Eduardo Pires

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Divino

A ideia de divindade persegue-nos desde que somos humanos. Já se identificaram os deuses com o desconhecido, uma definição extremamente forte se tivermos em conta a enormidade deste em relação ao quase nada que nos é dado conhecer. Evidentemente as ciências têm feito recuar a ignorância e ocupado muito do espaço que costumava ser deles, mas por mais que se descubra ou venha a descobrir os enigmas do cosmos são infinitos, nunca vão desaparecer e continuarão a importunar-nos. Assim, interiorizar a nossa insignificância no meio do imenso desconhecido, temê-lo e reverenciá-lo, é por si uma religião: sentir a ligação ao mistério que nos envolve. E igualmente, ao darmo-nos conta de que a situação que nos toca é a mesma de todos os outros seres, o fundamento de uma ética. Também por isso a relação que temos com os deuses é sobretudo emotiva. Somos forçados a existir sem saber porquê numa realidade que não pedimos. A carregar uma vida às costas ao serviço de forças que não controlamos, antes nos controlam, vivendo-a tanto quanto ela vive de nós. A lutar mais ou menos inconscientemente com o que nos cerca e domina, atascados em dúvidas sobre o que andamos a fazer. A estranheza e a inutilidade de tudo pairam por cima das nossas cabeças nesta passagem que sabemos temporária e breve. Sentimentos íntimos e esmagadores de abandono e orfandade, difíceis de traduzir em palavras, fazem de nós permanentes meninos ansiosos à procura de figuras que nos acudam e protejam no desamparo – deus-pai, mãe-do-céu. Que nos salvem de nós próprios e da solidão com promessas de vida futura, feliz, num além incerto – cristo-salvador. Para justificar a situação absurda em que estamos pendurados, imaginámos seres sobrenaturais cujos atributos contrastam com os estreitos limites que vemos em nós, de quem esperamos receber a dádiva daquilo que nos falta, a quem rogamos que nos apontem um caminho. Infelizmente os que falam em seu nome são pessoas iguais a nós. Os chamados imortais permanecem sempre mudos e quedos, abrigando-nos da dúvida criando mais dúvida. E é assim que onde há crença há descrença. Acreditar é duvidar. Nas palavras de tertuliano, “acredito porque é absurdo”. Nas coisas de que estamos certos não acreditamos. Nos deuses sim, precisamente por não termos essa garantia. Por isso, como diz um pensador dos nossos dias, “bem escondida no coração do ateu há resquícios de crença, no mais íntimo do crente resiste a sombra da dúvida”. Tanta mais dúvida, por certo, quanto mais fanático o crente for. É provável que tudo isto explique ainda que tenhamos feito nascer e morrer milhares e milhares de deuses ao longo do tempo, e sabe-se lá quantos mais estarão na calha para nascer e morrer. Na incerteza, como alternativas terrenas a eles, causamos devastações de toda a ordem, inventamos drogas que nos estupidificam, enfrascamo-nos de trabalho e tecnologia, ambicionamos progresso material sem fim, acumulamos montões de bens supérfluos, cultivamos prazeres fugazes que ainda cavam mais o nosso vazio. Perseguimos inclusive nobres utopias como a beleza, a liberdade, a justiça, a igualdade, sem que nenhum destes escapes nos possa aliviar inteiramente da desesperança. De uma forma ou de outra, dê por onde der, e visto que nunca nos livraremos de acreditar, que seja ao menos em alguma coisa que valha a pena. Pela minha parte deixei-me tocar por uma proposta de divindade que o evangelista lucas põe na boca de jesus: “o reino de deus não é algo que se veja chegar, é um estado de espírito, está dentro de vós” (17:20,21). Suponho não errar se disser que podemos também chamar a esse reino consciência, psique, mente, alma, pensamento. Apesar de não palpável, se o temos dentro não estaria correto dizer que nos transcende, sendo por isso menos uma aposta de fé, um credo, do que uma certeza. Permitimos ou não que se manifeste, conforme o desejarmos, mas ninguém no-lo trará a não ser nós. É difícil imaginar algo mais individual, subjetivo, privativo. Como origem de todo o sentimento, nesse lugar onde só a nós rezamos tanto pode nascer a dor, o desgosto e a loucura como a harmonia, a paz e o amor. Adivinhando os abismos dessa dimensão sem limites, temendo o poder fantástico que promete e fugindo ao trabalho sobre-humano de a desvendar, vivemos ainda na idade da pedra da sua exploração.

Mais coisa, menos coisa....

