ache proveitos e vantagens coisa ultrapassada, preferindo “mais-valias”, “valor acrescentado”, e se por acaso estes forem o produto de “um novo conceito”, então nem se fala. A propósito de novos conceitos, note-se que agora as notícias se tornam “virais” num piscar de olhos, a mesma rapidez com que “chocam” as pessoas, razão pela qual redes sociais e títulos noticiosos fervilham de gente “revoltada”, para quem “indignação” e “exigência” são sentimentos dominantes. E como nesses suportes informativos também todos “acusam” todos do que calha, pouco se faz também que não seja para “arrasar”.

É nessa mesma linha que quase já não se atribui a um evento, por mais insignificante, classificação inferior a “um espetáculo” e que perceções corriqueiras se obrigam a ser “espetaculares”. Há dias, nos dois segundos que passei num canal de tv falava-se de umas férias “brutais”. Fugi tão depressa quanto o polegar mo permitiu, mas fui-me esbarrar noutro, este de culinária, onde alguém referia o sabor “épico” de um bolo. Nada de estranhar, afinal, se tivermos em conta que o pessoal delira por se entregar a coisas “radicais”. E por falar nisso, haverá coisa mais radical do que uma maria qualquer ter milhares de “seguidores” que tanto lhe podem idolatrar o traseiro a poder de “likes” como atormentá-la porque numa das fotos “postadas” exibiu uma pontinha de celulite?

O que ressalta de muitas destas e outras modernas palermices é a vontade de exagerar sensações e emoções, dar a ideia de que se está em todas e se vive intensamente. O tempo atual já é frenético, assoberbados que estamos por essa fonte de inquietação – os media – que nos induz a ter e a parecer, mais do que a ser. Mas como inda há por aí calma, serenidade e reflexão quanto baste, estados de espírito que desencorajam grandes despesas, para incrementar os negócios torna-se necessário hollyhoodizar a realidade: criar ação e drama, suscitar empolgamento, excitação, ansieda­de, carência. No fundo, sentimentos que levam as pessoas a buscar algo que as preencha e acalme, quer dizer, a consumir mais. Não há crise, o mercado tem sempre um produto à medida de cada necessidade.

O rei vem nu

Ao contrário do que se tem dito, o governo não vai acabar com os chumbos no ensino básico. É impossível acabar com o que não existe, e como é bem sabido nesse grau de ensino já há muito que passar por atacado é uma prática corrente, chumbar um fenómeno residual. O que parece que se vai fazer é deixar de fingir. Se pensarmos que a avaliação de si, dos outros e do meio facilita a sobrevivência de todos os seres vivos e permeia toda a vida em sociedade, ela só pode ser encarada como um assunto sério. Mas não o é para nós, que estamos sob a batuta de ideias que há décadas operam tanto a partir de dentro como de fora e distorcem a realidade para a meter à força dentro delas. Do ponto de vista dessas ideias o sucesso não é algo que se deseje ou conquiste com mérito ou esforço, antes uma obrigação com que se nasce. E fiéis a esse princípio indiscutível, a nossa distorção tem consistido em registar em papeis números forjados e chamar-lhes sucesso, sabendo que grande parte dos alunos não o pode ou mesmo não o quer ter. É verdade que não faz muito sentido encerrá-los contra sua vontade das oito e meia da manhã às cinco da tarde durante nove anos e depois dizer-lhes que não fizeram as aprendizagens que deviam ter feito, até mesmo por grande parte deles não estar para aí virada. Também não é muito racional reprová-los a partir do momento em que se sabe que não aprendem mais por reprovar e repetir anos. Mas o ponto não é esse. O ponto reside numa coisa que vamos buscar à psicologia da aprendizagem chamada reforço, com a qual se deve contar quando se educa. O reforço é o sinal dado à criança de que o que ela faz está ou não de acordo o que queremos que aprenda. Se está, deve ser sancionada com uma recompensa. Se não, recebe uma penalização. Mesmo que penalizações e recompensas possam assumir diversas formas, o reforço é obrigatório quando tencionamos educar para valores, aquilo que implícita ou explicitamente se faz sempre. Mas como disse o nosso ensino público é gerido ideológica e não cientificamente, e visto como uma instituição de caridade cuja função é oferecer sucesso a todos. Como a realidade nunca poderia sustentar tal pretensão, temo-nos saído comodamente do enrascanço simulando que grande parte das crianças aprende o que não aprende e adquire valores que não adquire. E é assim que nele trabalho e cabulice, empenho e deixa-andar, bom e mau comportamento, civismo e desrespeito, contenção e violência são todos igualmente reforçados com recompensas. À primeira vista até pode parecer generoso, solidário, igualitário, mas uma avaliação divorciada do que as crianças de facto fazem incute-lhes crenças que estão em flagrante conflito com a realidade e deforma-as para toda a vida. É que este caldo de cultura é pouco propício a que se desenvolvam intelectualmente. Não precisam. Não sendo estúpidas, sabendo à partida que o que querem lhes vai ser oferecido mesmo que decidam dormir à sombra da bananeira, depressa constatam não haver motivos para grandes dores de cabeça. O sucesso está-lhes à partida assegurado, mas se de alguma forma isso não acontecer sentir-se-ão revoltadas e vítimas de quem, espezinhando os seus direitos, lho devia trazer à mão e não o faz. Porque o panorama piora em termos éticos, dada a dificuldade que nesse meio têm em adquirir a noção do seu valor, em estabelecer ligações entre aquilo que são e aquilo que acontece com elas e à volta delas, em saber o que é responsabilidade, encarada geralmente como coisa alheia. Acreditando que os atos não têm consequências, sem noção dos limites, o mundo é todo deles e tudo é permitido, inclusive mais tarde, talvez, espancar os jogadores do clube do coração porque se atrevem a não ganhar os jogos que deviam. Grave, como se pode imaginar, mas a gravidade é sempre relativa: passar sistematicamente de uns anos para os outros fazendo pouco ou nada por isso também as convence de que a viciação da verdade, principalmente por quem as anda a ensinar, é uma conduta normal e aceitável. O ensino básico chama-se assim porque o seu objetivo, reafirmado em centenas de textos, é formar a base da personalidade dos futuros adultos. E muito por intermédio desta avaliação tem-no feito, embora produzindo grandemente o contrário do que diz. Por isso seria mesmo mais honesto acabar de vez com ela, ementes não se arranja algo mais ajuizado para fazer.

