Eduardo Pires

PUB.

Agressividade

De um ponto de vista biológico é natural que a luta pela sobrevivência o explique e nos desculpe, mas o ser humano não é flor que se cheire. Nas palavras do escritor andaluz arturo pérez-reverte, “el ser humano es un hijo de puta muy peligroso”. A nossa agressividade não é nova nem está a aumentar, ideia que qualquer manual de história do oitavo ano afasta de raiz. Ela está-nos na massa do sangue, ou nos genes, ou lá o que se lhe queira chamar e não depende de género, idade, raça, etnia, instrução, classe, crença, predileção sexual ou clubística. Quanto a isso, sejam quais forem os rótulos que possamos colocar, a natureza animal fez-nos a todos bastante parecidos.

Muitos preceitos religiosos partem desse pressuposto, a que chamam pecado, e o conceito de salvação não é mais que a salvação da nossa malvadez que, curiosamente, e embora não pareça, provoca tanto dano em quem a sofre como em quem a faz. Nem sequer é de espantar que sejamos maus para os outros, quando a ciência da mente nos diz que também podemos fazer grandes patifarias a nós próprios. O masoquismo é isso mesmo, a pulsão de agredir voltada para dentro, fenómeno tão poderoso quanto vulgarizado. É provável que a única maneira de não sermos agressivos ou, melhor, de o sermos menos, é ter consciência de que o podemos ser. É provável que um paz-de-alma tenha aprendido a conhecer e dominar os seus impulsos e um desordeiro não.

A agressividade e a violência que dela decorre existem, são factos com que temos que lidar. Mesmo que quiséssemos ignorá-las, aí estão os jornais, as televisões e agora a internet para nos lembrar os seus muitos graus e formas. Ainda bem que se divulgam para que se possam condenar. Diminuir o valor da violência ou ignorá-la é tão indesculpável quanto ela própria. Mas há que desconfiar. Estamos envolvidos por um nevoeiro mental que entre outras coisas nos leva a ver o mundo a preto e branco, passar ao lado das nuances da realidade, excluir o incerto e o duvidoso que estão em toda a parte: as pessoas ou são boas ou são más, virtuosas ou viciosas, vítimas ou agressoras. Mas por que não as duas coisas? Por que razão não podemos ter um anjo num ombro e um demónio noutro?

Isto por um lado. Por outro, os meios de comunicação estão pouco interessados na verdade, na objetividade e na reflexão sobre elas. Tendo em conta que a realidade é complexa e ambígua, colocam-se entre nós e ela (por isso se chamam media) fazendo o favor de no-la interpretar. À primeira vista pode parecer simpático, e de certo modo é. O problema surge quando a filtram de forma simplista e no-la dão em espetáculo para causar impacto, o que hoje em dia é a regra, e em vez de informados somos desinformados.

O número de mulheres maltratadas ou mortas às mãos de homens inseguros, ciumentos, ressabiados é trágico para todos os efeitos. Nem que fosse só uma já o era. Por acaso, na nossa espécie (ao contrário de outras) o macho é geralmente mais forte do que a fêmea, podendo servir-se dessa superioridade para arrear na parceira quando a vida não lhe corre bem. Mas, sempre que o arcaboiço lho permite, a mulher pode também ser agressora. Em sete por cento dos casos, segundo as estatísticas, não sendo difícil calcular que o número peque por defeito se pensarmos que muitos desgraçados que as chupam se calem por vergonha.

Depois não se trata só de espancar ou assassinar. É do senso comum que a violência psicológica pode ser tão ou mais destrutiva do que a física. Acontece que neste campo as forças entre os sexos se apresentam bastante mais equilibradas, se é que não se pode considerar que a mulher leva vantagem. Muitas vezes, no recato das vidas caseiras, ela exerce um poder real através da astúcia, da intriga e da manipulação; presta um culto continuado a conflitos, dificuldades, complicações, e não costuma ser escassa quando se trata de esgrimir o impropério.

Suponho por isso que nalguns casos de violência doméstica a comunicação social nos dá a conhecer apenas a ponta visível de um icebergue. Um produto em cuja manufatura participaram ativamente dois artífices. O resultado de uma guerra em que cada combatente lutou com as suas armas. O desfecho infeliz de um drama em que dois protagonistas agiram e se condicionaram e não existiria se uma das partes, qualquer delas, negasse o seu contributo ou, uma vez iniciado, arranjasse forma de se distanciar.

Evasões

Seria escusado listar aqui os benefícios de viver em comunidade, mas é capaz de ser útil mencionar os custos: em grupo acabamos sempre por amordaçar os nossos impulsos e desejos mais queridos, isto é, por abdicar de uma boa parte de nós próprios, o que, pensando bem, não deixa de ser um preço alto. Outro inconveniente gémeo deste, e igualmente sério, é que as relações entre as pessoas tendem a adquirir um caráter simulado, de onde a autenticidade anda tantas vezes afastada.

Mas no atual estado das coisas tem que ser. Deus nos acudisse se cada um desse em comunicar àqueles com quem se relaciona, mesmo os mais próximos, tudo o que realmente pensa deles. A vida social tal como a conhecemos simplesmente não existiria, pois ela depende muito da cautela que resulta em exteriorizar apenas uma fração daquilo nos vai dentro. Enquanto caridosamente douramos a pílula da realidade que propomos aos outros, o uso contido da palavra permite que as relações prossigam, o que dificilmente aconteceria se assim não fosse: se num grupo de amigos em cavaco ameno cada elemento imaginasse o que os outros já afirmaram sobre si, não havia sequer possibilidade de se terem reunido.