Agora já tudo são águas passadas, mas não se pode dizer que a minha entrada para a profissão tenha tido algo de honroso ou edificante, bem pelo contrário. Dada a grande afluência de alunos a partir do início da década de setenta, a escola viu-se de um dia para o outro a braços com a falta de professores qualificados. De modo que não se esteve com meias medidas e recorreu-se a malta que saía do secundário para remediar, procurando com ovos de péssima qualidade confecionar omeletas que não poderiam ser melhores. No fundo, apenas um pouco mais do culto das aparências que pelo tempo fora tem feito parte do nosso fado. Foi nessa leva inconsciente e inepta que eu marchei, em fevereiro de setenta e cinco, para dar educação física, embora pudesse nas calmas ter sido ciências, desenho, latim ou coisa que o valha. Não saí impune daquele salto para o escuro. A minha autoimagem ficou muito danificada com a experiência. Durante anos fui assaltado por pesadelos medonhos nos quais me via diante de alunos a quem não tinha nada para ensinar, em aulas onde era incapaz de dominar a desordem ameaçadora que rapidamente tomava conta de tudo. Mesmo que as condições tivessem depois mudado radicalmente, como mudaram, nunca cheguei a vencer de todo a insegurança, assim como um sentido teimoso de ineficácia e fracasso. Fiquei quarenta e três anos mais por apatia que outra coisa, sentindo bem a pertinência das palavras de mário de sá- -carneiro: “ganhar o pão do seu dia/com o suor do seu rosto.../— mas não há maior desgosto/nem há maior vilania!”. E foi, quase sempre, pouco menos que penoso. Aqueles tempos iniciais também eram sui generis por outras razões. As ideias que começavam a tomar conta de tudo (e com as quais eu alinhava abertamente, diga-se) incutiam às pessoas que a sociedade era composta de dominadores e dominados, opressores e oprimidos. Que era preciso derrubar o poder e a autoridade dos primeiros, pois neste mundo também tudo se move em função do conflito violento. Lutar de alguma maneira era urgente e estava na ordem do dia. É certo que na escola não havia patrões nem operários, mas sendo o sítio ideal para incutir nas jovens mentes as novas modas de pensar e levá-las a dar uns toques de luta de classes, num piscar de olhos ela já estava a ser acusada de reproduzir as desigualdades sociais, o aluno já era filho do povo explorado e o professor membro da burguesia exploradora. Foi por isso naturalíssima aquela tragicomédia em que a rapaziada chamou a si, em barulhentas érregêás animadas de devoção vanguardista, a liberdade de sanear os seus mestres mais broncos ou mais colados ao caduco estado novo. Com o excesso de genica e pouca tola que os dezassete anos costumam dar. Quando tudo recomeçou, começou logo a dar para o torto. Bem entendido, depois disso muita água correu sob as pontes. De então para cá, em teoria, a escola pública sempre tem declarado perseguir objetivos bastante elevados, tais como o desenvolvimento pessoal, os valores, o conhecimento científico, etc. Porém a ideologia instalou- -se nela desde então (e não apenas agora na disciplina de cidadania) como a ferrugem em chapa velha, algo que não poderá ser revertido antes de passarem muitas outras décadas e q.b. de sofrimento. Exemplos de crenças que por lá andam à solta, entre outras: aprender é algo a que se pode obrigar alguém; todos têm capacidades para aprender; o sucesso é um direito adquirido à partida, obrigando-se a escola apenas a confirmá-lo; atribuir aos alunos classificações que pouco fazem por merecer é beneficiá-los; os miúdos podem avaliar-se a si próprios; a escola é um lugar de confronto entre quem ensina e quem aprende; a escola precisa de dobrar a espinha perante pais ignorantes, desonestos e mal-educados. Que é feito do profe nesta ambiência tóxica?... Mesmo que o queira não se pode dar ao luxo de se mostrar um profissional científica e pedagogicamente habilitado, competente, sério. Com problemas em assumir que os filhos do povo não são todos inteligentes ou interessados, que não consegue ensinar por causa da indisciplina endémica, que participa num faz-de-conta pegado ao ter que apresentar resultados positivos que não tem, muito mais provável é que se deixe ir arrastando como uma figura entalada, complexada, acabrunhada. Afinal meteram-lhe na cabeça que a toda a culpa é dele.