A causa das coisas

A indignação de greta thunberg ao acusar os dirigentes mundiais de não terem vergonha, de lhe terem roubado a infância e mais não sei quê tem um certo mérito. Não é comum ver afoiteza assim numa miúda. A sua normal ingenuidade, assim como a baralhação dos que estão por detrás dela, reside em não enxergar que foi justamente essa infância, as infâncias e as vidas inteiras de todos nós desde o início da revolução industrial que trouxeram os problemas de que se queixa. Como tenho dito, neste ponto como em tantos outros não vamos a nenhures enquanto não começarmos a conjugar os verbos na primeira pessoa do plural.

Ao longo do tempo tem havido aspirações de desenvolvimento e crescimento a pensar em melhores condições materiais para as pessoas. Ponhamos de lado que adquirir bens é muitas vezes mais hábito e compulsão do que sobrevivência, e que bem-estar material não é necessariamente sinónimo bem-estar geral. O que importa é que esses têm sido sonhos de muita gente lúcida e civilizada. Com eles em mente, a terra transformou-se num imenso mercado que vive de explorar, transformar, vender, comprar, transportar, consumir recursos naturais, atividades que gastam energia e têm implicado queimar combustíveis fósseis. Talvez umas quantas tribos remotas estejam isentas de responsabilidade (e mesmo essas já usam objetos confecionados industrialmente), mas hoje não é fácil pensar em ações humanas cujo subproduto não seja a libertação de gases com efeito de estufa, incluindo aquelas que se propõem lutar contra o efeito de estufa.

É o que mantém tudo a funcionar. Estamos tão dependentes de queimar para obter energia que se de um momento para o outro deixássemos de o fazer o mundo tal como o conhecemos entraria em colapso. Somos o que somos no presente porque temos vindo a alterar o clima. Não seríamos o que somos se não o tivéssemos feito. O que hoje se sabe com certeza é que tais práticas são incomportáveis, não só por causa da destruição generalizada do meio, mas porque no processo também se gastam recursos naturais não passíveis de ser substituídos. Como não é provável que a médio prazo se consiga produzir energia suficiente a partir de fontes limpas, o esforço atual para reduzir as emissões não tem em vista anular os danos, apenas minimizá-los. Entretanto as agressões vão continuar. Os transtornos que provocámos à natureza (e por conseguinte a nós próprios) já não se podem esconder, embora a tendência seja para pensarmos que talvez não aconteçam aqui, ou não nos afetem, ou nos afetem pouco. Pode ser que a negação tenha origem no receio oculto de que o problema resida mesmo em cada um de nós e de que seja preciso repensar a forma como vivemos. Mas é certo que teremos de o fazer.

Ninguém seria insensato a ponto de defender que se abdicasse de vidas decentes e dignas para toda a gente, mas já começa a ser condenável abusar, estragar, esbanjar, desperdiçar. Não tarda vamos autocensurar-nos por consumos excessivos ou supérfluos, por acumular aquelas bugigangas inúteis anunciadas em folhetos de hipermercado apenas para aliviar o stresse. Já há gente a assimilar que ser ambientalista e não renunciar a ter ou fazer tudo o que nos dá na gana é como ser anticapitalista e correr atrás do último brinquedo com que o capitalismo nos seduz. Porque quanto a isso não faltam casos de leviandade. Ainda há umas semanas me esbarrei com uma estapafúrdia exibição de ferraris aqui na avenida das forças armadas. Aplaudidas por umas dezenas de pacóvios, as máquinas ronquejavam e chiavam em piões presunçosos nas rotundas, queimando pneus e gasolina sem outra justificação que não fosse o próprio exibicionismo.