No dia a dia, com a exceção evidente das crianças, dos humoristas e dos tontos que, esses sim, têm o privilégio de não usar filtros sem que daí lhes advenham consequências de maior, toda a gente puxa a rédea ao que exprime em cada circunstância, refreando as ousadias potencialmente corrosivas de uma liberdade de expressão levada à letra.  Uma cena de que muitos certamente se recordarão, sintomática dessas cautelas, passou-se com a única mulher que até hoje ocupou a presidência do parlamento. Penso que a certa altura quis entrar pelo melindroso tema da falta de sintonia entre a ação política e os desejos da população, o clássico divórcio entre uns e outros. Então a pobre senhora, entalada entre piscar o olho à sua classe de adoção, que lhe garantia o sustento, e a obrigação de não trair a da origem, que até a tinha elegido, foi-se deixando enredar em patéticos ziguezagues de linguagem. A coisa estava mesmo preta até que finalmente, depois de visível sofrimento, em desespero de causa, lá desaguou numa solução de compromisso de que resultou a produção de dois neologismos com os quais a nossa língua se viu de um momento para o outro soberbamente enriquecida: “inconseguir” e “inconseguimento”.

Indigesto, mas vá lá uma pessoa dizer o que pensa… Para os mais desbocados, que os há em cada canto (e em cujo número, pelos vistos, também estou metido), os poderes engendraram maneira de exercer um papel censório instituindo hábitos de linguagem adequados, neutros, “corretos”, um superego na língua das pessoas para que não se estiquem na conversa. A arrelia é que, a adicionar a esse açaime, nós já quase asfixiamos com uma cópia de constrangimentos, preceitos, normas, deveres, interditos, regulamentos, tudo coisas que limitam severamente a liberdade de cada um ser o que é.

É certo que tais cuidados se restringem ao uso público e que em privado, ao abrigo da cautelosa polidez, enquanto não for inventado um qualquer “machado que nos corte a raiz do pensamento”, cada um continua a ser ele próprio na sua consciência. Acontece que nesse lugar impalpável também esvoaçam continuamente a impotência e a revolta, o medo e a raiva, a agressividade e a frustração, assim como outros intensos sentimentos potencialmente destrutivos. Eles até se podem mascarar, sublimar, envolver em papeis de embrulho coloridos rematados com laços de fantasia, porém não deixam de ser uma realidade poderosa que é imperioso despejar de alguma forma para limitar o uso do victan, prevenir a insanidade, evitar que se rebente.

Daí a necessidade de válvulas de segurança, individuais e coletivas, que permitam extravasar essas incontornáveis tensões que nos habitam. Canais de escape que incluem, bem entendido, a linguagem na sua função emotiva por intermédio do insulto rancoroso, da má-língua ácida ou do palavrão libertador. Mas também imensas outras coisas, que podem ir do calmo e recolhido yoga, que por acaso pratico, à catarse libertina veiculada pelos carnavais ou à prodigiosa neurose do clubismo futebolístico, que por acaso não pratico.

Passa-culpas

A propósito do tempo ameno anómalo para a época, se nos lembrarmos da frialdade dos antigos invernos transmontanos, alguém observava “Oh, eu não me importo nada, não gosto de frio!”. Contestei que essa era apenas uma parte da questão, que o aumento das temperaturas mexe com muita coisa e traz consequências danosas que de resto já estão a acontecer. “Ah, mas a poluição são as fábricas, eu até desligo sempre as luzes lá em casa!”. Foi a cândida resposta. A pessoa e o momento passaram, e já para os meus botões senti pena de alguém que não sabe somar dois e dois. E de nós todos.

Porque é fácil assumir que o capitalismo, a alta finança e a banca, encostados às indústrias nacionais e multinacionais, têm uma visão predatória dos recursos e olham para o meio natural com cobiça indisfarçável. Mas somar dois e dois é compreender que as fábricas fabricam o que consumimos, e só o fabricam na medida em que o consumirmos. O grande capital também é feito por cada pessoa singular. Ninguém de bom senso defenderia que se abdicasse de bens essenciais ou recusasse a cada um as condições materiais em que assenta uma vida digna, mesmo não sendo pacífico estabelecer limites para o que é essencial ou digno. No entanto hoje o consumo já pouco tem a ver com a satisfação de necessidades propriamente ditas. Para uma parte considerável da humanidade consumir tornou-se um vício, com o qual obviamente há quem se farte de ganhar dinheiro e com o qual obviamente o planeta sofre.

De forma que desconvencer as pessoas a mudar estilos e hábitos de vida baseados no consumo estouvado para evitar o colapso vai ser o cabo dos trabalhos. Não há como evitar o pessimismo quanto a isso. Até porque, enquanto os alarmes soam há bastante tempo em toda a parte, todos os pretextos são bons para continuar a induzir a dependência. Basta ver que as festas religiosas tradicionais já quase só têm essa função. E como de uma perspetiva consumista elas não são assim tantas, toca de inventar datas comemorativas disto e daquilo, tais como dias de namorados, halloweens e outras palermices. Aliás o nome que se lhes possa dar não interessa nada, pois como a sua única função é vender uma panóplia de pantomimas, acontece que todas elas acabam por se parecer bastante com o carnaval. E a coisa não parece querer abrandar, pelo contrário: uma boa jogada do ponto de vista do negócio é que as marcas, a pensar na formação precoce de futuros consumidores e na sua fidelização, como eles dizem, tenham começado a publicitar nas escolas.