Ir com os tempos

Há quem continue a recusar a nova ortografia, que já tem trinta anos. Não é de agora este tipo de birra, muito boa gente, inclusive o grande fernando pessoa, tinha feito o mesmo com a de mil novecentos e onze, a anterior. Por um lado, a nossa relação com a língua é de posse, portanto de afeto, o que fica claro pelo simples facto de lhe chamarmos materna. Daí opormo-nos a que toquem nela, ainda por cima sem nos dizerem água-vai. É como quando alguém nos invade uma propriedade, muda de sítio, usa, estraga objetos pessoais. Depois, também somos conservadores no sentido em que as novidades costumam deixar-nos inseguros. Instalados dentro das nossas zonas de conforto, como agora se diz, elas são incómodos que podem pôr-nos à defesa. Para outros, resistir prende-se ainda com vontade de afirmação, rebeldia, transgressão próprias de quem não gosta que lhe deem ordens. É mais disto que se trata, e não de racionalidade ou de um saber fundamentado. Como em tudo, nas línguas há factos de que as pessoas comuns não se apercebem. Para começar, existe a ilusão de que elas são lógicas. E de facto, em parte são. “Eu tenho sede” é uma frase que pode ser traduzida para qualquer outra língua por pertencer à parte lógica. Mas também estão cheias de anomalias, irregularidades, daquilo que sempre se disse ou escreveu sem que haja justificação racional para isso. É o que acontece com as expressões fixas e idiomáticas, os usos figurados, os provérbios, os aforismos, etc. São de tradução difícil, ou mesmo impossível. Como se pode traduzir “dar à sola” ou “arrear o calhau” sem que se perca quase tudo? Não pode. É por acreditar na coincidência entre língua e lógica que há quem faça questão de pedir “um copo com água”, não vá o interlocutor achar que lhe estão a pedir um copo fabricado com esse líquido se disser “um copo de água”. Ou declarar que vai “desfazer a barba” para que não se julgue que vai plantar pelos na cara se afirmar que a vai fazer. Mas não há que rir, todos nós usamos a toda a hora inúmeras incoerências destas: falamos de algo que correu os “quatro cantos do mundo” mesmo sabendo que o mundo não os tem, ou adiamos um serviço para “de hoje a oito dias”, quando nesse período nunca contaremos mais que sete. Do mesmo modo, não há muito a noção de que a língua propriamente dita são os sons que deitamos pela boca e que a escrita é apenas uma representação deles. Como os sons vão mudando com o tempo, a escrita deve procurar acompanhá-los, mesmo de forma imperfeita. Quem resiste às mudanças vê na ortografia algo fixo que deseja conservar assim, mas basta ler um texto do século dezasseis para ver a enorme evolução da escrita desde então: para além de letras diferentes das de hoje, tanto maiúsculas como minúsculas, não havia acentos gráficos, as abreviaturas eram estranhas e mais que muitas, hesitava-se entre juntar as palavras umas às outras (como quando falamos) ou separá- -las, a pontuação quase não existia, a ligação das frases tinha muito pouco a ver com o que agora fazemos, uma palavra podia ser escrita de três maneiras diferentes na mesma página… Um conhecido humorista dizia que retirar o “c” de arquitectas resulta numa palavra feia porque o “c” serve para abrir a vogal anterior. Mas nós abrimos e fechamos vogais mesmo que nada lá nos diga para o fazer, como em “gelo” e “pedra”, “novo” e “novos”. Geralmente um som representa-se por uma certa letra, mas poderia sê-lo por outra qualquer. Ou por duas, como em aqui, acho, assim. Ou nenhuma, pois costumamos pronunciar sons que não escrevemos, como acontece com “saiem”, “muinto”, “treuze”. Representamos o mesmo som por letras diferentes: as sublinhadas em “gato” e “mau”, por um lado, e em bem e pães, por outro, têm os mesmos sons. Até escrevemos letras de sons que não existem, como em escada, hoje, vale. Os teimosos só não sabem que todas estas estranhezas lhes são impostas. Se o soubessem, iam resistir. Estranho é aquilo a que não estamos afeitos, o que se pode aplicar a quase tudo. Por acaso a mim ainda não me entrou bem que a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo “parar” tenha passado a escrever-se “para”, por causa da confusão com a preposição “para”. Mas é uma questão de tempo. Por ora, depois de anos a praticar bastante (até por ser obrigado a isso), já consegui que me faça diferença ver escrito “actividade” ou “recepção”.

Antropocêntrico

Vi por duas ou três vezes na national geographic um programa chamado os Irwins. Nele uma voluntariosa família australiana corre o país em operações de resgate de animais feridos ou em perigo, que inclui centros de acolhimento, tratamentos, cirurgias e restituição ao meio natural sempre que possível. Tudo devidamente acompanhado por apaixonados beijos e abraços aos bichos por parte dos Irwins. Não duvido das boas intenções, porém delas está o inferno cheio e a mim aquilo parece-me ser o resultado de consciência pesada pelas patifarias que per saecula saeculorum lhes temos andado a fazer. É justo sentir culpa quando fundamentada: uma das bases da nossa civilização reside na convicção da superioridade do homem relativamente aos outros animais, meros objetos para nosso usufruto. Juízos em causa própria que têm servido de justificação para os matarmos a fim de lhes comermos a carne, vestirmos a pele e os considerarmos fonte de inúmeras matérias-primas, os tirarmos aos montes, domesticando-os, para nos protegerem e servirem, os escravizarmos nos trabalhos mais pesados, os cruzarmos entre si, criando raças que satisfazem os nossos caprichos, os enjaularmos e exibirmos como objetos de diversão, os usarmos para descarregar neles ódios e frustrações, os submetermos a torturas indescritíveis na pesquisa científica, os privarmos mesmo do direito à existência provocando a extinção de espécies inteiras. Muitos povos, partindo do princípio da sacralidade e da dignidade de todos os seres vivos sem exceção, desconhecem aquela hierarquia. O caso mais conhecido são os hindus, mas há outros. Em certas culturas tradicionais, de cada vez que se mata um animal para alimentação ainda se faz uma cerimónia em que se lhe pede desculpa por esse ato repleto de cinismo (como lhe chamou o filósofo edgar morin) que consiste em tirar a vida a um ser para a dar a outro. Nós consideramo-los um estorvo à expansão e à loucura humanas, enclausuramo-los em campos de concentração a que chamamos jardins para os protegermos da sua única ameaça, nós próprios, e em nome da ciência fazemos com eles muitas coisas que têm a marca da arrogância e do preconceito antigo. Inclusive, as relações na aparência mais benignas exibem aquela atitude preconceituosa básica. Passará pela cabeça da malta do pan que a expressão “animais de companhia” assume que o papel deles é satisfazer uma necessidade humana sem que alguma vez a sua vontade seja tida em conta? Por mais que os apapariquem, ocorrer-lhes-á que obrigá-los a vegetar em apartamentos significa negar-lhes o direito à liberdade no seio da natureza e de acordo com as suas leis? Quais serão os seus sentimentos sobre isso? O que nos diriam se os pudessem exprimir? Tal como muitos outros, os Irwins são sem dúvida sinais de civilização, mostras de que a consciência e o desejo de proteger estão a despontar. É melhor que nada, e por este andar talvez um dia se venha a pedir perdão à bicharada por tanto abuso, como agora se faz com os descendentes dos escravos. Mas eles parecem-me fazer parte de uma vaga de gente citadina “ambientalista” que não consegue abrir mão de nenhum conforto material, coleciona sempre mais e mais objetos inúteis, venera as mil bugigangas oferecidas pela tecnologia moderna e disfarça através do “protecionismo” extremista o remorso de precisar de três planetas para sustentar o estilo de vida que leva. Também tenho muito respeito pelos animais e sinto um enorme peso por ainda não ter conseguido deixar de os comer. Tirando esse pecado, sou dos que param na estrada para enxotar uma lebre que se me atravesse à frente do carro (o que já aconteceu várias vezes) e incapaz de fazer mal a seja o que for que mexa, até mesmo a uma mosca exasperante. Mas acho que eles passam bem sem declarações de amor piegas e dispensam absolutamente ser tratados como pessoas. Aliás a nossa ação só os pode prejudicar. Tirando os que são um produto do nosso egoísmo e não sobreviveriam sozinhos, os que ainda são livres só precisam de nós para que os deixemos em paz. E isso pode começar, por exemplo, por recusar o dogma segundo o qual a população humana deve aumentar de forma desregulada como tem vindo a acontecer. É a maneira mais eficaz de não invadir os seus ecossistemas e de os deixar lá sossegados com a menor intervenção possível da nossa parte.