Mas o exemplo acabado desta feliz inconsciência é a forma como acabámos a “festejar” o natal. Não foi por acaso que o menino-jesus de outrora deu lugar a esse caricato santa claus. O primeiro era parte de uma celebração singela (embora intensa) de gente piedosa, modesta, comedida. Representava a eterna promessa e o renascimento do amor cristão. Os seus presentes, ainda quase meramente simbólicos, não precisavam de ser muitos, nem grandes, e cabiam em sapatinhos. Em contrapartida, o velhote obeso e corado de saco a abarrotar de embrulhos que na sua maioria não servem para nada é bem um produto desta nossa era, o mensageiro de um consumismo maquinal e sem sentido.

 

Mau ambiente

Manifestações e greves funcionam razoavelmente bem nas relações laborais e políticas. Geralmente elas implicam a existência de dois campos em confronto, o dos que por algum motivo decidem mostrar-se insatisfeitos e o daqueles contra quem se posicionam e que pretendem influenciar, pressionar ou até excluir – governos, patrões e outras entidades. Também pressupõem um mundo subjetivo a preto e branco segundo o qual os que fazem greve ou se manifestam se veem a si próprios como bons e injustiçados e a outra parte como má e sonegadora de direitos. Tal antagonismo não significa contudo que não haja dependência, até porque os primeiros esperam sempre que os segundos lhes resolvam alguma dificuldade.

Em matéria de ambiente não se discutem as vantagens de pressionar líderes, governos, indústrias, lóbis e demais forças cujos comportamentos se querem ver modificados. No entanto, ver essa luta usar às cegas os métodos próprios do mundo da política e do trabalho traz o receio de que possa também vir cheia de mal-entendidos. Era bestial que as alterações climáticas fossem um ser dotado de racionalidade, pressionável, contra quem se gritassem palavras de ordem tal como se faz com o patronato. Um adversário de carne e osso que se pudesse eliminar. Um exército de ameaçadoras máquinas alienígenas no encalço das quais se enviasse um exterminador, ao jeito dos trailers de suspense. Não sendo nada disto, manifestar-se ou protestar contra elas nunca irá mudar um milímetro o seu comportamento.

Por outro lado, alinhar na ideia de que nesta questão há bons e maus e pensar em termos de “nós contra eles” arrisca-se a ser contraproducente. Tanto quanto me foi dado a entender, a postura dos ativistas do clima é a de quem acha que alguém que não eles deve assumir o encargo de mudar aquilo que há para mudar. Ora num assunto cuja gravidade requer o contributo de todos os sete mil milhões de habitantes do planeta, a ideia implícita de que há inimigos a combater é deixar-se ir pelo caminho mais fácil. É sacudir a água do capote. Só quando cada pessoa compreender que o inimigo do ambiente é ela própria poderá deixar de procurar bodes expiatórios e dedicar-se a fazer a parte que lhe cabe.

A acreditar na mensagem que as televisões querem fazer passar, é principalmente a juventude que acalenta ideais de proteção ambiental, os leva a peito e está a tomar conta das ruas para os defender. Assim de repente parece bonito e generoso. Provavelmente o grosso dos espetadores até fica convencido, mas eu, que devo ter uma costela de desconfiado e outra de casmurro, torço o nariz. Há um par de meses já tinham mostrado grandes peças a propósito do mesmo. E o que na altura presenciei ao vivo e a cores foi uma cena bastante mais prosaica, embora mais verdadeira, em que umas centenas de fedelhos que não sabem se estão neste mundo se no outro deram um tiro às aulas durante uma tarde inteira, curtiram bué e tiraram imenso prazer disso. Se calhar tenho tido azar, sendo por isso sensato evitar tomar a parte pelo todo, mas a maioria dos jovens que conheço parecem-me tão alheios à natureza e aos seus problemas, tão afastados dela, que ficam histéricos quando um simples inseto entra inadvertidamente numa sala de aula. Por isso as minhas reservas perante as parangonas.

Numa destas últimas manifs, já não sei onde, esses jovens que querem então mudar o mundo revelavam a sua seriedade e grau de consciência com respeito ao tema comprazendo-se em queimar pneus em quantidade e em lançar propositadamente para o ar todo o tipo de fumaradas. De caminho também aproveitavam para destruir o que apanhavam pela frente. Como iam ter que restaurar as forças gastas enquanto protestavam através da ingestão de alimentos, e como quer estes quer os equipamentos destruídos (que será preciso repor) são fabricados ou transformados em unidades industriais que poluem, os ditos indignados estavam afinal a poluir um pouco mais, como aliás fazem com tudo o que consomem.

Mas tal como a maioria das pessoas pelos vistos não o sabem, assim como parecem não saber que é extremamente difícil imaginar algo nas suas vidas que não implique degradar o ambiente. Também é necessária alguma coragem para lhes dizer isso, ou que mais eficaz do que fazer “greve” talvez seja ficar em casa e começar a abdicar de muitas das regalias de que desfrutam…

Pescar

Se vires alguém com fome não lhe dês um peixe, ensina-o a pescar, prescreve a máxima oriental, uma alegoria em que “fome” representa as nossas carências comuns e “pescar” aquilo que há que fazer para as suprimir. Convém não nos deixarmos iludir pelo seu laconismo: ela subentende todo um programa educativo, em função do qual nunca se deve perder de vista a autonomia, o esforço, o mérito de quem aprende. Sendo nossa sina ter necessidades e desejos, não há como fugir de procurar eliminá-los, quer fazendo-nos à vida quer vivendo à custa de outrem. Acontece que a máxima exclui esta segunda possibilidade. Por isso, se cabe a quem educa expor os segredos e as técnicas da pesca, é bom que as canseiras desta fiquem por conta do educando; aquele aponta o caminho, mas é este que o há de percorrer.