É claro que também há muita gente a preocupar-se com os atropelos, a negação, a indiferença, a questionar os conceitos de crescimento e desenvolvimento e a sua ligação automática a obras de engenharia ou a duvidar que a qualidade de vida, a realização e a felicidade se traduzam fatalmente em comprar coisas. Mas o que impera é ainda uma alegre inconsciência, a que se vem juntar demasiadas vezes uma cultura infantilizante, uma cultura que nos incutiu desde pequenos a tendência para nos vermos em variadíssimas circunstâncias como meras vítimas da realidade exterior, esquecendo que em muitas delas somos igualmente os atores que a produzimos.

Isto para dizer que sem querer diminuir a importância de manifestações públicas que se erguem contra as inúmeras apoquentações da vida, algumas me parecem francamente burlescas: faz tanto sentido uma multidão vociferar em plena rua imprecações contra a violência doméstica como declarar a sua embirração com o vírus do ébola. Como se uma entidade alheia a nós criasse os males do mundo e fosse necessário derrubá-la qual déspota malvado. Há dias, embrulhado em mantas, assisti a uma que bramia a plenos pulmões contra as alterações climáticas e às tantas dei comigo a fazer contas à energia que se teria poupado, logo ao CO2 a que se pouparia a atmosfera, caso aquela gente se tivesse lembrado de fazer como eu, ou seja, nada.

Culpar umas tantas entidades quase sem rosto pelo que nos atinge é contraproducente em muitas circunstâncias e degolar bodes expiatórios pela emissão de gases de estufa ainda mais. Não são precisas grandes cogitações para deduzir que cada um de nós é um fragmento do problema. Assim sendo cabe-nos ser peças da solução, bastando para tanto que comecemos por recusar consumos supérfluos, excessos, desperdícios, para não ir mais longe.

Falsehood

Fake news… De um momento para o outro uma expressão que não conhecíamos salta para o ar ou, como se diz agora, para o ciberespaço. E com o mesmo fascínio da rapaziada que se esfalfa para apanhar a cana de foguete caída no meio de umas touças, corremos sôfregos a apanhá-la para lhe chamar nossa, mostrarmos que estamos à la page e nada nos escapa do que se passa à nossa volta. O mesmo se poderia dizer de muitas outras, tais como austeridade ou crise.

No entanto nem ela nem aquilo para que aponta são realidades novas. A falsidade é parte inerente do mecanismo da vida. O predador tem que ser falso se quer apanhar a presa, e esta também se lhe quiser escapar. Se não fosse a falsidade nenhum de nós estaria aqui para tomar conhecimento dela. É certo que no universo humano o jogo do faz-de-conta se aprimorou de forma extraordinária. Curiosamente, chamou-se secretário à pessoa mais próxima do chefe porque o segredo, o fingimento, a astúcia, a mentira, andaram sempre estreitamente ligados a todos os tipos de poder. Mas não é necessário saber isto nem ir buscar sociedades ou polícias secretas, contrainformações, segredos de estado, de justiça e de família para o exemplificar porque, na verdade, nas nossas vidas pessoais quase todos vamos gerindo melhor ou pior diferendos confidenciais com a verdade.

Quando o velho Sócrates, há vinte e cinco séculos, fez a célebre recomendação “conhece-te a ti próprio”, estava no fundo a informar-nos de que por detrás das máscaras mais ou menos produzidas que exibimos existe outra realidade, muito mais verdadeira do que essa, que seria necessário conhecermos para conhecer (todo o universo). Portanto, assumia claramente que não somos o que parecemos, que as nossas vidas acabam por ser um teatro, uma representação.

Já mais perto de nós, em princípios do século que passou, um vienense de barbas brancas, Sigmund Freud de seu nome, foi mais longe. Jurou a pés juntos que o nosso comportamento é controlado por forças que desconhecemos, tão poderosas quanto irracionais. Era gravíssima uma das coisas a inferir das suas descobertas: a parte racional, consciente, não controla mais do que uma pequena porção dos nossos atos. Numa fórmula mais crua ainda, apenas somos senhores de uma parte reduzida daquilo que fazemos. Na época, a indignação e o escândalo não poderiam ser maiores, tanto assim que tudo foi feito para desacreditar, e depois esquecer, esse clínico de aspeto venerável. É que se tratava de uma machadada de vulto no orgulho de quem há muito se vinha denominando “animal racional” ou, com uma pompa que a ciência caucionava, “homo sapiens”. Mas pouco importou: a partir daí compreendeu-se que era extremamente difícil a um ser humano descobrir a sua própria verdade, quanto mais pretender atingir qualquer tipo de verdade. 

Todavia, já mil e novecentos anos antes, quando um dia tinham desafiado Jesus a que se definisse ele declarara simplesmente: eu sou o caminho, a verdade, a vida. Aquela palava do meio não deixa dúvidas de que ele via a fuga e a traição à verdade íntima como a fonte do padecimento humano, assim como a sua procura a única coisa suscetível de o poder salvar desse padecimento. E tendo em conta que também conhecia bem de mais a dificuldade da tarefa, tudo isso lhe inspirava uma infinita comiseração pelo ser humano.