Eles bem juram solenemente...

Não creiais, ninfas, não, que fama desse A quem ao bem comum e do seu rei Antepuser seu próprio interesse, Inimigo da divina e humana Lei. (Camões, Os Lusíadas, Canto VIII, est. 84)

Ultimamente parece que nos deixámos afetar com o que a elite angolana anda a subtrair ao povo. Ora, a não ser que queiramos projetar lá fora tristezas domésticas não assumidas, é escusado ir a áfrica para apontar o dedo a corruptos. No blogue apodrecetuga.blogspot.com (que convido a visitar), milhares de documentos expõem as artimanhas dos nossos e explicam por que razão conquistámos um honroso terceiro lugar no pódio da europa no que toca a corrupção. O que não admira: por tradição nós costumamos ser dos melhores no que há de pior e dos piores no que há de melhor. Por que cargas de água haveria de ser diferente nisto de exercer funções públicas para extrair delas proventos pessoais em prejuízo do tal bem comum de que já falava camões? Uma frase estafada diz que o poder corrompe. Aceitá-la como verdadeira é à partida passar a batata quente para uma coisa abstrata que não pode ser responsabilizada – o poder – para infantilizar e desculpar as pessoas de carne e osso que o exercem. Quanto a mim, não creio que um cidadão entre honesto para um cargo e saia de lá corrupto. Quarenta anos foi tempo mais do que suficiente para que salazar comprovasse esta tese e isso não aconteceu. O poder corrompe porque a maioria dos que hoje o procuram, sabendo de antemão que neste jardim mal frequentado o crime compensa, levam já a intenção fisgada de se corromperem. E se é verdade que não serão todos iguais (outra frase batida), andamos lá perto. Ex-tesos que ele engordou são às carradas. Um daqui da terra dizia há tempos numa entrevista que devíamos admirá- -lo por ter vindo do nada e hoje ser o que é. Eu não me apetece admirar quem, enquanto detentor de um cargo concedido de boa-fé e essencialmente para servir a comunidade, engendra esquemas ilícitos com o mundo empresarial (banca, imobiliário, construção, energia, comunicações): contratos em que o estado sai sempre a perder e é defraudado em milhares de milhões; alienação e venda de bens públicos ao desbarato; concessões de monopólios e de rendas chorudas (que são em si a negação do capitalismo); organismos reguladores estatais cujos membros são pagos pelos privados que vão regular; empresas que nomeiam governantes; legislação feita a pensar em entidades concretas, etc. etc. Com uma parte dos sete mil milhões de euros que sacam cada ano do orçamento do estado (contas por alto), os corruptores oferecem depois aos corrompidos cargos dourados vitalícios e outras generosidades, assim como às famílias deles, aos amigos deles, aos partidos deles, à comandita deles. Um cenário mafioso feito com a cobertura de especialistas em elaborar, torcer e fintar leis, não vá o diabo armar alguma. É assim que estes futres acedem à prosperidade, incólumes e sempre reverenciados como xô ingenheiro e xôtor. A culpa é sobretudo nossa. Quem não quer saber consente. Só um povo entorpecido poderia aceitar que várias propostas legislativas contra o enriquecimento ilícito tenham sido sistematicamente chumbadas no parlamento. À perceção de sermos comidos em grande, deixámos de acreditar e alheámo-nos. Quase setenta por cento defecamos nas eleições como forma de protesto, exatamente do que eles precisam para prosseguir na rapina enquanto nos vão anestesiando com o comentário televisivo, futebolístico ou não. Bastam-lhes os votos dos outros trinta. E quem são estes? Primeiro, os ingénuos que acreditam sempre e votam religiosamente. Depois, os apanhadores de beatas, lembrados da fome aguda que passaram ao longo da história, da vida de cão. Vivendo agora menos mal com restos, agarram-se ao partido sempre a pensar na palavrita, na atençãozita, no jeitito, na cunhita, no tachito. Votam reverentemente. Por fim, uma geração rasca instalada, sem ética, chupista, uma clientela medíocre que preenche todo o tipo de cargos em ministérios, autarquias, institutos, fundações, observatórios e outros organismos públicos, está encantada com a golpada dos ajustes diretos e prepara já uma nova vaga de assalto se houver regionalização. Votam compulsivamente. Pobre país. Será para nos compensar desta poça fétida que o marcelo nos beijoca e abraça tanto?

O passado que nos faz

A grande história, a dos livros, diz-nos como chegámos até aqui por um longo caminho de construções, destruições, concórdias, discórdias, diplomacias, conflitos, abundâncias, privações, doações, pilhagens, calmarias, convulsões, êxodos, invasões, indulgências, opressões, povoamentos, extermínios, liberdades, servidões…. É que somos o produto de todos esses movimentos, de todos mesmo, e quer os vejamos com sinal positivo ou negativo eles criaram esta realidade que neste momento é a nossa. A barbaridade e a civilização estão mescladas em nós de tal maneira que não poderíamos renegar aquela sem matar esta. Se estamos aqui, agora, tanto o devemos aos massacres de átila como às lições de jesus. Há uns anos, seguindo uma moda que estava muito a dar, jorge sampaio foi pedir desculpa a lula da silva por termos colonizado o brasil. Já nem ligo ao absurdo de nós, os portugas atuais, sentirmos culpa por algo que não fizemos. Já ponho de lado que eles também deviam vir cá fazer-nos vénias por termos levado a cultura europeia ao coração da selva, dando o empurrão inicial àquele grande país. Não se podiam exigir tais subtilezas ao lula, que é inculto. Mas o nosso tinha a obrigação de saber que se não fosse a descoberta, a colonização e tudo o que se seguiu nem ele nem o brasileiro existiriam, um para se fingir pesaroso e o outro ressentido. A jogada de pedro alvares cabral no tabuleiro do globo, acidental ou não, criou de novo o brasil. Mas também recriou portugal, redesenhou o mundo inteiro e tudo o que passou a acontecer e a existir nele até aos nossos dias. Porque as ações de um ser humano podem ser comparadas às de uma peça num tabuleiro de xadrez. Cada um dos seus movimentos anula outros que naquele momento eram possíveis, altera a posição relativa e as possibilidades dela própria e das restantes peças, condiciona os inúmeros lances que poderão depois ser efetuados, isto é, influencia todo o jogo até ao final. E não é só a história com h grande que conta para estas contas. Paralelamente a ela, corre ignorada uma outra feita de episódios particulares em número infinito, levados a cabo por pessoas anónimas sem cujas existências esta realidade que agora temos não seria possível. O que somos foi-nos igualmente legado por esse passado obscuro. Um dos meus avôs, homem casado e com filhos, cedeu uma vez aos instintos e “abusou” de uma rapariga, um movimento brusco na superfície do tabuleiro da vida que os marcou para sempre a eles e às famílias e fez com que eu esteja aqui a escrever isto. Menos evidente, contudo real, é que mudou também o destino da aldeia, do concelho, do distrito, do país, do globo. As ações das pessoas são pedradas num charco cujas ondas de energia repercutem em todas as partículas da água que ele contém, afetando-as de alguma forma. Têm impacto sobre quem as faz, os outros seres e a natureza. Depois de feitas nada volta a ser igual ao que era. Se um único dos acontecimentos que nos precederam tivesse falhado o planeta seria diferente e a humanidade outra que não esta. Somos o resultado de tudo o que está para trás, o último elo de uma corrente invisível que nos sustém e não seríamos capazes de cortar. O passado está entranhado naquilo que são os nossos corpos, ideias, gostos, desejos, gestos, hábitos, frases. Muitas vezes, no plano coletivo (como no pessoal), ele mostra-nos coisas desconfortáveis. Não há passados sem nódoas. Mas renegá-las seria renegar ao mesmo tempo aquilo que nos parece honesto, justo, belo, bom. São tomás de aquino dizia que nem deus consegue fazer com que aquilo que aconteceu não tenha acontecido. Ora o que aconteceu é o que nos alimenta e mantém de pé, por isso nem faz sentido querer que não tenha acontecido. Faz sentido, isso sim, fazer o melhor presente possível, e através dele o futuro. Com que cara julgaria eu a fraqueza daqueles meus dois antepassados se foi ela mesma que me fez existir para poder julgar? Seria possível a um mestiço deitar fora metade dos seus genes? Os imitadores que andam a derrubar estátuas de esclavagistas repetem o mal que veem no passado combatendo violência com violência e mostrando uma vez mais que a ignorância pode ser atrevida. Mas as suas embirrações significam autonegação, autorrejeição, desejo de apagar a memória em vez de a compreender. É que sem a escravatura não existiriam para derrubar.