Na cegueira idealista que ganhou asas na parte final do século passado, e veio por aí fora, as pessoas julgaram que deviam dar peixes de mão beijada. Ficaram tão sôfregas pelo facto extraordinário de terem arrancado os rebentos às garras das privações que elas próprias haviam conhecido que adoravam exibi-los como troféus, assim como quem apresenta ex-votos ao santinho da abundância. O que estava a dar era escolher para eles os atalhos mais fáceis, arredar calhaus e espinhos, preservar a todo o custo de dificuldades, evitar o contacto com cruezas, resguardar dos vendavais como se resguardam flores em estufa. Entre outras mariquices, não é que a certa altura passou a ser fino chamar aos filhos príncipes e princesas?

Um nadinha de juízo teria segredado que tratar por príncipe é o mesmo que colocar-se em lugar de súbdito e, portanto, sujeitar-se à tirania; que superproteger significa atrofiar; que dar tudo corresponde a inibir de pescar, a tirar razões para ir à luta, não apenas no momento em que se dá, mas pela vida fora. Mas neste ambiente prazenteiro não se preparava para a vida, antes para cenários de fantasia. Uma enorme maldade foi incutir aversão ao trabalho contra a corrente na qual o mundo avança, um mundo que exige cada vez mais capacidades, competências, esforço, entrega; desvalorizá-lo quando é ele que sustém todo o edifício da sociedade; transformá-lo numa fonte contínua de conflitos quando a verdade é que, para além das coisas materiais que deve trazer, também costuma presentear-nos com satisfação, autoestima, realização. Mas isso não interessava, havia que livrar os cachopos dele como da lepra. E no caso de tal não ser possível, o que acontecia em noventa e nove vírgula nove por cento das vezes, deveriam encaminhar-se para doutores ou então aspirar no mínimo a empregos de escritório onde não tivessem que vergar a mola ou sujar as mãos.

Dezenas de carnavais depois já se percebeu o fracasso deste modelo, que só vigora por uma questão de inércia e por fingirmos ainda acreditar nele. Por mais que se culpem os tempos, os morangos com açúcar ou as redes sociais, a perceção corrente é a de que ele tem produzido fornadas de cidadãos eticamente falhos, frustrados, mal educados (e obviamente também mal-educados), cuja mentalidade os queen de freddy mercury retratavam com ironia na canção “I want it all, and I want it now” – eu quero tudo e quero-o já. Ainda assim esta é a versão ligeira, generalista do falhanço. Quem está mais dentro do assunto dá por si a lidar com um número crescente de garotos entregues às vontades com que a natureza os deu, inquietos, sobrexcitados, arrogantes, manipuladores, que aos doze anos têm mentalidade de quatro e para quem o registo normal anda habitualmente à volta de uma sobranceria palerma. De cortar o coração e, para quem olhe para o futuro, ficar deveras apreensivo.

É que isto não implica que ao mesmo tempo a malta não carregue já muitos sonhos de vida fácil, consumo abundante, riqueza, fama, glamour. Como entretanto têm sido criados em ambientes de ficção, o esforço com o qual deveriam dar-lhes forma naquilo que sabem ser o mundo real, a vida em sociedade, a existência em bloco, só podem meter-lhes medo. Daí o desejo inconsciente de permanecerem na infância, pois é mesmo disso que se trata: o grosso da garotada exibe todos os sintomas do pânico de crescer. Aliás não é por acaso que se deixam viciar por esse novo mundo virtual que lhes puseram à frente. Fugir a uma qualquer realidade assustadora não é o papel de todas as alienações?

a não é o papel de todas as alienações?

