Eduardo Pires

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Esboço falado

 A última crónica deixou-me um sabor a pouco: quem gaste o seu rico tempo e se enfade a ler-nos merece satisfações sobre a razão de ser de algumas coisas que se vão dizendo. “Água mole”, o título da coluna, poderia sugerir que me comparo a esse líquido cujo bater paciente desfaz com o tempo as pedras mais duras, como diz o provérbio. Nessa leitura, eu seria uma espécie de voz racional (que a limpidez da água simboliza) a tentar encarreirar os desviados. Sem contar que tal postura me colocaria num patamar moral pedante e ridículo que não adoto de modo algum, nada haveria mais enganador, por várias razões.

Mesmo admitindo que uns quantos leiam e entendam os alvitres de quem escreve, a gente só se convence do que já está convencida. Tirando o caso dos mais jovens, mudar de ideias, assumir outros pontos de vista, adquirir novas visões do mundo é algo que se procura, nada que possa ser incutido por alguém. De modo geral, por conforto e segurança, buscamos a informação que possa confirmar aquilo que já pensamos, rejeitando a que arrisque pô-lo em causa. Não vemos a realidade, filtramos dela o que nos interessa. Quem algum dia foi facho ressabiado, comuna-bota-abaixo, beato-bolorento, incréu empedernido, coça-esquinas, gata-borralheira, cusca metediço, estou-me-nas-tintas, mãos-rotas, unhas-de-fome, burro-chapado, esperto como um rato, besta-quadrada, bom-serás, múmia-songamonga, arrota-postas, bicho-do-monte, maria-vai-com-as-outras, lampião grunho, andrade troglodita, lagarto malfeitor ou seja o que for, dificilmente virá a ser outra coisa.

Assim sendo, o parecer avulso debitado numa folha de jornal, como outro qualquer, é coisa inócua, o mesmo que dar cães de meias, para usar uma saborosa expressão popular. E percebê-lo até me descontrai, por isentar de encargos que deus me livre querer assumir. Por isso esta “água” refere algo que se evapora sem rasto e “mole”, pouca consistência e menos valor ainda. Por vezes, mas isso se calhar é paranoia minha, receio que a opinião aqui deixada possa mesmo ter efeitos adversos: após os reparos que há tempos expressei quanto aos jardins e zonas verdes (esse reino da arbitrariedade, como deve ser quase tudo o resto), neste inverno abateu-se sobre eles uma sanha destruidora digna de nota.

Daí resulta interrogar-me a toda a hora sobre o sentido que possa ter esta mania de pregar sermões que ninguém encomenda. Tomar a palavra em público quando não é pedida já implica alguma ousadia e embaraço quanto baste. Eu vejo-me ainda consumido pela contradição de ter o anonimato e a discrição como bênçãos e ao mesmo tempo pôr-me a nu, já para não dizer que não é certo que o mundo fosse um lugar melhor se todos pensassem como eu. Assim, a luta entre escrever ou estar mas é quieto é constante e as razões para uma ou outra opção bastante equilibradas. Então por que cargas de água acabo por ceder, apesar de tudo?

Bom, dizer-me alguém na rua que partilha comigo certo ponto de vista não deixa de tocar a corda da pequena vaidade: embora saiba que não me hão de faltar antipatias, se pretendesse ser alheio a algum desejo de reconhecimento, que todos temos, estaria a mentir. Não excluindo tal fraqueza, o impulso de escrever não passa só por aí. Em certos momentos gosto de pensar que é uma singela forma de ação cívica, ou melhor, descargo de consciência, já que em mim mora sempre uma difusa culpa por achar que pouco contribuo para o bem comum. Mas as reservas que referi da dificuldade em comunicar a sério contrariam e muito esse desejo.

Por estranho que pareça dizê-lo, escrevo sobretudo para mim, para arrumar melhor aquilo que penso. No fundo, em qualquer circunstância, falamos mais para nós próprios do que para os outros, é esse o principal papel da linguagem, o de, bem ou mal, nos ajudar a organizar as ideias. Mas ainda nem é bem isso. Talvez a maior utilidade deste gatafunhar consista no seu caráter infantil e lúdico: em recrear-me um pouco com aquilo que vou vendo à minha volta e desfrutar de forma estética dessas experiências radicalmente subjetivas (o meu desporto radical…), por meio das palavras. Simples exercícios de estilo, jogos de que, por me darem grande gozo, não gostaria de abdicar. E por fim, é mais que provável, uma compensação pelas frustrações da vida, sublimação do sofrimento nela acumulado.

Reviralho

A respeito destas crónicas, alguém me dizia há tempos que eu era do reviralho. Só podia ser a fazer pouco, tendo em conta que em mim sempre se reuniram ingredientes pouco propícios a lutar por aquelas mudanças que viram as sociedades de pernas para o ar: com o tempo as minhas certezas (se alguma vez tive algo digno desse nome) correm o sério risco de recuar para valores negativos; sou de uma abulia demasiado entranhada para mexer uma palha, a começar pelas palhas da vida pessoal; considero-me absolutamente incapaz de mobilizar duas pessoas, nem que seja para empurrar um carro empanado no meio do trânsito; e por último, a minha insignificância política consegue felizmente bater aos pontos a desse rapaz com fixação pelas câmaras a quem chamam o emplastro. A imagem que melhor me definiria talvez fosse a do canídeo já entrado em anos e com quilos em excesso que, quando o passante assoma à porta do dono, ladra arrastadamente três vezes por hábito e obrigação, não se dando sequer ao esforço de se levantar (quanto mais morder) antes de esmagar outra vez os beiços pendentes contra as ervas.