Apanhados pelo clima

A relação do estado com os cidadãos assemelha-se à que existe entre pais e filhos. Tal como os miúdos sabem que o papá e a mamã estão sempre lá para ralhar ao menino que bateu, dar beijinhos e tratar o dói-dói, assim as pessoas costumam esperar apoio e proteção do estado nos seus apertos. Mas há grande uma diferença. Os pais desejam que os filhos vão correndo riscos, assumam os custos das decisões e dos atos, se tornem autónomos e livres do seu amparo. Já os estados gostam de contar com a infantilidade e a dependência dos cidadãos durante toda a vida. Se por um lado isso permite que a sociedade funcione no meio de uma certa ordem e paz, o que é bom, também costuma acarretar a crença de que as autoridades devem resolver todos os problemas das pessoas e satisfazer-lhes todas as necessidades, o que é mau.
Nas últimas décadas, com o individualismo a ganhar terreno, o excessivo papel da justiça na regulação dos conflitos, o alargamento do estado-providência, as esquerdas a cumularem-nos de direitos, a nossa infantilização e dependência têm vindo a aumentar. Exemplo típico é a maneira como estamos a gerir as preocupações com as mudanças climáticas. Nós aqui até dispensávamos que a ciência nos lembrasse essa realidade incómoda. Ainda não há muito que a castelhana serra da sanábria se cobria de neve durante pelo menos seis meses por ano. Era ela que impunha a esta terra fria geadas de rachar e ventos cortantes que casacos e mantas sustinham com dificuldade. Hoje continuam a cair lá grandes nevões de vez em quando, que no entanto derretem ao fim de dois dias. E não se trata apenas disso. Quando é que se viam temperaturas mínimas de oito graus em dezembro? E a primavera a querer chegar em fevereiro?
Há inquietantes factos assim por todo o lado. A natureza tem limites que a obsessão pelo desenvolvimento, pelo crescimento, pelo “progresso”, parece estar a esticar com violência e as respostas dela em forma de desastre estão já a acontecer. O que se prevê não anima ninguém. Vejam-se agora as reações: à volta do mundo milhões de manifestantes exibem cartazes onde se lê “salvem o planeta” (ou, lá fora, “act now”, o que vem a ser o mesmo), lembram aos delegados da cimeira COP 19 de madrid a sua “responsabilidade de agir para garantir a salvaguarda, a vida e o futuro do planeta”, falam da “urgência de lideranças corajosas”, vociferam contra “a inação dos políticos em questões ambientais”, exigem que se faça “pressão para uma ação climática ambiciosa antes que seja tarde de mais”.
Se nada disto deixa dúvidas quanto à necessidade de agir, os termos usados são claros na ideia de que a ação deverá vir de alguém que não os que protestam e exigem. Quer dizer, as pessoas esperam ser protegidas das calamidades, mas põem-se sempre com o rabo de fora no que toca a soluções. No entanto, se alertar é preciso, partir do princípio de que nesta tarefa alguém está de fora é do mais infantil que se pode imaginar. Poluir e destruir o meio tem sido desde há muito a lógica segundo a qual as nossas sociedades funcionam e, embora uns mais do que outros, todos temos parte nessa responsabilidade. É claro que agora passou a ser moda falar em produtos amigos do ambiente, consumo responsável, sustentabilidade, pegadas ecológicas, etc. Resta saber se quem protesta à espera que alguém faça alguma coisa entende verdadeiramente o significado destes termos.
Viciados em compras quase maquinais, acostumados a apetrechos que se contam às centenas e vomitam veneno para o ar quer durante o seu fabrico quer quando trabalham, resta saber se estaremos dispostos a consumir menos, a pagar mais, a ver o trabalho aumentado e o rendimento reduzido, a abdicar de regalias, a deixar de ter férias, a pôr de lado o último carro, smartphone ou artigo de luxo, a fazer sacrifícios, a andar a pé, em suma, a rever de alto a baixo os nossos estilos de vida.
Pode ser que a presente tragédia, deus o permitisse, nos abra os olhos para essa outra que se anuncia, mas nos faz ainda vacilar entre sermos infantis ou adultos: entre passar a batata quente a outros para que se mexam ou decidirmo-nos a mexer; entre adquirir coisas sem regra, mesmo que sob o rótulo de “ecológico”, ou optar por moderação; entre denunciar o papel destrutivo do capitalismo (que é real) ou compreender que ele produz apenas aquilo que gastamos, e na exata medida em que o gastamos.

Vários obstáculos

As sociedades estão a falhar na tarefa de conduzir os mais novos até à idade em que deveriam segurar as rédeas disto. Inquietas, exigem à escola que o faça por elas: que promova todo o tipo de saberes e habilidades, incuta regras e valores, trate do físico, alimente, cuide, tome conta, entretenha, levante o moral e seja competente em todas estas coisas. É muita areia para que lhe seja possível pensar sequer em dar conta do recado, quanto mais fazê-lo, sendo pois natural que nela tudo se misture e pratique atabalhoadamente. Mas há outras dificuldades.
O conhecimento que ela hoje dá é apenas tolerável para uma percentagem de miúdos que deve rondar os vinte, trinta por cento, não mais. Os outros setenta limitam-se a estar lá estacionados, até mesmo por acharem que já sabem muitas coisas. E sabem. Não só por consumirem pornografia aos dez anos, mas pelo bombardeio de informação inútil sob a forma de imagens e ruídos a que constantemente estão sujeitos. Uma agressão que os ameaça e inquieta no presente e enche de apreensão quanto ao futuro. Uma avalanche que os satura e lhes tira paciência para o que a escola gostaria de lhes dizer e eles teriam vantagens em ouvir.
Para jovens a interagir e a funcionar em grupo, um espaço fechado já é tudo menos adequado para trabalhar ideias, mas seja como for lá permanecem dias inteiros entre quatro paredes, anos a fio, os seus melhores anos. Uma violência contra seres “cuja alma fora prometida às ondas brancas e às florestas verdes”, para citar um verso de sophia. Uma crueldade contra quem carece como de pão para a boca de dar vazão a pulsões irresistíveis: brincar, conviver, tagarelar, namoriscar, conceber e levar a cabo patetices. E dado que também servem para desopilar, o entusiasmo que muitas vezes envolve estas atividades é para eles mais importante do que levar na cabeça com o que quer que a escola lhes proponha.
Um número crescente tem progenitores que a escola já ajudou a produzir e são eles mesmos infantis e disfuncionais, pouca coisa havendo que alivie os garotos duma tal tristeza. Os modelos que apreciam, sejam cantores pimba, futebolistas broncos ou concorrentes de reality shows, também têm muito mais fulgor e força do que aqueles que a escola preza. Materialistas até ao osso, o que lá acontece pouco mais representa para eles do que treta inútil, e se ao tentar fazer o que lhes competiria ela ousar dizer-lhes que talvez os filhos não sejam os maiores, ficam ressentidos e apanham-lhe um azar que não a podem ver: acreditando que, em vez de educadores, os seus agentes são um obstáculo às ilusões que alimentam para os meninos, só não lhes acertam o passo se não tiverem oportunidade. 
Tudo handicaps que constrangem a tarefa de educar. Para agravar o cenário, a incerteza também se apoderou da própria escola. Numa crise severa de valores, como em todo o lado, ela tem dúvidas acerca daquilo que está certo e errado, do que é bom e mau, do que deveria ou não deveria transmitir. Sentindo-lhe estas inseguranças, os garotos, já de si descompensados e descrentes, levam-na pouco a sério, desafiam a sua autoridade, fazem pouco dela e ousam impor-lhe a regra de não existirem regras. Deseducá-la em vez de ser ela a educá-los. Com isto em pano de fundo, um velhadas qualquer com quem não têm nenhuma afinidade a vociferar teorias durante noventa minutos (ainda por cima o símbolo vivo da sua reclusão), por dinâmico que seja, domine as tecnologias, se vire do avesso e monte um espetáculo de entretenimento só pode ser para eles uma coisa insuportável. Mais do que instruí-los em línguas, ciências, técnicas ou maneiras, está condenado a rezar para que a indisciplina não descambe muito e a procurar-lhes terapia.
Por muitas exceções que haja, e certamente que há, a escola é uma instituição pouco eficiente, apesar de cara. E isso não tem a ver com mais ou menos verbas, antes com a ideologia que a impregna. Quem teoriza, opina e decide tem a seu respeito ideias distorcidas, não põe os pés nela ou já os pôs há tanto tempo que não faz ideia do que aquilo seja: um espaço de sofrimento para aqueles que lá andam. Substituí-la por algo totalmente diferente (que era melhor não ter o mesmo nome para evitar mal-entendidos), em vez de a defender, seria urgente para a sanidade de todos, em especial a dos que um dia deverão pensar, deliberar e agir pela comunidade.

A peste

O vírus veio expor muitas das nossas fragilidades individuais e coletivas. Aquela de adquirir papel higiénico à doida não se percebe bem, parece até piada. Ir gozar a praia, a passeata ou a esplanada em grupo depois de se ter declarado o alerta diz muito da nossa indisciplina. Desobedecer à indicação de permanecer em casa mostra que os media nos informam, sim, embora também nos tirem sensibilidade, como se tudo o que vemos e ouvimos fosse mais ou menos uma fita de que nem sempre queremos ver-nos como atores. Mas nada disto é apenas negativo, o que se está a passar também pode fazer-nos refletir em coisas a que não dávamos importância, começando logo por essa pequena maravilha que é sair à rua em segurança, dar umas voltas, encontrar pessoas, sorrir, tocar, abraçar, rir, tagarelar.

Pode ser que as ideias de pânico e açambarcamento, mostrando uma pontinha de selva e caos, não nos animem por aí além e sintamos de repente que a ordem em que vivemos está minada por desordem, que a desorganização espreita a toda a hora por cima de tudo o que é organizado, que nada em nenhum momento escapa à incerteza que há no mundo. Mas a partir daí temos mais hipóteses de acarinhar a ordem e a organização, por muitos defeitos que no dia a dia encontremos nelas. De olhar com olhos de ver para esta coisa banal, mas preciosa, que diariamente se constrói com o esforço de toda a gente e se chama sociedade. Nesta altura de fechamento tanto podemos fugir a sete pés de quem se chega a nós como a seguir entender que tudo o que fazemos tem impacto nas pessoas e nos liga a elas, que o egoísmo vive da cooperação sem nunca a poder eliminar e os dois estão tão entrelaçados que é impossível determinar onde começa um e acaba o outro.

É bem provável que hoje a palavra solidariedade nos revele o seu significado essencial – compaixão pelos semelhantes por nos sentirmos tão solitários, desprotegidos e abandonados como eles sobre esta minúscula nave que nos serve de casa enquanto vagueia pelo espaço infinito sem que ninguém saiba porquê exatamente. Talvez compreendamos melhor que isto da condição humana se aplica a todos, sem exceção alguma, por muitas diferenças e divisões que nos apartem. Uma condição que nos torna, neste caso sim, verdadeiramente iguais na incerteza, na angústia, no medo de morrer, mas nos pode também levar a valorizar menos o que não temos e mais o que temos, menos o que nos desagrada e mais a beleza das coisas à nossa volta.

Com a normalidade entre parenteses e as interações habituais de pernas para o ar, as relações ressentem-se, e muito. Mas no plano pessoal a perturbação pode não ser menor. Esta epidemia mostrou uma capacidade extraordinária de suspender a lufa-lufa quotidiana, de nos fazer parar. Para lá da utilidade que possam ter, as ocupações mantêm-nos entretidos: trabalhos, canseiras, dificuldades, inquietações, aflições, arrelias, conflitos, lutas, ódios, guerras, distraem-nos das dúvidas que sempre moram por detrás do que aparentemente somos, do que nos esforçamos por ser. A atividade é um escudo que nos protege ao pôr em stand by questões que todos nos colocamos mais ou menos conscientemente, mas tendemos a afastar – quem sou eu, de onde venho, para onde vou, o que ando a fazer aqui, o que é que tudo isto significa, qual é o propósito de viver, etc.