Minorias maioritárias

Entre as centenas que chegavam e partiam apareceu uma garota brasileira, preta, numa turma de décimo ano. Para mim à partida era apenas mais um, tanto se me dava. E a ela pelos vistos também, pois exibia um ar de quem estava de férias ná európá (e de facto estava, como se veio a constatar), o que para um brasileiro parece ser o suprassumo. De forma que se limitava a curtir, a gozar o panorama, a tentar transformar aquilo tudo numa espécie de rave party. Não que isso a distinguisse muito da maioria dos autóctones, mas um dia, a páginas tantas, já depois de ter abundantemente esticado a corda, endereçou um daqueles comentários soezes a uma parceira das filas de trás e não tive outro remédio se não expulsá-la. Levantou-se a custo, a clamar injustiça e a trovejar abominações que ao sair descarregou na porta, não sem antes ter desferido uma farpa peçonhenta: êzti prôfêssô não góztá di pêssoáz difêrêntiz!
Descontando o lado burlesco, o incidente parece-me ilustrativo de algo que à falta de melhor eu classificaria como racismo-ao-contrário. Embora as atitudes que o caraterizam transcendam a questão da raça e se estendam a outras minorias, em traços gerais elas resumem-se a fazer render o rótulo de desfavorecidas que lhes é colado. De que modo? Agravando alguma discriminação que possa existir, e sempre existirá, gritando aqui d’el rei perante o que se suspeite serem ameaças, ainda que leves, ainda que imaginárias, reivindicando um estatuto à parte que as compensaria do suposto desfavorecimento, proclamando mesmo o direito a condutas infratoras, tais como apedrejar polícias e outras que tais. E era assim protegida, assim estribada nessa condição de membro de duas minorias exploradas, jogando a cartada da vitimização, que a brasuquinha pretendia reinar. É certo que para tanto contava com algum sentimento de culpa, e portanto de complacência, por parte de um elemento da maioria exploradora, o professor. Mas como este não estava pelos ajustes, logo “não gostava de pessoas diferentes”.
Quase nem valeria a pena falar da dificuldade em definir o conceito de desfavorecido, dado nunca ser evidente demarcar fronteiras nítidas entre aquilo que é e o que não é. Inserir alguém nessa categoria ou noutra qualquer é muitas vezes um ponto de vista que depende da época, do lugar e do observador que o faz. Além disso é sempre necessário contar com a relatividade das coisas. Uma minoria que se tenha por marginalizada aqui no espaço da união europeia, por exemplo, goza de apreciáveis garantias se comparada com imensas maiorias espalhadas por esse mundo de cristo. O que mostra também que é possível a uma pessoa pertencer ao mesmo tempo a uma minoria desfavorecida e a uma ou várias maiorias privilegiadas, considerando-se elemento da primeira e omitindo a(s) segunda(s) se em determinadas circunstâncias lhe der jeito.
Mais constrangedora é a noção de que não é por integrarem grupos de alguma forma considerados desfavorecidos que as pessoas deixam de ser pessoas. É perceber que os “diferentes” não são assim tão diferentes daqueles que acusam de segregação. Se não, vejamos. Há minorias que costumam ser marginalizadas, estigmatizadas? Pois há. Mas maiorias também. Tenhamos em conta que a história universal tem sido um longo percurso em que todo o tipo de minorias tem segregado, subjugado, explorado maiorias, independentemente de umas e outras serem constituídas por negros, imigrantes, ciganos, homossexuais, canalizadores, limpa-chaminés. Qualquer grupo minoritário que ganhe alguma ascendência e se guinde ao poder esquece rapidamente a antiga condição e passa a subjugar, discriminar, explorar os outros, isto é, as maiorias.
À parte todos os progressos, é assim que somos. Primeiro os meus interesses e os do meu grupo e muito lá para o fim (e se calhar), o bem comum, a solidariedade, a ética, os valores. Uma fatalidade. Daí a minha desconfiança de que, no caso de eventualmente o poder sorrir um dia às suas minorias ditas desfavorecidas, apanhadas à brida solta, não tardaria a que os homossexuais me declarassem degenerado, os ciganos colocassem sapos à entrada das lojas onde quisesse entrar, os negros instituíssem um apartheid que me isolaria deles e respetivos privilégios, os imigrantes me barrassem a entrada no “seu” novo país. Pessimismo? Não creio…

Os erros de jean-jacques

Nunca li uma única linha de rousseau. Há muita coisa para ler e o tempo não dá para tudo. No entanto já tropecei nele vezes sem conta e parto do princípio que tenha mesmo dito que as pessoas nascem boazinhas, algo que contradizia o conceito de pecado original até então aceite, e depois se estragam no convívio com a sociedade (quer dizer, com as outras pessoas). Não se podendo avaliar ninguém sem saber o contexto em que afirmou o que afirmou, arrisco ainda assim um pequeno comentário a essa ideia, à primeira vista inocente, mas que quanto a mim tem feito estragos no mundo de há duzentos e cinquenta anos a esta parte.

É certo que do seu ponto de vista, adotado depois pelas esquerdas, o indivíduo é considerado corrompido. Mas não tem que se preocupar, pois a culpa cabe inteirinha aos outros indivíduos. Alguém sugeriu que não existe coisa tão idiota que não possa ser dita por um filósofo, o que me parece ter sido o caso. Se fôssemos paridos em estado de natural bondade e depois nos metessem à força no meio de seres alienígenas que, tendo em vista uma experiência científica qualquer, nos arrastassem aos caminhos do mal para ver o efeito, até se poderia aceitar essa teoria a que poderíamos chamar “das más companhias”. Que também se justificaria no caso de haver duas humanidades, uma malévola que formasse os grupos e as instituições e outra que se limitasse a deambular passivamente dentro deles.

Ora nem uma nem outra destas suposições é verdadeira. O suíço não reparou que a sociedade (os grupos) não existe como coisa concreta. O que existe são pessoas singulares que, embora de algum modo ligadas a outras, não deixam de ser as mesmíssimas pessoas, únicas entidades que possuem consciência, razão, vontade e capacidade de ação pela qual respondem. É inegável que aqueles a quem nos juntamos nos podem influenciar, e de que maneira. Basta pensar que muitas vezes a imbecilidade dos ajuntamentos é muito superior à soma das imbecilidades individuais, o mesmo se podendo dizer da sua capacidade de praticar o bem. Mas nós também os influenciamos a eles: se é certo que uma víbora que caia numa família ou numa repartição pode ter o mesmo efeito que uma maçã podre numa cesta, também se sabe que há no mundo almas que têm o condão de o mudar para melhor, não só agindo sozinhas como fazendo-o até muitas vezes contra tudo e contra todos.

Como membro de um grupo e companhia dos restantes membros, influencio e sou influenciado, beneficio e sou beneficiado, corrompo e sou corrompido. Para os outros, o outro sou eu. Tenho um papel em tudo o que acontece. Ajudo a fazer a sociedade que me faz. A história da pescadinha de rabo na boca, o dilema do ovo e da galinha. De forma que dividir a humanidade em duas categorias, uma constituída pelas pessoas singulares, inocentes, e outra pelos grupos, a origem do mal que se instalaria nelas, é um absurdo que me faz lembrar os filmes do faroeste – índios maus e cobóis bons; a desculpa dos miúdos que fazem traquinices – não fui eu, foi aquele; os pais dos miúdos justificando as ditas traquinices – as más companhias; ou, acrescentaria eu, a síndrome da vista cansada – ver bem ao longe e mal ao perto.

Esta distorção infantil que consiste em vermo-nos sistematicamente como vítimas dos outros foi assentando na mente coletiva pelas décadas afora antes de triunfar nos tempos que correm, acarinhada pelas esquerdas e pelo estado, explorada até à náusea pelos meios de comunicação. Basta dizer que quase não há hoje quem não derrame abundantes lamúrias por dá cá aquela palha e não entoe a canção do desgraçadinho quando se depara com câmaras de tv, um tique já quase tão natural como respirar.

Enorme obstáculo ao autoconhecimento (e ao conhecimento em geral), a vitimização é também por isso inversamente proporcional à responsabilidade, e também por isso muito nociva. Desde que começou a proliferar, há de haver meio século mais coisa menos coisa, vamos já com duas gerações avessas a regras e deveres, ética e civicamente deficitárias, mas que se choram. O mal está disseminado, pelo que me limito a exemplificar com algo que me toca de perto e incomoda imenso: nas escolas públicas há cada vez mais meninos que se conduzem como selvagenzinhos; do ponto de vista deles e dos papás a culpa é dos professores (cá está, da sociedade…), uns incompetentes que “não os conseguem controlar”.

 

Esquerda, direita, um, dois

Lembro-me como se tivesse sido ontem daquela magnífica festa de há quarenta e cinco anos que, como um bom agoiro que se lê no livro da natureza, se fez anunciar numa bonita manhã de primavera e sol nos espaços exteriores do liceu. Quase toda a malta da minha geração a acolheu de braços abertos com o idealismo, a ingenuidade, a ignorância que todos os dezoito anos costumam autorizar. A nossa perceção das coisas da política era fraquinha, para não dizer nula, e nem liberdade nem democracia nos diziam grande coisa: uns meses antes um ministro do salazar tinha sido lá recebido com discursos bajuladores e as honras do costume.

Era o que se passava com o povo em geral. Mas as festas, todas elas, são pausas saborosas no fim de longos dias de rotinas extenuantes; momentos em que os quadris se aliviam do peso desta linha produção que é a vida; intervalos em que uma ordem instituída relaxa a sua lei, ou se afasta para uma outra ordem instituir uma outra lei. Por acréscimo, aquela prometia paz a um país em guerra, pão a uma terra de fome inveterada, saúde a um povo abandonado às suas dores e moléstias, educação a uma população que não sabia ler. Se juntarmos ainda o brinde da liberdade e da democracia, compreendem-se bem os espasmos em que tudo aquilo deu.

Devia ter sido interessante para um observador vindo de fora assistir ao corrupio de ideias que flutuavam no ar por essa altura e ao frenesi de gente acotovelando-se para as apanhar. Posto que o nosso forte nunca foi pensar, aderíamos às coisas por todo o tipo de razões egocêntricas e inconscientes, isto é, mais ou menos com a mesma racionalidade com que antes tínhamos decidido ser do sporting, da académica ou da sanjoanense. Nem preciso de ir muito longe: a minha colagem imediata às esquerdas não tinha por trás nenhum conhecimento amadurecido (nem por amadurecer) do ser humano e da vida em comunidade. Simplesmente, as promessas generosas da revolução eram música para os meus ouvidos de desfavorecido.

Éramos brutos, tal como hoje, e não era difícil convencerem-nos fosse do que fosse. Porque tudo nos era servido como num self-service doses de fast food prontas a comer, comíamos do que nos punham à frente. E depois, as ideias da moda tinham o aval de filósofos, intelectuais, políticos, tudo gente de gabarito que pensava por nós. Apenas um exemplo: passámos quase todos a ser ateus empedernidos, mas, curiosamente, engolíamos com avidez o catecismo de uma nova fé, à qual não faltavam profetas, escrituras, promessas de salvação, messias, apóstolos, mártires, papas, missas, romarias. O fervor da crença chegava mesmo a proporcionar visões, individuais e coletivas.

Se não, vejamos. Uma das primeiras coisas de que nos persuadiram foi que as ideias políticas se repartem por dois grandes campos que mutuamente se excluem e combatem, esquerda e direita. Acoplado a isso, era evidente para nós que arrastados nessa luta se digladiavam também povo e burguesia, operários e patrões, pobres e ricos, explorados e exploradores. Simplista como todos os esquemas, mas tão eficaz que se mantém a funcionar e ainda nos empolga. Curioso é que os segundos termos destes pares foram rapidamente diabolizados. Ser de direita não era ser alguém que pudesse ter ideias válidas e defender modelos de sociedade. Concentrada no adjetivo fáxísta, então em voga, a categoria não só desqualificava qualquer um como tinha mesmo caráter insultuoso. Em resumo, à pobreza do pensamento maniqueísta direita-esquerda acrescentava-se a indigência do pensamento único.

Com o tempo ficámos amarrados à ideia como barcos a um cais, e tomámo-la por tão real como um pau ou uma pedra. Também é verdade que ela vai funcionando dentro do jogo democrático, ao fazer dialogar pontos de vista antagónicos e complementares de cuja síntese se constrói a vida em sociedade. Mas fraturar a vida política (e portanto as nossas mentes) em duas partes é tão arbitrário como fraturá-las em quatro ou oito, não passa de uma convenção como qualquer outra.

Direita e esquerda existem dentro de nós como duas tendências que dialogam entre si e a natureza nunca se teria lembrado de apartar: razão e coração. Cada uma delas devia ser um miradouro para contemplar o panorama antes de avançar, não uma moradia de cuja janela se olha a mesmíssima paisagem durante a vida inteira.

Esquerda, direita, um, dois

Lembro-me como se tivesse sido ontem daquela magnífica festa de há quarenta e cinco anos que, como um bom agoiro que se lê no livro da natureza, se fez anunciar numa bonita manhã de primavera e sol nos espaços exteriores do liceu. Quase toda a malta da minha geração a acolheu de braços abertos com o idealismo, a ingenuidade, a ignorância que todos os dezoito anos costumam autorizar. A nossa perceção das coisas da política era fraquinha, para não dizer nula, e nem liberdade nem democracia nos diziam grande coisa: uns meses antes um ministro do salazar tinha sido lá recebido com discursos bajuladores e as honras do costume.

Era o que se passava com o povo em geral. Mas as festas, todas elas, são pausas saborosas no fim de longos dias de rotinas extenuantes; momentos em que os quadris se aliviam do peso desta linha produção que é a vida; intervalos em que uma ordem instituída relaxa a sua lei, ou se afasta para uma outra ordem instituir uma outra lei. Por acréscimo, aquela prometia paz a um país em guerra, pão a uma terra de fome inveterada, saúde a um povo abandonado às suas dores e moléstias, educação a uma população que não sabia ler. Se juntarmos ainda o brinde da liberdade e da democracia, compreendem-se bem os espasmos em que tudo aquilo deu.

Devia ter sido interessante para um observador vindo de fora assistir ao corrupio de ideias que flutuavam no ar por essa altura e ao frenesi de gente acotovelando-se para as apanhar. Posto que o nosso forte nunca foi pensar, aderíamos às coisas por todo o tipo de razões egocêntricas e inconscientes, isto é, mais ou menos com a mesma racionalidade com que antes tínhamos decidido ser do sporting, da académica ou da sanjoanense. Nem preciso de ir muito longe: a minha colagem imediata às esquerdas não tinha por trás nenhum conhecimento amadurecido (nem por amadurecer) do ser humano e da vida em comunidade. Simplesmente, as promessas generosas da revolução eram música para os meus ouvidos de desfavorecido.

Éramos brutos, tal como hoje, e não era difícil convencerem-nos fosse do que fosse. Porque tudo nos era servido como num self-service doses de fast food prontas a comer, comíamos do que nos punham à frente. E depois, as ideias da moda tinham o aval de filósofos, intelectuais, políticos, tudo gente de gabarito que pensava por nós. Apenas um exemplo: passámos quase todos a ser ateus empedernidos, mas, curiosamente, engolíamos com avidez o catecismo de uma nova fé, à qual não faltavam profetas, escrituras, promessas de salvação, messias, apóstolos, mártires, papas, missas, romarias. O fervor da crença chegava mesmo a proporcionar visões, individuais e coletivas.

Se não, vejamos. Uma das primeiras coisas de que nos persuadiram foi que as ideias políticas se repartem por dois grandes campos que mutuamente se excluem e combatem, esquerda e direita. Acoplado a isso, era evidente para nós que arrastados nessa luta se digladiavam também povo e burguesia, operários e patrões, pobres e ricos, explorados e exploradores. Simplista como todos os esquemas, mas tão eficaz que se mantém a funcionar e ainda nos empolga. Curioso é que os segundos termos destes pares foram rapidamente diabolizados. Ser de direita não era ser alguém que pudesse ter ideias válidas e defender modelos de sociedade. Concentrada no adjetivo fáxísta, então em voga, a categoria não só desqualificava qualquer um como tinha mesmo caráter insultuoso. Em resumo, à pobreza do pensamento maniqueísta direita-esquerda acrescentava-se a indigência do pensamento único.