De facto, a verdade pode provocar-nos calafrios. A sua recusa tem o potencial de nos fazer adoecer com gravidade. Quando por vezes ousa assomar sem ser chamada, desviamos a vista aterrorizados. Usamos de mil subterfúgios para lhe escapar. Criamos vidas que se situam entre a comédia, a farsa e a tragédia só para a esconder. Assassinamos se for preciso para que não seja conhecida e conste aquilo pelo qual a queremos substituir.

E então, no meio disto tudo, fake news... E toca de brincarmos com as duas palavrinhas novas como com um brinquedo que um tio trouxe do estrangeiro (quando os tios traziam brinquedos do estrangeiro). Virgem santa, chocarmo-nos por saber que há pessoas que publicam coisas falsas! Descobrimos então agora de repente que somos enganados, manipulados, instrumentalizados, coisa que sempre fomos e vamos continuar a ser. Mas não será isso apenas um simples retorno resultante de cada um de nós instrumentalizar, enganar, manipular?

Água mole – Ponto de vista dois

Falei do que me parecem ser os benefícios dos fenómenos migratórios. Mas convém tentar ver outras coisas. Mesmo que existisse uma política global, séria, sistemática de recrutamento e integração de imigrantes, isso não isentaria de obstáculos. Repito o que disse noutra altura: viver nestas sociedades ditas ocidentais, não é pera-doce. É certo que vistas de fora elas reluzem e atraem. Mas o relativo desafogo material de que desfrutamos leva-nos couro e cabelo, pagamos com língua de palmo o relativo bem-estar, a ordem, a segurança. Noutras partes do mundo a existência, embora menos segura, é mais relaxada.
Não podendo acolher todos os que de alguma forma se sentem insatisfeitos nas suas terras, porque são muitos, a europa pode integrar uns quantos milhões. Mas duvido que aqueles que a procuram para refazer as suas vidas no aspeto material tenham consciência daquela realidade. E quanto a saberem que ela é apenas a parte visível de uma história de dois mil e quinhentos anos, nem se fala. Além do mais, para os corajosos o panorama não é cor-de-rosa. Esperam-nos pelo menos duas ou três gerações de sacrifício, com dificuldades maiores ou menores em assimilar a língua, a cultura, a mentalidade dos residentes, enquanto vão cortando o cordão umbilical com as de origem, processo penoso que pode não correr bem, e por vezes não corre. Durante esse período, o mais provável é que a grande maioria dos recém-chegados ocupe posições sociais de pouco prestígio e baixos rendimentos. Sobretudo as segundas gerações, já cidadãos de pleno direito mas ainda com hesitações quanto à identidade, podem ter tendência a sentir-se desenraizados, injustiçados, revoltados. Um caldo de cultura propício ao germinar de marginalidades, delinquências ou até crime, como mostram os milhares que se juntaram ao daesh. Ou seja, mesmo uma situação ideal já implica transtornos que bastem. Tudo se complica, obviamente, no caso das deslocações selvagens em massa como as que estão a acontecer, dado o seu potencial desestabilizador.
Uma parte dos intelectuais europeus interiorizou os abusos da exploração colonial, que são factos inegáveis (com a escravatura em plano de destaque), em forma de má-consciência, sentimento reforçado pela noção das regalias de que nesta parte do mundo hoje desfrutamos e que contrastam com as condições menos favoráveis em que vive parte significativa da humanidade. Ora, como é sabido, toda a culpa redunda em desejos de expiação, sendo compreensível que, para muitos, esses complexos latentes sejam despoletados ao depararem-se com aqueles botes a abarrotar de pessoas ameaçando ir ao fundo no meio do mediterrâneo. São cenas que impressionam quem quer que tenha alguma sensibilidade. A este propósito penso nos documentários do início do século passado que mostram imigrantes de toda a europa a chegar à ilha nova-iorquina de ellis. Mesmo à distância não há frieza que resista perante o retrato vivo da pobreza, da fragilidade, da humildade humana. Porém, essa visão romântica contrasta vivamente com a que mostram muitos migrantes de hoje.
Não é o caso de pôr em dúvida a sua qualidade de vítimas, particularmente de redes de tráfico que os exploram e enganam. No entanto, para além de tomarem decisões voluntárias, há em muitos deles uma série de sinais que intrigam e retiram seriedade àquilo que nos é apresentado como problema humanitário. A começar pelo facto de se tratar de gente com muito bom aspeto, que domina as últimas novidades tecnológicas, se exibe em festa para as câmaras mal acaba de saltar a rede em mellila com a ligeireza de quem acaba de ganhar uma competição e, enquanto executa os mesmos trejeitos mímicos de quem está num reality show, deixa imediatamente clara a exigência de um país preferido: germany! england! 
E há outras estranhezas. Conhecemos bem a máxima “quem não tem vergonha, todo o mundo é seu”. Ora, quanto a isso, fico com a incómoda impressão de que a globalização deu a muita gente a sobranceira ideia de que “é tudo nosso”. Afeta-me um pouco que cheguem repletos de direitos, exigindo, manifestando-se, lamentando as fracas condições que encontram pelo facto de terem pago não se sabe a quem uma certa quantia em dinheiro. Coisas que não podem ser encaradas à la légère. E ao exprimir os seus receios perante elas, o cidadão europeu comum não precisa de ser xenófobo ou racista.