Subitamente, com tempo de sobra para matutar, existe o real perigo de não conseguirmos escapar a essas dúvidas prepotentes a que, no entanto, sabemos ser difícil ou impossível responder. Sem os brinquedos, os jogos, as competições que nos costumam distrair e fazer mexer, pode vir ao de cima apenas a realidade nua das nossas existências, o nosso papel nelas, a sua razão de ser, o sentido de tudo o que somos e fazemos. De um momento para o outro esta espécie de estado de sítio ameaça colocar-nos um espelho à frente, de alto a baixo, onde cada um se veja refletido diante de si próprio, a existir apenas consigo, sem bengalas, e isso incomode mais do que outra coisa qualquer. Subitamente sem rotinas, sem algo a que nos agarrarmos, podemos dar connosco pendurados no vazio sem uma rede que nos apare a queda e sentir-nos ansiosos, desorientados. Mas sendo um grande desafio do momento, não tem que ser necessariamente mau, talvez abra portas para conhecer e acarinhar a nossa parte espiritual, geralmente tão ignorada, tão miserável.

Simples ideias

Sem ideias não saberíamos dar um simples passo. Nem sairíamos da cama, pois é a elas que ao levantar vamos buscar a energia para os afazeres que nos deverão ocupar os dias. Bastaria perguntar o sentido disto às pessoas deprimidas. As ideias estão por detrás de gestos banais como mexer um café ou meter a marcha-atrás num carro e de decisões graves como escolher a pessoa com quem havemos de viver, a profissão, o partido que mais convém para o governo. E assim como um par de óculos que muda a cor da paisagem, um filtro que deixa passar umas substâncias e retém outras, é ainda às ideias que se deve o significado e o valor que damos ao que está à nossa volta, o significado e o valor que damos ao que fazemos ou não fazemos com o que está à nossa volta.

Acreditamos que nós e as nossas ideias somos uma coisa só, e não é verdade. Do mesmo modo que uma aplicação informática não é o smartphone, as ideias são uma realidade postiça na nossa mente de que podemos declarar a independência se quisermos. Mas fazer isso é muito violento, elas agarram-se a nós como carrapatas ao animal parasitado, ou melhor, nós grudamo-nos a elas como o náufrago ao destroço por acreditar que abandoná-las seria desistirmos do que somos, o que até tem lógica. Talvez por isso não tenhamos o costume de interrogar as nossas ideias. Se às vezes pensamos nelas é apenas para verificar que as temos ou que estão ali à mão de semear para usar como qualquer outra ferramenta, que é o que de facto são.

Quase nunca nos ocorre que elas também nos têm a nós. Pensamos que as possuímos, não que somos por elas possuídos. Mas se os chamados possessos estão possuídos por ideias que os afligem (e a que se chama demónios), não é menos certo que as ideias reinam nas mentes de toda a gente, têm-nos em seu poder e fazem de nós o que muito bem lhes apetece. Não me refiro só às crenças religiosas e políticas, que costumam dispor dos fiéis a seu bel-prazer, aquilo que cada um pensa de si e dos outros são também ideias com as quais convive e habitualmente não questiona. Aliás no caso de trazerem felicidade nem faria sentido questioná-las, mas as ideias são facas de dois gumes, berços do bem e do mal, amor e raiva, saúde e enfermidade, plenitude e desespero, vida e morte.

O prato do dia para muitos de nós é viver lado a lado com ideias que sequestram, cegam, prestam maus serviços sem que desconfiemos ao menos um pouco da sua deslealdade. E essas sim, seria bom trocá-las por outras mais felizes, o que afinal de contas se pode sempre fazer visto que as ideias que temos não são uma fatalidade. Se criar é um atributo dos deuses, então escolher as ideias, escolher aquilo que queremos ser dentro de nós também não pode deixar de ser uma criação divina. Tanto assim que quando isso acontece nos transformamos noutras pessoas, e não apenas nos vemos diferentes como tudo à nossa volta ganha uma realidade nova. Depois, como é das ideias que parte a decisão de agir (ou não agir) no mundo, como tudo o que se faz é a materialização de alguma ideia, o poder permanente que elas têm de produzir realidade estende-se em grande parte aos acontecimentos, às vidas, aos próprios objetos físicos.

Claro que o reverso desse “milagre” é o sentimento de responsabilidade, bem como o medo de agir, de fazer coisas, que ela pode trazer. Ter ideias próprias será tudo menos cómodo, todavia não se pode viver sem elas, tal como não se pode deixar de agir. E quando estes sentimentos nos atingem, e atingem muitas vezes, renunciar às nossas e copiar ideias feitas, já mastigadas, enlatadas, é o menos arriscado. Confortável é imitar, deixar-se ir na onda, cingir-se à condição infantil de dependente. Aí não há que ter medo, o mundo é um imenso mercado no qual se assiste em permanência a um desfilar de ideias que se atropelam e esfalfam para chamar a atenção de quem as não tem.

Um meio poderoso de passar ideias pela porta do cavalo às pessoas sem ideias são as televisões, também por isso mesmo em grande parte máquinas de adormecer, estupidificar. Por trás do que impingem à boleia de cristinas, gouchas, futebóis, está a ideia de que esse nosso sono hipnótico facilita a vida de quem de olhos bem abertos nos vai manipulando e levando à certa. Que só existe porque se conta com o hábito muito antigo de investirmos quase nada em ideias. Calhava-nos pensar um pouco nisto, o que por falta delas não vamos de certeza conseguir.