Com o tempo ficámos amarrados à ideia como barcos a um cais, e tomámo-la por tão real como um pau ou uma pedra. Também é verdade que ela vai funcionando dentro do jogo democrático, ao fazer dialogar pontos de vista antagónicos e complementares de cuja síntese se constrói a vida em sociedade. Mas fraturar a vida política (e portanto as nossas mentes) em duas partes é tão arbitrário como fraturá-las em quatro ou oito, não passa de uma convenção como qualquer outra.

Direita e esquerda existem dentro de nós como duas tendências que dialogam entre si e a natureza nunca se teria lembrado de apartar: razão e coração. Cada uma delas devia ser um miradouro para contemplar o panorama antes de avançar, não uma moradia de cuja janela se olha a mesmíssima paisagem durante a vida inteira.

Deus e césar

Tendo começado a sair da escassez quando o século vinte já se encaminhava para o fim, as gerações que a tinham suportado acharam que deviam às seguintes mais desafogo material, níveis de vida dignos, saúde e escolaridade gratuitas, pensões de reforma, subsídios de desemprego. Nessa altura, tal como hoje e sempre, era vital tratar das necessidades do corpo, o que não se discute. Se a sua satisfação conduz diretamente à felicidade, isso já é mais problemático. O que então eram utopias materializou-se em grande parte. Não só o significado de pobreza não tem hoje nada que ver com o de há cinquenta anos, como as gerações mais novas da atualidade são as primeiras, em toda a nossa história, que viram satisfeitas aquelas necessidades cuja não-satisfação coloca a vida em risco.

Sentimo-nos agora mais realizados? Duvido muito. É bem provável que nos sintamos menos. Para já, tirando talvez aspetos óbvios tais como alimento, agasalho, abrigo, proteção, não existe forma de determinar o que são necessidades, tanto pela subjetividade sempre implicada nesse julgamento como pela criação constante delas a que o sistema económico induz. Por isso procurar satisfazê-las é muitas vezes como perseguir a linha do horizonte: quando se pensa estar a chegar lá, descobre-se que afinal se impõe outra caminhada para a alcançar. Dada a ausência de limites para o que somos capazes de necessitar e desejar, tendemos geralmente a adiar a satisfação para quando possuirmos mais isto ou mais aquilo, enredados em ciclos de procura que podem não ter fim.

Daí, tantas vezes, ao contrário do que se pretendia, a sensação de saber a pouco deixada pelos objetos adquiridos, pelos prazeres experimentados. E há mais. As coisas que elegemos como objetos de satisfação raramente são dadas de graça. De um modo geral, não só nos saem do corpo como exigem que nos acorrentemos a essa servidão consumidora dos nossos dias a que chamamos trabalho. Assim, a despeito de proporcionar algum prazer, pagamos com desprazer o que adquirimos, mesmo sem contar com a possibilidade de nos vendermos ao demónio para o conseguir, um tráfico frequente que está longe de trazer felicidade.

Mas quando se trata de identificar coisas materiais com bem-estar e satisfação, os que mencionei não são ainda os maiores enganos. É que uma porção considerável destes sentimentos não depende de indicadores económicos, nem aliás de nada exterior, antes de vivências íntimas, não-quantificáveis, embora bem reais e poderosas. De há umas décadas para cá a sociedade foi sendo sub-repticiamente impregnada de um desprezo (ou mesmo de vergonha) de inspiração marxista pelas coisas do espírito, pela ideia de que o ser humano é um corpo sem alma. Até podemos convencer-nos disso, mas nenhuma ideologia conseguirá alguma vez eliminar o facto de termos sentimentos, apreciarmos ou não o mundo e a vida, gostarmos ou não dos outros e de nós, amarmos ou odiarmos apaixonadamente.

Acima de tudo, havendo muitas coisas mais para lá do que podemos ver e compreender, a existência nunca deixará de ser para nós um mistério carregado de emoção. Acontece que mente e corpo, energia e matéria se produzem reciprocamente, algo em que albert einstein e as velhas escrituras estão de acordo. A realidade material das nossas vidas cria pensamento e sentimento, que por sua vez criam a realidade material das nossas vidas. É indiferente chamar a essa dimensão energia, psique, sopro divino, prahna, ki, matriz do universo, santa rita de cássia. O que importa mesmo é saber que ela alicerça e condiciona tudo o que somos tanto pela positiva como pela negativa.

Daí a necessidade de a cuidar com mais desvelo do que o corpo. Não o fazer deixa um vazio que geralmente tentamos preencher de muitas formas: acumulando bens, relações, experiências excitantes, procurando fama, idolatrando pessoas, expondo barrigas de gravidez no instagram, louvando fanaticamente a vitória do benfica no marquês. Mas nada desta ordem consegue eliminar o vácuo, o que nos coloca no fio da navalha, em risco de deslizar para vários tipos de pobreza, a começar pela económica. Pelo contrário, acarinhá-la pode abrir portas a um estado de satisfação que permita sobreviver com poucos alimentos ou, se o clima o permitir, achar a camisa dispensável e viver até na rua.