Ponto de vista um

Os estudos de antropologia não deixam qualquer dúvida sobre o facto de descendermos todos de migrantes, com exceção talvez das pessoas que vivem na zona centro-oriental de África. No extenso período que levamos de História, e durante muito tempo ainda antes dela, sempre houve grupos de pessoas constrangidos a deixar as terras de origem pelas mais variadas razões: da escassez de recursos às guerras, dos desastres naturais às revoluções, das crises políticas às perseguições religiosas, das epidemias às convulsões sociais, das variações do clima à demografia. Sendo esta a regra geral, as deslocações humanas conheceram um aumento significativo depois da expansão europeia no século dezasseis, que deu origem a várias dezenas de novas nações em todo o mundo e alterou completamente a geografia política.

No que particularmente nos diz respeito não devemos perder de vista que este recanto da Ibéria tem sido lugar de passagem e fixação de imensa gente, de inúmeras castas e origens, que durante séculos aqui deixou a sua herança nos genes, nas línguas, nas culturas. Nem esquecer a nossa qualidade de nação que tem exportado catrefadas de gente para todo o lado, bastando dizer que nada menos que um terço de todos os portugueses existentes no planeta, cerca de cinco milhões de almas, são emigrantes, filhos ou netos deles. Não será necessária uma visão excecionalmente apurada sobre a realidade do mundo para compreender que só por ignorância ou estupidez um português que se preze se pode mostrar hostil aos imigrantes.

Movimentações humanas toda a vida existiram e vão existir. E a tendência será mesmo para aumentarem, tendo em conta que os fatores de instabilidade apontados não só não parecem querer diminuir como, ao desencadearem-se, irão inclusivamente encontrar pela frente cada vez mais pessoas, aquilo que o aumento populacional atual deixa prever. A nossa existência está repleta de incertezas, de sobressaltos. A paz, a segurança e a abundância num dia podem ser o desassossego, a ameaça e a penúria no seguinte. De um momento para o outro todos (e quando digo todos é mesmo todos) podemos tornar-nos refugiados ou migrantes.

Uma forma altruísta de olhar para os semelhantes que dessa forma são tocados pela mão da desgraça passa por compreendermos que não fica bem a gente civilizada meter a cabeça na areia e alhear-se dos problemas dos outros. Que não deveria carecer de grandes hesitações ou justificações, em lado nenhum, organizarmo-nos para acolher em zonas de maior tranquilidade como as nossas aqueles que tentam escapar de apuros de que também podemos vir a sofrer. Mas também existem razões egocêntricas, por assim dizer, para os recebermos de boa mente. Tendo os seus incómodos, o fenómeno pode trazer-nos vantagens: a miscigenação que as migrações permitem significa revitalização cultural das sociedades, bem como genes novos que apuram a espécie, a que acresce, no caso da Europa, a promessa de desengatar o marasmo demográfico.

Deve ser um pouco de tudo isso que inconscientemente está por trás do meu agrado e sentimento de aceitação quando vejo numa telenovela uma bonita atriz de retinto rosto oriental a exprimir-se num português-padrão impecável, um chefe de cozinha jugoslavo meio arrogante a falar de bacalhau retirando visível prazer dos nossos expressivos palavrões, uma angolana descomplexada a supervisionar a justiça ou um carioca a segurar firme a defesa da seleção. Curiosamente, e sem que talvez nos apercebamos, bragança está também em plena onda renovadora: é pouco provável que o grosso dos “estudantes” do politécnico regressem algum dia aos seus países. E em boa hora o façam, conquanto saibam o que nas suas vidas está em jogo com essa grave determinação. 

Apenas alguns pontos de vista sobre as migrações, com tanto de autênticos como de otimistas. Mas há outros. Para os captar teremos de fazer algum esforço deslocando-nos a toda a volta da realidade procurando examiná-la dos muitos ângulos que ela sempre apresenta. Mesmo procedendo assim, também será necessário impedir que os preconceitos ou as ideologias nos turvem a visão. Depois, há que não ter medo da verdade e ser capaz de chamar os bois pelos nomes, por muito desagradável que isso por vezes se afigure. Um assunto a que gostaria de voltar.

 

Pedagogia

Tema recorrente do nosso tempo, a corrupção é velha como o mundo e transversal a todas as sociedades. Tanto o velho como o novo testamento se lhe referem já inúmeras vezes como existindo em potência em todos nós (“Já pereceu da terra o homem piedoso, e não há entre os homens um que seja justo…” (Miqueias 7:2,3)). Ela não é, por conseguinte, exclusiva da classe política, a quem o termo habitualmente se aplica e cujos membros, muito antes de se abalançarem à coisa pública, se alimentam em ambientes mentais, que são os nossos, onde a tendência para a dissimulação e o logro fazem parte da normalidade.

Por isso o detestável na maioria não é serem o que são, se pensarmos não ser fácil, para ninguém que possua alguma capacidade de autoanálise, atirar a primeira pedra. Já não choca muito vê-los a produzir esforços procurando convencer-nos (e convencer-se?) de que seguem convictamente ideologias e defendem modelos de sociedade, sabendo nós que a grande causa da vida deles são os respetivos saldos bancários. É mesmo possível sentir alguma piedade ao vê-los, em discursos inflamados de rentrée para excitar os prosélitos, alardeando espírito de missão, representar dramas no meio dos quais se atiram a opositores imaginários com frases-slogan como “eu gosto é de malhar na direita!” ou “quem xe mete cu pêéxe, leba!”.

Porque no fundo nada disto é estranho às humanas debilidades. Maior preocupação é senti-los boçalmente ignorantes de algo a que podemos chamar o problema pedagógico. É sabido que as condutas das elites, quer sejam religiosas, governativas, económicas, intelectuais, artísticas, desportivas, são modelos éticos para a sociedade. Isto é, influem (e muito) nas mentes das pessoas comuns, que tendem a imitar os exemplos vindos de cima, motivo pelo qual as suas responsabilidades são bem maiores do que as do resto da população. Ora os exemplos que a esta chegam da ação política em geral são com muita frequência lamentáveis, se tivermos em conta que nela reina toda a sorte de jeitinhos, conivências, tachinhos, desenrascanços, arranjinhos, cunhas, justificados o mais das vezes como lealdades, solidariedades, coisas de família, mas que não deixam de ser formas veniais de corrupção. Os comentadores, focados apenas nas suas consequências políticas, jurídicas ou mesmo económicas omitem o significado educativo do fenómeno, talvez por ser menos visível. Mas não é por isso que ele deixa de existir e causar danos mais onerosos que as manigâncias propriamente ditas, agravadas no caso da corrupção de maior vulto, onde pontificam o nepotismo, o compadrio, o tráfico, a negociata, o esquema.

Perante a evidência de uma e outra, os vulgares cidadãos podem decidir-se por várias atitudes: encolher os ombros e aceitá-las como uma fatalidade da vida tal como a existência de varejeiras; resmungar acidamente pelas esquinas e mesas dos cafés garantindo que são todos a mesma merda (o meu caso); de quatro em quatro anos, escrever nos boletins de voto todos os vitupérios de que se lembrarem (também, mas só uma vez). Mas acontece ainda a quem anda pelas ruas ouvir de muitos outros, mesmo que não desprezem nenhuma das anteriores formas de resistência, franquezas e fraquezas do seguinte teor: “não há mal nenhum em contornar as leis, eles também se fartam de o fazer; as regras são para cumprir se, e quando calhar; que se lixem os regulamentos, ou há moralidade ou comem todos; o relaxamento dos valores não impede o sol de nascer amanhã; tanto dá cumprir como não, ganha-se o mesmo; o mundo é dos guitchos e o que interessa é um gajo safar-se”. Dito de outro modo, a tese de a corrupção desculpar comportamentos desviantes, animar a fraude, favorecer a delinquência, encorajar a criminalidade não me parece assim muito ousada.

De um lado, como educadores, o nosso trabalho é em grande parte tentar manter longe das mentes em formação a mentalidade trapaceira, incutindo nelas os grandes valores culturais e morais. Acontece que, por muito esforço que façamos, o que mais pesa na sua (de)formação continuam a ser esses modelos, uma desgraça em termos formativos, portanto. Travamos uma guerra contra inimigos que surripiam às pazadas, num momento, aquilo que nós com grande sacrifício e diligência procuramos juntar às migalhas durante uma vida. E diga-se que estamos a perdê-la.

 

Os homens maus

"A menha pesora dise que os homens maus estragão o abiente e matam us animais os homains maus puluaim os rius e atiram muintos pelasticos para o mar e depois us peijes comaim-os e morrein as fabricas deitão fumu para atemusvera e as pesoas respirão u ar e ficaum duendes a milha abó jacinta dis que os fumos dus carus estragau o ar e cagora já não a inbernu e nu brão a muintus fogus i us homeins maus tamain cortaum as arbes das fulorestas”.

Sem tirar nem pôr, a deliciosa composição da iara marlene, uma garota de oito anos vivíssimos que (tirando o exotismo do nome próprio) não pode ser mais nordestina e a meio do primeiro ciclo está já a surfar a onda das preocupações ambientais. E que bem lhe fica! Se eu fosse seu professor ralar-me-ia pouco com a contenda desigual que ela vai travando com as imposições da língua escrita que, diga-se, até me enternece. Porque, bem vistas as coisas, isto de o mesmo som se mascarar com várias letras, de a mesma letra representar diferentes sons, de haver sons tão parecidos que mal se distinguem ou de uma mesma palavra mudar completamente de figura consoante saia da boca do pai ou da diretora da escola, entre imensas outras bizarrias, são coisas que não podem deixá-la bem impressionada e talvez a incompatibilizem irremediavelmente com o mundo dos adultos. Já no tocante à ideia que lhe foi incutida de que as agressões ao ambiente são obra de homens que têm tanto de perversos como de abstratos, aí sim, o assunto, por muito mais sério, exigiria da minha parte inadiável intervenção pedagógica.