É certo que aqui ou ali posso dar a ideia de perfilhar uma visão maniqueísta na qual poderosos e humildes, exploradores e explorados, governantes e governados estariam em conflito, comigo a defender como um quixote os segundos de cada par contra a maldade dos primeiros. Não é que não pense ser assim a realidade, mas o meu idílio romântico com o povo foi na casa dos vinte anos. Hoje encaro essa classe de forma bem menos poética, tendo todas as razões para crer que a visão de George Orwel em “O triunfo dos porcos” esteja corretíssima: se por súbito milagre as posições relativas dentro de qualquer daqueles pares se invertessem, no dia seguinte continuaria tudo igual. A natureza de uns e outros é exatamente a mesma, farinha do mesmo saco, de modo que preconizar “uma terra sem amos” tem sido demasiadas vezes mudar apenas de amos, mais viciosos que os que tinham sido depostos. Desconfio da sombria verdade de que os fracos não querem acabar com os fortes, apenas substituir-se a eles. Vítimas hoje, carrascos amanhã. Sempre e por todo o lado abundaram situações em que o povo explorado, em chegando ao poder, faz figuras mais lamentáveis do que a mais reacionária das burguesias, e nem é preciso sair desta cismontana província para o comprovar com magníficos exemplares.  

É claríssimo que a revolução material das últimas décadas era mais que desejável, que a abolição da fome e miséria seculares do povo se impunha como uma urgência civilizacional. Mas sendo certo que passámos a viver incomparavelmente mais aliviados no que respeita às carências do corpo, a deploranda verdade é que em termos culturais, cívicos, éticos, espirituais, não nos edificámos por aí além. Pelo contrário, fico muitas vezes com a impressão desconsolada de que a barriga cheia nos empanturrou também de superficialidade, materialismo, frustração, melindre, intransigência, arrogância, conflituosidade. Nos predispôs à vitimização, a culpar a realidade em vez de procurar criá-la. Os três famosos éfes do salazarismo com os quais se dizia alienar-se o povo nesse tempo (Fátima, fado, futebol) aí continuam, pujantes como nunca, aliados hoje a mais uns quantos. Factos ilustrativos de que a melhoria das condições materiais é apenas um dos lados da coisa. Portanto, idealismos da minha parte, absolutamente fora de questão. A anos-luz de algo que se pareça com desejar “revirar” seja o que for a esse respeito, podem os instalados dormir tranquilos.

Temos um lado luminoso e outro negro, talvez com alguma inclinação para este, o que em geral nos leva a querer tirar proveito do próximo. E a não ser que arranje modo de tomar consciência disso e decidir qual das vertentes quer extrair de si, dificilmente algum dia o homem deixará de ser lobo do homem. Não acredito em mudanças substanciais e duráveis se não as que passam pelo conhecimento, pela sabedoria, em particular os que se operam quando nos voltamos para nós com uma imensa vontade de descobrir o que está bem no fundo dos obscuros subterrâneos das nossas mentes. Penso que o progresso passa mais por aí. De resto, algo tão difícil como assustador e a que sempre resistimos com ferocidade, razão pela qual “muitos são chamados, mas poucos escolhidos”.

 

Abril abril

A democracia, que por estes dias festejamos, surgiu no mundo como uma flor da civilização, joia rara entre o cascalho da marcha da humanidade. Por imperfeita que seja, e ainda que outros benefícios não tivesse, a licença de sob as suas asas se dizer o que se pensa e sente sem medos (essa mesma que aqui estou a usar) já seria preciosa. E a que consiste em indicarmos quem nos há de governar mediante um gesto secreto não o é menos, mesmo que existam reservas quanto à sua efetividade. Ambas são dádivas, tanto mais admiráveis quanto é certo terem surgido por sobre o sacrifício de incontáveis gerações, flageladas durante milénios por toda a sorte de tiranias e sob o fogo constante da repressão de mentes e corpos.
Num mundo perfeito as suas regalias durariam para sempre mas, se pensarmos que sobre elas pesam ameaças de vária ordem, há poucas garantias de que tal aconteça. A primeira talvez advenha de, por terem passado a ser tão banais, tendermos a não lhes dar valor, sempre mais ciosos de direitos que de deveres, mais zelosos de liberdades que de moderações, mais solícitos a assegurar garantias que a admitir e acolher incertezas. Daí termos tolerado que aos poucos a democracia viesse a ser gerida por medíocres que se aproveitam das suas fraquezas, que em vez de a servirem porfiem intentos que lhe são alheios, em lugar de a visarem como um fim se convertam em fins a si próprios.
Sabendo-a tão frágil como a própria sociedade, e tendo tudo a ganhar com ela, estimo-a de coração (talvez como só quem viveu em ditadura a saiba estimar) e permito-me gozar de todos os seus prazeres. Mas daí a que todos sintam o mesmo vai um abismo: quando se é muito afeiçoado a mordomias vive-se no receio contínuo de as ver talhadas; a fazenda traz sempre o secreto temor de a perder. Em tal estado de espírito, o mínimo transtorno da ordem ou brisa de mudança constituem fonte de anseio, sendo muito provável até que as regularíssimas eleições assomem de quando em vez como motivo de inescapável incómodo. O que se entende. Porque no fundo, no fundo, isto de ter dado a soberania à plebe foi muito generoso, muito bonito, muito poético, mas não deixou de comportar os seus óbices. Afinal de contas, sabendo-se da volubilidade, dos humores, dos caprichos dos eleitores, quem pode dizer o que trará o amanhã?
Ora é justamente esta indecisão própria dos ciclos democráticos que leva muitos a torcerem-lhe o nariz. É certo que, para assegurar o poder que faculta e protege proventos, se vai participando ativamente nas suas estruturas formais, tem que ser. