Eduardo Pires

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O sol na eira

Um olhar mais distraído dirá que os temas do ambiente têm vindo a entrar nas cabeças. Começamos a ter noção da irracionalidade com que por toda a parte se destrói a torto e a direito, fala-se em emergência e os discursos já roçam o pânico, a única coisa que nos leva a agir com caráter obrigatório e inadiável. Mas interiorizarmos o que interessaria de forma a que tal viesse a traduzir-se em algo concreto e eficaz ainda vem longe. Apesar das sirenes, e mesmo percebendo que temos um pé no precipício, é provável que nos habituemos a assistir placidamente à multiplicação de cenários universais de devastação (como os que estão a acontecer) sem mexer um dedo. A crise ambiental não foi algo que subitamente caísse do céu e nos apanhasse de calças na mão. Por princípio não sabemos fazer outra coisa a não ser alterar o que nos rodeia, está na nossa índole. Enquanto fomos poucos, os danos eram insignificantes. O perigo apenas surgiu quando, munidos de crescente capacidade destrutiva, e achando isso bom, começámos a abarrotar o mundo até chegar aos atuais quase oito mil milhões de indivíduos. Não contentes, fizemos de nós uma prodigiosa maquinaria de engendrar objetos sem fim, dependemos da aquisição deles como objetivo de vida e adoramos isto como se adoravam os deuses do olimpo. Resultado?... Tornámo-nos um monstro devorador do que apanha pela frente, literalmente capaz de emporcalhar o mundo com dejetos, modificar o clima, envenenar até aquilo que o alimenta. A nossa conduta equipara-se à do louco que se dispõe a demolir a própria casa ou come no prato e defeca nele ao mesmo tempo, aquilo a que nos referimos sob os eufemismos de crescimento, desenvolvimento, progresso. É caso para pensar se esta deriva na direção de um mais que provável apocalipse, com todos os ingredientes de aventura suicida coletiva, não será a confirmação da ideia freudiana do instinto de morte. A tragédia não está tanto em ignorar os problemas e suas causas como em ter de enfrentá-los com a mesma mente destrambelhada que os criou. Tal como um edifício é sustido por alicerces invisíveis, nós somo- -lo por impulsos obscuros que nos conduzem. Alguns podem inclusive levar-nos à ruína e seria útil repudiá-los. Mas como, se mal nos damos conta deles? Valha-nos que as dificuldades, tal como as soluções, estão todinhas no abismo obscuro da nossa alma, que sem parar nos pisca o olho e convoca a escutá- -la. Só que penetrar nela para conhecer umas e outras implica tais canseiras e tais medos que a primeira reação de quem o tenta é fugir espavorido. De qualquer jeito, há sempre o perigo de a explorar e no regresso à luz exigirmos de nós mudanças de atuação tão radicais que psicologicamente equivaleriam a uma morte. Então, morrer por morrer que seja ao menos com a maior comodidade, sem abdicar de velhos hábitos e se possível de barriga cheia. Eis por que nos viramos para fora e desforramos em comida, em bebida, em sexo, em jogo, em excitação, em químicos, em futebol, em redes, em busca de prestígio, em carreiras, em viagens, em explorações nos vários sentidos, em conflitos, em violência, em ódio, em cretinice, em toda a sorte de exageros presunçosos e imprudentes, conhecidos por húbris, que levavam os antigos heróis gregos à perdição. Porém a nossa tábua de salvação preferida, mistura dos pecados da gula e da ganância, é o consumo desenfreado, a acumulação de objetos e bens, a competição por vidas exteriormente mais e mais recheadas, caminho sem regresso que nos vai mantendo alienados até que rebentemos com os recursos a terra e com ela própria. E de tudo isto advém a minha pouca fé em sustentabilidades. O que ansiamos consertar no exterior é uma tarefa hercúlea que apenas pode ter lugar internamente, no dia em que nos sentirmos maduros e com coragem para a levar a cabo. Hoje ainda estamos na fase de querer em simultâneo uma coisa e o seu contrário, abusar do ambiente e querê-lo saudável. Por bizarro que soe a ouvidos racionalistas, à espera de melhores dias cada um pode ir praticando em casa, em solidão, em silêncio, longe das multidões, esse mergulho no oceano imenso e misterioso que tem dentro e fazer introspeção a fim de se conhecer. Ou rezar, se preferirem chamar-lhe assim. É difícil, como disse, mas costuma ser estranhamente eficaz e ao menos enquanto tentamos não arruinamos o que a natureza nos deu.

O ocaso do voseio português

Boa tarde, forte gente! Que os dias longos deste novo Verão vos preencham de boas afeições e perspetivas. Um Verão desimpedido e genuíno é de aproveitar com unhas e dentes. Numa época em que as gentes afluem ao Nordeste para estar e conviver, para tornar os espaços mais desentorpecidos, venho falar de comunicação entre pessoas, das palavras que nos saem da boca, vocábulos que definem distâncias, reverências e respeitos. Refiro-me a um bem pequeno, com três letras se diz a palavra vós. Falo do chamado voseamento ou voseio, o uso do pronome vós como forma de tratamento, concretamente aquele que é dirigido a uma só pessoa, que antes se aplicava comummente em algumas zonas do Nordeste Trasmontano. De filhos para pais, de filhos para tios ou avós, no fundo, de novos para velhos. Frases como “Onde ides?” ou “vós é que sabeis” aplicadas a um interlocutor singular, estão em profundo desuso, ouvindo-se já muito raramente. Por exemplo, no seio familiar usavam-se os vocativos “vós meu pai”, “vós minha mãe” ou “vós meu avô/vós minha avó, de que são exemplo as frases, “vós meu pai, vinde cá”, “vós minha mãe, que andais a fazer?” ou “vós meu avô, esperai por mim”. Há algumas décadas, os mais novos não se atreveriam a tratar parentes ou vizinhos mais velhos de outra forma. Este tipo de voseio não é recíproco, ou seja, efetua-se (ou efetuava-se) na forma vós-tu pois as pessoas mais velhas respondiam com a segunda pessoa do singular. É uma forma de tratamento única na língua portuguesa e amplamente desconhecida, inclusive pelas obras de referência dos estudos linguísticos. A Nova Gramática do Português Contemporâneo de Cunha e Cintra (2002) diz em relação ao uso do pronome vós para referir uma só pessoa, “empregar-se uma vez por outra, em linguagem literária de tom arcaizante para expressar distância, apreço social, tendo sido por muito tempo usado por católicos portugueses e brasileiros como forma de se dirigirem a Deus, prevalecendo o seu uso ainda nos dias de hoje” (p. 287-288). De igual modo, Teyssier (1997) em História da Língua Portuguesa afirma que “desde o século XIX a segunda pessoa do plural sai completamente do uso falado” (p. 60), assim como Biderman (1972) que é igualmente elucidativa na sua obra Formas de tratamento e estruturas sociais: “vós desapareceu de todas essas sociedades, conservando-se, enquanto forma, apenas na Argentina e no Uruguai (p. 373).” A verdade é que este vós nem desapareceu, nem saiu ainda completamente. O voseio português sempre viveu entre nós durante todo este tempo, embora despercebido entre as gentes raianas da Terra Fria trasmontana. Os vários séculos de hierarquia, de reverência e de respeito entre diferentes gerações e classes sociais redundaram nas últimas décadas em mudanças socioculturais que alteraram profundamente os cânones das relações interpessoais e das formas de tratamento. A massificação dos pronomes você e, sobretudo, tu, tem desertificado outras formas de tratamento nos mais variados registos e contextos sociais. Nesta perspetiva, podem-se reter as palavras de Cunha e Cintra (2002) de que o pronome tu era até há bem pouco tempo, no Português de Portugal, a forma própria de marcar as distâncias de superior para inferior hierárquico, enquanto hoje “tende a ultrapassar os limites da intimidade, propriamente dita, em consonância como uma intenção igualitária ou, simplesmente, aproximativa (p. 293). Refira-se também Gouveia (2008) quando defende que se vivem tempos em que o discurso público é modelado em função das práticas discursivas da vida quotidiana, como é disso exemplo a forma como os jornalistas se referem às figuras de Estado. É a quotidianização do discurso num sistema de base igualitária onde os indivíduos “não sentem que existam diferenças de poder e de envolvimento entre as pessoas com quem interagem” (p.98) redimensiona e transforma, por sua vez, as interações sociais e a percepção de nós e dos outros enquanto actores sociais. O voseio vós-tu constitui uma forma de tratamento única (e desconhecida) na língua portuguesa. O seu uso circunscreve-se a algumas localidades fronteiriças do Nordeste Trasmontano e tem origens dúbias que alguns autores associam ao mirandês, a dialetos asturo-leoneses, mas também ao português antigo. A inexistência de reciprocidade, o pronome vós é usado apenas unilateralmente, e o facto de a idade e a proximidade com o interlocutor serem factores determinantes no momento de escolher esta forma de tratamento, constituem características singulares e diferenciadoras, por exemplo, do usado no espanhol americano. Este voseio contém uma mistura única de familiaridade e reverência, de intimidade e respeito, de afetuosidade e consideração, de proximidade e distância, enquanto tratamento formal para relações próximas e informais. Como tal, o decair do voseio representa também o esvaecer do tratamento de formalidade dentro da informalidade expresso nas relações familiares e comunitárias em língua portuguesa. Apesar de todas estas particularidades, encontra- -se em acentuado declínio. O ocaso do voseio vós-tu das formas de tratamento do Nordeste representa também o ocaso de um determinado tempo e de uma determinada geração. Considerando-se uma língua como uma herança histórica e cultural que cada geração vai transmitindo à seguinte (Sausurre, 1974) é inteligível que existam usos que se percam e outros que se adquiram ao longo do caminho que as sociedades percorrem. Por hora, cabe ao bós do mirandês manter esta voseada herança nordestina como um dos vários desafios que se apresentam a uma língua minoritária. Em fim de ciclo ou de geração, o voseio vós- -tu do português no Nordeste Trasmontano é hoje pouco mais do que a reminiscência de um passado na iminência de acabar e contra o qual parece haver pouco a fazer. Nota: Ao longo destes anos é a primeira vez que vos deixo umas palavras não de todo originais, uma vez que se baseiam num artigo que publiquei o ano passado numa revista brasileira de linguística, denominado “O (o)caso do voseio português do Nordeste Trasmontano”. Obrigado. Um forte abraço!

A lógica do mercado

Pelos vistos há falta de professores. Milhares de alunos têm passado anos inteiros sem algumas disciplinas do currículo. Há dias um jornal titulava: número dos que estudam para ser professor caiu setenta por cento em vinte anos. Como seria de esperar aqueles que militam no pensamento dominante dão explicações mais ou menos fantasiosas: ora a falta de vocação por parte dos mais jovens, ora as exigências de uma profissão desgastante, ora a ausência de incentivos para os que tem que se deslocar, etc. e tal. Ao contrário dos universitários que olham para o mercado de trabalho, o preconceito não lhes permite atingir as verdadeiras causas. Quem as conhece de sobra são as dezenas de milhar de almas que trabalham nas escolas. Mas essas procuram disfarçá- -las por se sentirem culpadas daquilo que não são e porque, como estão ali a ganhar a vida, não querem levantar muita poeira. Ora eu já me pirei, não estou atracado a direitas ou a esquerdas e pensar fora da caixa dá-me algum gozo. Além disso sei bem do que a casa gasta. Esbracejei nela para não ir ao fundo nada menos que quarenta e três anos, o que não é pouco, e a experiência diz-me que quem agora poderia decidir ser professor não o faz por outras razões. O doutor freud dizia que educar consiste no difícil trabalho de domar os instintos, o truque que permite a vida social. Dá-se o caso de andarmos há muito a fazer o contrário, isto é, a soltar o selvagem que está latente em cada ser humano. As causas são várias e complexas. Lembro- -me de que já os morangos com açúcar recriavam aulas que tiravam seriedade a uma coisa que de si tinha pouca, transformando-as em anedotas e aceitando com leveza a má conduta da ganapada. E de dois programas que parodiavam situações idênticas: os batanetes, da sic, e a turma dos chanfrados, da globo. Os sketches de uns e outros até podem ter alguma piada para quem ignore que se trata de um retrato fiel do que se passa na maioria das salas reais. Os restantes, é mais certo que arrepelem os cabelos. Porém a nossa desgraça é anterior. As ideologias de raiz jacobina, percebendo que o que se mete nas cabeças infantis fica para sempre e vai mais tarde dar forma à própria sociedade, para além de outros métodos subversivos investiram em força na escola do estado, razão pela qual ela hoje se recusa a responsabilizar os miúdos pelos seus atos, não sabe o que fazer com a indisciplina, a violência, a delinquência, o crime e deforma mais do que forma. Na generalidade das salas de aula é o caos. Regem-se pela mais desenfreada parvoíce, vai nelas uma festa rebaldeira onde os profes são os bombos e que todos escondem com vergonha. É justamente o que se pretende: dali passa-se para as ruas e é a doer. Ninguém sabe isso melhor do que quem passou doze anos a limpar o pó daqueles bancos. Como lhes resta alguma autoestima não querem ser enxovalhados e fazem o manguito à ideia de regressar. Com algum jeito até terão assistido a entradas alucinadas dos próprios progenitores por ali adentro maltratando quem tentava dar o seu melhor para lhes educar os cachopos, coisa que nem saberiam o que fosse. Aconteceu- -me na parte final da carreira assistir a cenas do estilo, e um belo dia, dando conta de ter andado a cantar a grândola vila morena cheio de fé a pensar no bem de gente como aquela, tive vontade de dar com a cabeça nas paredes. E depois ai jesus que os jovens não escolhem o ensino… Pois não… Às tantas, como os seus papás, desprezam e abusam de tudo o que é de borla. Quando lá andaram talvez se tenham apercebido da vida facilitada em termos de exigência e avaliação dos colegas de carteira com necessidades educativas especiais e fingido ser tontos para terem as mesmas regalias. E não é que tinham?!... Quem sabe se agora o pudor e a dignidade que lhes restam não os afastarão daquilo tudo… Eu não tenho dúvidas. Ter gramado a comédia da escola comuno-socialista autoriza- -me a declarar sem aspas que nunca nos dias da vida a aconselharia a alguém de quem gostasse. Indicava-a sim a indivíduos que busquem desportos radicais, masoquistas que não prezem a saúde da mente ou alguém a quem deseje má vida. Fora isso, a falta de docentes não tem que ser negativa. Vai piorar, mas há males que vem por bem e espero sinceramente que um dia se lhes aplique a lei mercantil da oferta e da procura, segundo a qual a abundância de um produto o deprecia e a escassez o valoriza.

Tempo de mata-porco

Fábula fascinante, o livro de 1945 do inglês george orwell “animal farm”, título por cá curiosamente traduzido por “o triunfo dos porcos”. Na sequência de um motim em que o malvado senhor jones, o dono e explorador de uma quinta, levou um pontapé no traseiro, os animais que lá havia começaram a idealizar um futuro de prosperidade e satisfação onde ninguém mais viveria à custa de ninguém e a amizade geral reinaria forever sob o lema “os animais são todos iguais”. Claro está, mesmo um espaço rearrumado e alumiado por nova filosofia precisa de comando, de forma que alguém teria que gerir aquilo. Podiam perfeitamente ter sido os matchos, os tchibos, qualquer outra classe irracional a assumi- -la, mas em última análise, por se acreditar tratar- -se dos mais finos, vingou a ideia de que caberia aos porcos a grande responsabilidade. E assim foi. “Animal farm” relata, numa alegoria irónica e pessimista, aquilo em que no fundo têm dado as revoluções políticas dos últimos duzentos e trinta anos. Não vou contar a história, é mais interessante lê-la. Avanço apenas para aguçar o apetite do leitor uns pozinhos da parte final, anos após o tumulto, numa altura em que os suínos, tendo açambarcado os poderes que antes cabiam à família jones, prosperavam já em número, regalias, isenções, privilégios e adiposidade. Quanto às restantes alimárias, bom, manipuladas, exploradas e subjugadas como sempre. E como sempre imoladas por último no açougue, só que agora em prol da ceva dos laregos. Mormente nos dias em que se comemorava a insurreição, nunca estes deixavam de entoar hossanas agora quase vazios de sentido à liberdade e à fraternidade, ao mesmo tempo que instavam a outra bicheza a vociferar palavras de ordem onde abundavam os “morte aos jones”, “não à exploração”, ”jonismo nunca mais” que os tinham embrutecido desde o início. Aliás, juravam a pés juntos estar ali já instaurada a igualdade, embora esta fosse bastante mais óbvia pela loja dos cerdos adentro, que já com essa ferrada tinham mudado o lema inicial para “alguns animais são mais iguais do que outros”. A frase ficou no ouvido do público porque o erro gramatical que contém mostra outro mais grave: achar que um dia será possível a humanos não viverem à custa de humanos. Atente-se neste quadrilátero com vista sobre o atlântico e reveja-se a história do último meio século. Quem não for capaz de encontrar semelhanças entre ele e a herdade do orwell, e não entender que também aqui os grunhos se assenhorearam de praticamente tudo, é porque se inclui no número dos narcotizados, talvez por efeito do gás nauseabundo que as pocilgas exalam, se bem que o esterco que foram produzindo se acumule hoje por todos os recantos cá do sítio. Com o que arrebanharam pelas manjedouras da fazenda, exibem fartas queixadas pendentes, arrastam toucinhos de palmo, rebentam com tanto unto, não se aguentam de cevados. E nós também não os aguentarmos, anda tudo pelos cabelos de recos. Calha bem que estamos em tempo de matanças. O que há de mais por aí são bichos ávidos de lhes ocupar o lugar à borda das pias. Não serão melhores que eles e mal cheirem as biandas o seu primeiro pensamento será a autoengorda. Se há alguma coisa em que os animais se possam considerar iguais é na inclinação para meter a unha no que não é deles. Mas enquanto o pau vai e vem folgam as costas. Morte aos javardos! Animem-se os perus, apoiem-se os bois, encorajem-se os gansos, dê-se uma mão aos carneiros, acreditem-se os galos, consinta-se até na fraqueza de uma oportunidade aos burros! O banco tosco de freixo foi lavado das aranheiras ganhas desde a última função, refulgem as navalhas aguçadas na pedra ali ao lado. Aprontem-se os caçoulos onde recolher o sangue que vai jorrar. Tenham-se à mão os caldeiros onde as tripas irão ser lavadas ao ribeiro. Arregacem-se as mangas, prenda-se firme a corda ao focinho dos cotchinos, puxe-se quanto se possa fazendo orelhas moucas aos seus grunhidos estridentes, estendam-se bem ao comprido, amarrem-se-lhes firmemente os volumosos presuntos e enterre-se o ferro bem fundo mesmo junto à base interna de uma das patas dianteiras, o trajeto mais curto até ao coração. Aproveitem-se as fressuras para um apetitoso refogado à moda antiga, empurre-se o lauto almoço com pinga da boa e brinde-se ao fim da era desta raça. Não haja pena deles.

Dura e branda lex

Acreditamos ou não na justiça precisamente por ela ser incerta, valor variável numa escala graduada em cujos extremos se opõem o péssimo e o ótimo e um ponteiro se desloca aproximando- -se de um enquanto se afasta do outro. As suas fraquezas estão muito para cá de haver juízes e procuradores corruptos. Começam na ação de legislar, tarefa habitual de gente instruída, privilegiada. Só ignorando o egocentrismo inato do ser humano se poderia pensar que não teriam em conta os interesses próprios, os dos seus, os da classe. Vai contra as leis da biologia que quem parte e reparte não fique com a melhor parte. Autopreservação, instinto de sobrevivência, dirigem tudo o que fazemos. Ser parciais é da nossa índole, anterior e mais funda que a raça, o género, a posição, a instrução, ser rico, pobre, poderoso, humilde, viver neste ou naquele regime, sistema político ou económico, considerar-se conservador, progressista, revolucionário, reformador. Do ponto de vista do poder económico/financeiro, o primeiro poder, a democracia traz instabilidade a cada pouco tempo, impondo- -se trocar as voltas à insegurança que vem com ela. Pode ser pela criação de estruturas que sob uma fachada de ideais humanitários e procura de autoconhecimento manobram na sombra. Falo evidentemente dessa coisa a que chamam maçonaria. Mais simples e eficaz é tomar conta dos grandes partidos, fazendo com que designem para o parlamento servidores seus cuja função será elaborar leis para a salvaguarda futura dos negócios e em quem votamos como se nos fossem representar. Se for gente do direito, melhor. Como estes paus-mandados também costumam alimentar projetos pessoais de enriquecimento à margem das leis, travam por sistema tentativas de legislar contra ele. Não se pergunta a quem tem ideias de gamar se quer ser condenado quando um dia o fizer. O legislativo tem este senão, o executivo designa quem lhe convém para as chefias do judicial e este faz aplicar leis que os outros três deram à luz. De separação de poderes estamos conversados. Enquanto não for trabalho de máquinas, os dados vão viciados antes de alguém sequer os lançar. Quem se admira portanto que a justiça seja por norma reverente para com os poderosos e sinta uma visível inibição em chamá-los a si? Que haja imensas e tortuosas leis, interpretáveis de forma mais ou menos tendenciosa por advogados em função do que se lhes paga? Que de uma decisão possa haver recursos sobre recursos consumidores de tempo, traduzido na prática em regalias para quem prevarica e tem mais dinheiro? Que haja um dia em que um crime deixa de ser crime? Aquele ex-primeiro-ministro-personagem-de-farsa e o banqueiro que corrompia meio mundo vão ser julgados por um quinto daquilo de que eram acusados. No fim, aposto que condenados por nada e a pedir uma indemnização ao estado, isto é, a nós. Nos dias seguintes a esse anúncio talvez há muito pensado foram-nos dizendo que agora sim, daí para a frente é que se ia combater finalmente o flagelo da corrupção. Apesar de lorpa, o povo é propenso a ataques de mau-humor e intempestividade, desaconselha-se excitá-lo muito. Mas não vale a pena ir a fugir preparar discursos exaltados para o defender. Visões idealistas acerca dele conduzem geralmente à deceção. Sempre que pode faz pior. Um indigente sem qualquer literacia dando por acaso de caras com a varinha mágica que lhe permitisse legislar aproveitaria de imediato para puxar a brasa à sua sardinha. Enquanto e não, as melhores garantias de que goza serão sempre a sua boa conduta, pois se lhe acontecer virar-se do avesso e chamar publicamente besta a uma cavalgadura o que tem mais certo é sentar o cu no motcho, passe o popularismo. Com tantas faltas que lhe são apontadas, mortinho por mostrar serviço, para ele o tribunal terá mão de ferro. Apesar de tudo é reconfortante viver num regime que assegura direitos e liberdades, deus no-lo preserve. Vamos andando menos mal com a justiça que temos. É melhor que a da libéria, de certeza, e o tempo se encarregará de a aprimorar à medida que a europa nos for obrigando a isso. Por ora ela tem em mente não tanto os cidadãos que prezam os valores morais e o civismo na vida em comum como aqueles a quem isso passa ao lado. Bastante menos a pacata base da pirâmide que ganha a vida honestamente do que as cúpulas turbulentas e gananciosas.

Parecer ser

Ao falar das nossas vidas temos o cuidado de ziguezaguear por entre os inúmeros episódios delas evitando aqueles que nos poderiam embaraçar, escolhendo os mais apresentáveis. Ainda assim não deixamos que estes saiam de qualquer maneira, também é costume dar-lhes uns retoques para ficarmos bonitos na fotografia. Quem conta os seus contos não acrescenta só um ponto, acrescenta e subtrai os pontos que quer, e com o tempo deixa muitas vezes de ter a noção precisa do que lhe aconteceu ou não. Repetimos certas tretas tanta vez que passamos a acreditar nelas, as chamadas falsas memórias. Dado poucos verem o que somos e todos verem o que aparentamos ser – como diz maquiavel – no palco das relações humanas cada um dá vida a uma personagem mais ou menos afastada de si próprio. É natural. Diz quem estuda que tal como todas as espécies vivas evoluímos para enganar os outros (e a nós mesmos) quer exibindo quer escondendo, ora com o corpo ora com palavras, para os atrair ou afugentar, o que nos garantiria melhores hipóteses de sobrevivência e reprodução. Como os espelhos estão fartos de saber, o faz-de-conta começa logo nos vulgares cuidados em parecer bem antes de saímos à rua de manhã e vai até ao drama comum de calarmos aquilo que é a nossa verdade maior, os sentimentos, por medo de sermos tidos como fracos e ridicularizados. Mostrar debilidades põe-nos em desvantagem competitiva, há que ostentar forças dê por onde der. O resultado é quase sempre uma série de papeis sociais a desempenhar, máscaras que colocamos tantas vezes que acabam por se nos colar à cara. Nessa medida, nada que se veja pela internet fora trouxe grandes surpresas. Ela impôs-se como a criação mais democrática da história ao revolucionar de forma admirável as possibilidades de ligar, comunicar, interagir, mostrar, trocar, mobilizar, aprender, fazer. Eram tendências nossas que já existiam. Youtubers, bloggers, influencers são meios recentes de multiplicar por milhões capacidades que tínhamos antes. Entretanto, na impossibilidade de pedir a uma tecnologia aquilo que nunca poderá dar, tornar-nos melhores, tal como tudo o que criamos, como a navalha que tanto corta o pão como põe as tripas do vizinho à mostra, ela pode ter bom ou mau uso. As redes sociais dão uma voz amplificadíssima e assustadora à ignorância, ao preconceito, à cretinice, à estupidez, à intolerância, ao ódio, à raiva, à maldade que nos segue desde sempre. São também redes no sentido em que nos podem prender em dependências, alheamentos e visões desfocadas da realidade e, para voltar ao tema com que iniciei, oferecer uma cena imensa onde representamos as nossas velhas narrativas. O dia a dia é normalmente feito de luz e sombra, grandezas e misérias mais ou menos intermitentes. Se calhar mais vezes cinzento e tristonho que outra coisa. Para equilibrar, damos asas à fantasia e criamos no facebook ou no instagram uma realidade alternativa que contraste com a mediocridade habitual. Um expositor de feira que mostre novidades coloridas e tape a tralha que temos por baixo. Vai daí, de telemóvel em punho, registamos certos aspetos, momentos e ângulos da família, da casa, da mobília, da decoração, do jardim, da comida, da roupa, das compras, das relações, das amizades, do carro, do passeio, do lazer, das viagens, da intimidade, de preferência enquadrados por cenários de fazer inveja, que vamos acrescentando à nossa história aos quadradinhos digital. Se for preciso somos capazes de fazer manifes partindo tudo o que nos apareça à frente em defesa da privacidade. Mas isso não tira de deixarmos uma multidão de estranhos, a que chamamos amigos, espreitar a página, perdão, a crónica diária da nossa excitante vida, em troca de aceitação, reconhecimento e um conceito muito particular de fama. A fábula cibernética não poderia deixar de lado a peça principal na corrida pela sedução reprodutiva, o físico. Caso seja apresentável, vale sempre a pena arriscar reparos dos seguidores e até algum bullying pela satisfação narcisista que via selfie ele nos dá. Há que oferecê-lo como mercadoria ao voyeurismo no seu máximo esplendor, seminu e sensual, enquanto é tempo. Assim como assim é um aliado pouco firme. Mesmo magro, com as medidas certas e tudo no sítio ameaça a toda a hora degradar-se e fugir aos modelos de beleza estabelecidos.

Entre a espada

A sociedade tecnológica/industrial, o capitalismo, o mercado, exploram a tendência que temos para acumular, mesmo quando a acumulação já se desviou muito do desejo legítimo de viver condignamente. Por seu lado, o marxismo cultiva a ideia impraticável de sermos todos iguais, a contrariedade invejosa de haver quem tenha mais do que nós, o direito a ter tudo o que os outros têm. Combinados na mentalidade comum deste tempo, e não opostos como habitualmente se pensa, os ismos dominantes têm sido irmãos siameses a incutir-nos o engano de que o objetivo das nossas vidas reside em obter cada vez mais bens e serviços. Focam- -se no corpo e colocam o bem- -estar em saciá-lo, porfiam em criar-lhe necessidades para que possam, ou não, ser satisfeitas. As duas ideologias equivalem-se no que toca a desprezar a outra vertente que nos pertence e define como seres inteligentes: aquilo que emerge da nossa parte física sem ser físico e necessita de um tipo de alimento que não é comida; os sentimentos nascidos de estarmos vivos e conscientes, sobretudo, e mais ainda até, depois de o corpo se encontrar saciado. Reduzem- -nos a uma espécie de autómatos ávidos de alcançar objetos que logo põem de lado para ir a correr à procura de outros. Tubos cegos que absorvem matéria por uma ponta, tirando disso algum prazer momentâneo, e a expelem em forma de dejeções pela outra antes de repetirem todo o processo. A contrariedade é que duzentos anos deste disparate têm vindo a implicar gastos globais incomportáveis, estragos que estão a amarfanhar a vida, canseiras escusadas, sofrimento a rodos. Não era preciso esperar tanto tempo para o sabermos. Entre outros, já o descortinara no século dezanove o conterrâneo guerra junqueiro ao referir-se à marcha do progresso como um carro sem travões, alertando para o previsível desastre. Uma fraqueza que nos tem acompanhado é deixarmo-nos liderar por gente grosseira. Não elegemos os mais capazes e avisados, preferimos aqueles que vendem o que queremos comprar: a miragem do consumo a aumentar continuamente. Banha de cobra que funcionava bem num mundo que já não existe, antes de começarmos a fazer contas à finitude dos recursos, ao aumento desregrado da população, à degradação do meio. Os raros com a ousadia de nadar contra a corrente têm carreiras curtas, ou nem chegam a tê-las, o que complica a vida de quem geralmente não conhece profissão e precisa de segurar os cargos em que se apanha. Apesar de tudo os políticos são simples peões da lógica económica que nos cerca e estimula a produzir e adquirir coisas. Ela promete jardins de delícias, enche de sonhos irrealistas, seduz como a feiticeira circe seduzia ulisses e os companheiros. Nos omnipresentes media, as mercadorias que supostamente nos irão preencher são postas em cenários que giram invariavelmente à volta de beleza, saúde, riqueza, fama, sucesso, liberdade, perfeição. Se eu comprar um par de óculos a conselho da dona dolores aveiro, ao usá-los convenço-me de que levo comigo um pouco da grandeza e prestígio do filho, mecanismo conhecido como reflexo condicionado que parece infantil, e é, mas funciona às mil maravilhas. Desejando imitar o que vemos no mundo de fantasia dos anúncios caímos numa armadilha que nos incute valores, ideais estéticos, normas de comportamento, objetivos de vida. Faz de nós androides capazes até de comprar e usar vestuário esfarrapado, apenas um entre os efeitos colaterais da nossa exposição à publicidade. Mais nocivo é que através dela somos levados quase desde o berço a pensar que a satisfação é algo existente fora das nossas cabeças, a associar bem e mal-estar àquilo que podemos ou não possuir, a identificar afirmação e realização pessoal com objetos a agarrar a todo o custo, a apostar que o caminho é a luta individualista, que a ganância vale a pena. A panela de pressão em que a humanidade e o planeta visivelmente fervem tem muito a ver com o assédio deste modelo. Dada a convicção insegura de que nunca se tem que chegue, mesmo quem compra mais ou menos à vontade procura preencher o constante vazio interior acumulando sempre, numa demanda sem fim. E aos excluídos do grande consumo, a imensa maioria, resta-lhes um caminho de frustração, autorrejeição, ansiedade, agitação, competição desenfreada, conflito, agressividade, revolta, violência.

Esquerdizar

De vez em quando vou até à rtp memória espreitar velharias, um impulso saudosista que deverá ser da idade. A série humorística “tudo em família”, do início dos anos setenta, onde se mostram as raízes de muita coisa esquisita que hoje se passa na américa. E no mundo. Mais ou menos da mesma altura, a rubrica “memórias da revolução”, quando o esquerdismo nos invadiu as mentes de forma espetacular e ruidosa. Meio século depois ainda surpreende a repentina borracheira radical de um povo que antes tinha suportado anos e anos de despotismo com uma docilidade de jumento. Acabados de sair de tempos depressivos, e crendo abraçar verdades que nos iriam redimir, levámos uma lavagem ao cérebro prodigiosa quase sem dar por ela. Mas isso pouco importa, onde não houve revoluções o esquerdismo entrou na mesma, e com tanto sucesso que emprenhou uma porção considerável da humanidade. Antigamente costumavam dizer-nos que nascíamos em pecado, uma invenção marcante pelo que implicava de culpabilidade, embora tivesse a virtude de poder colocar um travão nas nossas pulsões animais e evitar fazer o menor mal possível aos outros e a nós mesmos. Aliás a intenção era mesmo essa. Depois então as esquerdas começaram a persuadir-nos de que nascemos vítimas, o que veio mudar de forma dramática a perspetiva sob a qual nos vemos e vemos o que está lá fora. Não é que muitas vezes não o sejamos, obviamente que sim, mas também acontece a todo o momento não o sermos em exclusivo. É muito comum a vítima participar ativamente nos acontecimentos que conduzem à sua vitimização, jogando um jogo perigoso com o agressor. Até porque, mesmo se comandado do inconsciente, o ato de provocar alguém pode ter como finalidade ser abusado para obter algo que se considere vantajoso. As atitudes de a produzem efeitos e retiram de b o que este tem de melhor ou de pior. Junte-se que um ser humano adulto, normal, saudável, pode em infindas circunstâncias da vida usar a faculdade chamada livre arbítrio para fazer escolhas, não ter estado onde estava, com quem estava, fazer o que fez, dizer o que disse. E, principalmente, que em nós coexistem em permanência o anjo e a besta, forças que alternam a cada passo nas ações e relações. Somos uma coisa e outra em função da idade, da educação, dos humores, do tempo, do lugar, daqueles com quem estamos. Atendendo ao que se vê por esse mundo fora parece inclusive que a besta leva a melhor a maior parte das vezes, fazendo igualmente de cada um o seu pior inimigo. E por várias razões, a primeira das quais é que controlá-la requer entrar voluntariamente num percurso mental e espiritual que é tudo menos atrativo. O novo esquerdismo cega-nos para banalidades como estas ou faz com que passemos por elas como cão por vinha vindimada. A verdade é que nos implantou na mente um mecanismo que distorce factos, enviesa a realidade, ignora tudo o que o contradiz. Já a vitimização é para ele um dogma que rapidamente adotámos e nos leva a desvalorizar o que podemos fazer acontecer nas nossas vidas, a dar realce aos desejos e atos exteriores que influem nelas e, acreditamos também, nos querem prejudicar. Nem sempre querem, como se compreende, mas as lengalengas repetidas fazem-nos a cabeça e tornam-se verdades inquestionáveis mesmo se o que há a pagar por elas é a menoridade, a dependência, a estupidificação. O sentimento de vitimização está hoje disseminado pela sociedade, em indivíduos e instituições, da esquerda à direita passando pelo centro. Bastaria mencionar que, no espaço público, um microfone ou uma câmara apanhados pela frente fazem disparar em nós quase de forma mecânica discursos que desfiam desgraças, choramingam queixumes, pedincham apoios, reclamam subsídios, exigem garantias, batem com insistência no pedal dos direitos. Se a esta torrente reivindicativa correspondessem níveis razoáveis de responsabilidade, exigência pessoal, sentido do dever, consciência cívica, seria senha de progresso. Mas não, o mesmo melindre egocêntrico que leva meio mundo a apontar o dedo ao outro meio à mais pequena contrariedade cuspindo denúncias, indignações, acusações, protestos, revoltas, parte geralmente do princípio de que não devemos nada a ninguém. A hipersensibilidade não implica contrapartidas sociais da nossa parte, os outros é que estão em dívida para connosco.

Identidades

Não deixa de ser irónico que depois de a esquerda tradicional ter dado o seu melhor na defesa dos mais desfavorecidos, estes, um pouco menos desfavorecidos, tendam agora a virar-lhe as costas. Vivendo melhorzinho, os trabalhadores já não estão para se consumir com aquela mania de esborrachar homens barrigudos de fraque preto e charuto a vomitar cifrões. A oposição operariado/patronato não tem a mesma força mobilizadora que antes tinha entre as massas e por isso, a partir de certa altura e por razões de sobrevivência, a esquerda moderna viu-se obrigada a virar o disco. Mantendo a tradição de dividir para reinar que está no seu adn e de que necessita como do ar que respira, o instinto levou-a a convencer alguns grupos sociais de que são injustiçados por causa daquilo que os distingue de quem não é como eles.Em sociedade há diversas coisas que nos solidarizam, identificam, unem, nomeadamente a história, a língua, a cultura, a partilha do mesmo território, os anseios e projetos comuns, a seleção nacional de futebol.... Tudo isto é desvalorizado pelas pessoas que se entrincheiram num círculo. Elas farejam hostilidade e ameaça em quem está fora dos seus muros, antes de começarem a exigir compensações, como agora, pelos danos que pensam ter sofrido ao longo do tempo e continuam a sofrer. As quotas para mulheres na política e para certas minorias nas universidades, de que se tem falado, são dois exemplos. A meu ver, contudo, quem aceita ser beneficiado dessa maneira denota um autoconceito degradado e falta de respeito por si próprio. Estamos aqui por ação de uma vontade superior que faz de nós o que somos e nos dignifica, não obstante a diversidade generalizada. E à dignidade repugnam favorecimentos, pois estes partem do princípio de que alguns indivíduos são menores, inferiores, incapazes. A dignidade humana dá- -se mal com paternalismos e o desejo de superproteção cheira a esturro. Reparar que uma estação televisiva colocou um rapaz escuro a apresentar o telejornal, ver esse facto como uma vitória da inclusão sobre a discriminação negativa e dar os parabéns a uma e a outro é sinal rematado de preconceito, o oposto do que se quer dar a entender. No fundo, quem o ostenta acha que aquela pessoa é capaz de estar ali por causa dos traços que a distinguem da maioria e não pelos seus méritos. Eu nunca me lembraria de saudar uma coisa banal numa terra, como a nossa, onde existem pessoas com vários tons de pele, entre cem outras diferenças, que poderão ocupar o lugar que quiserem se se esforçarem para tanto. Nem tugi nem mugi quando passámos a ter um primeiro-ministro com origens na índia, uma ministra angolana e pelo menos um deputado que diz ter casado com outro homem. O precedente levantado pela discriminação positiva de cidadãos é que se excluirmos homens brancos, europeus, heterossexuais, de classe média/alta (isto é, a minoria odiada e a abater), não falta no mundo quem se ache com direito a ser discriminado, o que se tornaria insustentável. Hoje por todo o lado se sente no ar a sensibilidade extremada e assanhada de gente que se reconhece em grupos identitários. Achando-se injustiçadas tanto no presente como no passado, as pessoas vestem essa pele, interiorizam a indignação correspondente e deixam- -se levar por emoções sob as quais lhes é lícito insultar, denegrir, acusar, destruir, espancar ou até matar. Sobram criaturas que assumem facilmente estes papeis se souberem que podem tirar algum proveito disso. E quem há meses assistiu a uma intervenção da deputada joacine katar moreira não precisou de ser tarólogo para deduzir que a vitimização também se pode transformar em arrogância e autoritarismo num abrir e fechar de olhos. As pessoas em geral exibem preconceitos contra mulheres, negros, ciganos, imigrantes, homossexuais? Certamente, tal como todos eles os exibem por norma contra as pessoas em geral. Uma sociedade evoluída deve atenuar as desigualdades? Pois deve, mas sem perder de vista que é uma luta contra a natureza, e como tal nunca será ganha. Temos a obrigação moral de integrar os que são diferentes de nós e conviver em harmonia com eles? É o mínimo que se espera de gente civilizada, e isso até tem vindo a ser feito aos poucos pelo menos nesta parte do mundo. Mas é um caminhar difícil e constante, não uma linha de meta que se possa cortar.