Não seria talvez fácil converter tudo numa linguagem clara e acessível de maneira a que ela compreendesse o que nesta questão está verdadeiramente em jogo, mas a didática foi inventada para isso. Poderia começar por adiantar-lhe a ideia de que estamos todos, bons e maus, novos e velhos, homens e mulheres, ricos e pobres, espertos e burros, sábios e ignorantes, amarelos, brancos, negros e vermelhos, estamos todos, dizia, enterrados até aos cabelos em algo a que se chamou revolução industrial. Que ela tem implicado fazermos gato-sapato da natureza que nos dá o ser e alimenta, ignorando que tudo o que lhe fazemos é a nós próprios que o fazemos. Que essa falta de respeito tem implicado extrair, explorar, transformar, construir, fabricar, transportar, anunciar, expor, distribuir, vender, trocar, comprar, traficar, usar, gastar, acumular, esbanjar, dissipar, exibir, rejeitar, estragar, delapidar, destruir, massacrar, arrasar. Que a insanidade é tanto maior quanto se sabe que, de modo geral, temos tendência a sentir-nos extremamente miseráveis caso não consigamos alinhar nela de corpo e alma, freneticamente, como se de uma fé redentora se tratasse. Que tal conjunto de atividades tem vindo a crescer em proporção aritmética desde que começou há trezentos anos, mais década menos década, sendo indispensável para o levar a cabo uma quantidade prodigiosa de uma coisa chamada energia, obtida a partir do equivalente a milhões e milhões de fogueiras que acendemos diária, continua e afanosamente, produzem os fumos a que ela se começa a mostrar sensível e refere de forma pertinente.

Seguir-se-ia a parte certamente mais chata da minha preleção, após a qual eu próprio me arriscaria a ser considerado um homem mau mesmo a sério: a de lhe fazer ver que neste gigantesco processo há poucos inocentes, a começar pelo telescópio hubble e a acabar nela própria.  É que tudo aquilo que está a usar no momento em que a mãe, apreensiva, me mostra o papel (— Já viste quanto erro dá, manel?), absolutamente tudo, desde a chicla que masca com visível prazer e desenvoltura de boca até ao elástico que lhe prende o rabo-de-cavalo, poderia ter incluído na sua redação para substituir, com muito mais rigor, os homens maus a quem pretende dar a sarabanda.  

Depois talvez concluísse exortando-a a passar esta ideia a todas as iaras, em quem reside a esperança de erradicar a lógica materialista, consumista e predatória dominante e colocar de alguma maneira um travão nas calamidades que aos quatro ventos se anunciam e ela bem explicita já. É que se alguma esperança existe reside inteirinha nela e nos da sua geração, pois com os cotas da minha já não vamos lá. De tão imersos que estamos na fumarada, e não obstante termos começado já a tossicar, não a conseguimos ver.

Água mole Incluiremos?

A União Europeia lançou há pouco um “guia de comunicação inclusiva”, com “orientações em português para uma comunicação que inclua todas as pessoas e evite estereótipos”. Entre outras recomendações, sugere-se que digamos “a coordenação” em vez de “o coordenador”, “o mundo dos negócios” em vez de “os homens de negócios”, “classe política” em vez de “os políticos”, “o pessoal da limpeza” em vez de “as senhoras da limpeza”, “data de nascimento” em vez de “nascido em”, “quem requer” em vez de “o requerente”, “pessoas com deficiência visual” em vez de “os cegos”. Com exceção desta última, quase todas são expressões que usamos no masculino e deveríamos evitar pelo facto de alegadamente excluírem as mulheres. Não há dúvida de que as línguas exibem evidentes traços de machismo. Bastaria dizer que 
se numa turma eu tiver vinte e nove raparigas e apenas um rapaz, me dirijo ao grupo com algo como “todos vocês são simpáticos”, onde nada menos que duas em quatro palavras estão no masculino. Tal acontece porque elas são o produto de um depósito cultural acumulado ao longo de centenas de anos que espelha a preponderância dos homens na esmagadora maioria das sociedades históricas, nas quais as mulheres têm sido, e ainda são, relegadas para um papel subalterno. A História é o que é e não há nada a fazer contra ela. Contudo, pensar que favorecemos a inclusão ao eliminar o género gramatical de certas locuções de uso corrente releva de alguma confusão. É ignorar que a língua não passa de um conjunto de convenções a que, como tal, se não deve dar mais que a importância adequada. Um mero utensílio sem valor em si, uma série de hábitos que 
nos dão imenso jeito, mas poderíamos substituir por quaisquer outros, como se comprova pelos milhares de línguas existentes no mundo. Acontece que, no caso de o fazermos, é pouco provável que qualquer nova língua que inventássemos falasse de outra coisa que não de uma sociedade imperfeita, aquilo que todas as sociedades no fundo sempre serão. Até porque não é apenas no que se refere ao belo-sexo que elas estão repletas de lugares comuns, expressões batidas, modos de dizer estereotipados, frases feitas, idiotismos vazios, crenças duvidosas, preconceitos enraizados, convicções falsas, mitos teimosos. Por conseguinte, mesmo que fosse possível erradicar todas as formas menos rigorosas de nos exprimirmos (coisa de que seriamente duvido), receio que no final caíssemos num tal estado de assepsia verbal que pouco restaria, não só da nossa língua como de todas as outras.
Seja como for, apenas um prurido ridículo pretenderia convencer-nos de que “nascido em”, escrito num qualquer formulário, atenta contra a inclusão das mulheres, enquanto “data de nascimento” as inclui. E do mesmo modo, se eventualmente substituirmos “as senhoras” por “o pessoal”, que tipo de inclusão estamos a efetuar? Que bom não seria se as coisas mudassem ao mudar-lhes os nomes, se, por exemplo, a designação “pessoa com deficiência visual” poupasse os cegos a todas as limitações e contrariedades de que padecem.  Que admirável magia se ao trocar “pedinte” por “sem-abrigo” se evaporassem os dois. Que explosão de igualdade se, ao dizermos “a classe política”, metade dos nossos deputados se transformassem em deputadas. (E, já agora, no caso de que tal milagre se produzisse, como se designaria esse conjunto de pessoas que nos representa no parlamento?).
Parece indesmentível que a dignificação da mulher ajudaria a dignificar o ser humano no seu todo. Mas quanto a isso o importante mesmo é a própria realidade, e se alguma coisa houver a alterar é nela. Quando aí ocorrem mudanças, os modos de a designar até podem mudar. O contrário, não me parece. Como no meio da insensatez geral há sempre quem revele alguma clarividência, junto com aquele humor que dá sal à vida, alguém sugeriu que as prostitutas passassem também a ser chamadas “profissionais do sexo”. De uma penada, a nova designação dignificaria de alguma forma a mais velha profissão, retirando-lhe parte da pejorativa carga que a atual possui, e incluiria nela não só os homens que usam o corpinho para ganhar a vida como outras pessoas que nem são uma coisa nem outra. E no mundo, como se pode imaginar, um pouco mais de inclusão teria sido conquistada.

Donos disto tudo

Conviver com alguns alunos chineses há um par de anos revelou-se-me uma experiência extremamente agradável. Em teoria, pelo menos desde os tempos dos aventureiros Marco Polo e do nosso Fernão Mendes, todos temos noção das diferenças entre as nossas culturas e as daquele lado do mundo. Mas uma coisa são ideias extraídas daquilo que se ouve ou lê e outra, bastante diferente, a realidade que de repente nos surpreende como um sopapo na cara. E neste caso a minha admiração iria ultrapassar em muito o que um olhar mais desatento talvez considerasse simples particularidades raciais sem significado.
Embora isso já fosse imenso, não era só por aqueles adolescentes exibirem invulgares dotes de serenidade, simpatia, correção e educação que entre a malta de cá quase se perderam. Também porque se entregavam ao trabalho com o mesmo afinco e perfecionismo às oito e meia da manhã como às cinco da tarde, virtude a que vinha juntar-se uma resistência à fadiga como, em mais de quarenta anos, escassas vezes vi. Porém o que fazia as minhas delícias era algo ainda mais raro e a que não estava de todo habituado: o seu visível sentimento de gratidão. Como aprender era para eles claramente uma questão para levar muito a sério, nos seus rostos transparecia em permanência a honra de terem ali alguém à frente a dar o seu melhor para os ensinar, assim como o reconhecimento por essa dádiva. 
É bonito constatar existirem no mundo criaturas agradecidas pelo que alguém lhes oferece de bandeja.
De qualquer modo, naquela turma de sétimo ano onde os chinocas foram metidos passou a haver muitas mais coisas em que reparar, mesmo porque saltavam à vista. E, oh meu deus, que abismo medonho a separá-los da grande maioria dos filhos da nossa gente! A serenidade dos primeiros desafiando o desassossego dos segundos; a simpatia de uns a realçar a frieza dos outros; a correção lado a lado com a indelicadeza; a educação a cotejar a grosseria. No plano da ação concreta, era difícil ignorar uma dedicação às tarefas sem qualquer tipo de reservas de uma parte, e a preguiça e o ar de enfado de quem está a ser vítima de exploração da outra; a busca da perfeição contra a negligência como regra; o autodomínio a fazer inveja à precipitação; a resiliência humilhando a deserção ao primeiro obstáculo. 
A partir daquele restrito universo de sessenta metros quadrados, e sem perder de vista as devidas cautelas para evitar induções abusivas, não pude inibir-me de pensar nas mentalidades que necessariamente  alimentavam duas maneiras de estar tão diversas e palpáveis: já por colocarem maturidade, sensatez e seriedade num prato da balança e puerilidade, parvoíce e sobranceria no outro; já por revelarem metas traçadas e ideias bem definidas de par com desordem e deriva, a lembrar folhas no vento de outono; já por traduzirem ora o desejo de reservar lugares na linha de partida para a luta que é a vida, ora a indiferença de quem nem sequer sabe que vai haver luta. Na parte final da carreira, e quase como um balanço que punha em causa muitos anos de esforço (meu e de tantos outros), sentir-me professor, português, europeu, ocidental naquela circunstância foi sentir-me na fossa. Não apenas por aquela minha epifania, mas por saber bem de mais o que se passa na maioria das aulas da nossa escola pública: espaços onde uma parte significativa da rapaziada, cagando-se soberanamente para a sociedade que procura educá-la gastando recursos que tem e não tem, se dedica quase em exclusivo a representar até ao tédio a tradicional rábula do tontinho. Onde o desvario e o caos ditam as suas leis e não falta tudo para poderem ser comparados a manicómios. 
De modo que eu seria a última pessoa a ficar surpreendida com a notícia de um dos últimos números da revista Visão intitulada “novos donos de Portugal: a China tomou de assalto as empresas estratégicas do país e prepara novos investimentos milionários”. Ao mesmo tempo que a lia, as impressões colhidas nesses adoráveis miúdos de olhos em bico começaram a passar-me pela cabeça como num filme. No fim, e mesmo se apenas produto de um fugaz vislumbre da sua maneira de estar na vida, pareceu-me natural e justo que o mundo deles se esteja a preparar para dominar outro em visível decadência, o nosso: é que parecem ter os pés bem mais assentes na terra.