Satânico

Laquela figura exposta na forja sublinhava já na perfeição. A de um antigo anjo da corte do céu irremediavelmente condenado ao fogo, isto é, ao sofrimento, por ter tido a arrogância de querer igualar-se ao poder de deus. Uma criatura consumida de inveja com a simples visão dos piedosos e bem-aventurados, apostada na ideia de os perder para que as penas pessoais lhe fossem mais suportáveis, e também por isso o mestre supremo do disfarce, vestindo roupagens sem fim para os atrair. Um ser cuja ambição maior consistia em inverter os valores do bem e do mal no mundo para assim procurar lavar o crime imperdoável que cometera. Numa altura em que se endeusa o visível e o palpável e menosprezam as coisas do espírito, o demónio será hoje um conceito acerca do qual a maioria encolhe os ombros e sorri: fantasias, criações mitológicas ao jeito do homem-aranha ou do homem-do-saco. Mas mitológico não quer dizer que não reflita nenhum tipo de verdade. Bem pelo contrário, desde tempos imemoriais que os mitos, todos eles, têm exposto a realidade mais profunda e permanente do ser humano. Se acontece largarmos uns estamos destinados a abraçar outros pois para nós, como diz pessoa, “o mito é o nada que é tudo”. Nesse caso, qual seria então o significado daquelas monstruosas representações, quer a física quer a moral que lhe servia de base? Que verdade perdurável espelharia esse mito fora de uso? Que temos nós a ver com satanás? Tudo, mas alguém disse uma vez que a sua obra mais perfeita é dar a entender que não existe, o que lhe abre uma via larga para arrastar os incautos à perdição. Talvez não seja preciso muito esforço para pensarmos em pessoas, quem sabe até se chegadas, que se esmeram em arquitetar teias de engano e falsidade, espargir venenos a toda a volta, criar turbilhões que nos arrastam para o seu desassossego, sugar-nos, quais vampiros, a tranquilidade e o bem-estar. Cuja agitação destrutiva e autodestrutiva desperta enorme pena, mas de quem há que fugir a sete pés como elas próprias fogem da cruz. E nem valeria a pena ir por aí. Sem suspeitar dessa cilada, as pessoas comuns começamos a prestar culto ao inimigo se os erros e os fracassos dos outros nos trazem alguma satisfação. Pactuamos com ele se as desgraças gerais, dialogando com as nossas, nos consolam, se os males exteriores, espelhando os interiores, aliviam. Estamos sob a sua alçada se achamos prazer secreto em qualquer tropelia externa que justifique aquelas que fazemos. Adoramo-lo se na balança das culpas a descida do prato alheio faz subir um pouco o nosso. Já lhe vendemos a alma se damos connosco a empolar e difundir os pecados do próximo ou, pior ainda, se o tentamos para que os cometa e poder depois acusá-lo deles. O “príncipe deste mundo” (joão 16:11) nunca anda muito longe. Será ele fruto da nossa guerra contínua com o mistério de tudo, da inquietação de estarmos vivos a que freud chamou instinto de morte? O sentimento de inferioridade e o desejo de o suplantar pela afirmação? O animal competitivo que há em nós? O nunca sabermos se amanhã vamos estar cá? Não deixam de ser forças sombrias que nos movem, tanto mais fortes quanto menos consciência temos delas. Deixá-las exprimir-se livremente pode levar-nos a desejar espezinhar o que existe dentro e fora, com efeitos devastadores nas mentes, nos corpos e nas vidas. Resta-nos aceitar a existência e tudo o que ela contém, o irracional em que estamos metidos, a nossa pequenez e irrelevância, mesmo se isso exige doses infinitas de humildade.embro-me perfeitamente de uma gravura que há sessenta anos existia numa das paredes da “frauga” dos caldeireiros, no largo da pracica, em balfrades. Num fundo de labaredas, uma figura globalmente humana, peluda, traçada a vermelho e negro, rosto sinistro de caninos proeminentes e olhos esgazeados de crueldade, orelhas bestiais, dois cornos grossos e retorcidos a sair da testa, mãos e pés de compridas garras aguçadas, um rabo a rematar em flecha, a postura captada no instante imediatamente anterior ao da investida contra uma presumível presa. Se calhar por exprimir os traços morais que o catecismo lhe atribuía (e na altura andávamos a aprender), era uma imagem aterradora do diabo, pelo menos para um miúdo de cinco ou seis anos como eu. As catequistas também davam o seu melhor para nos traduzir em palavras a ideia que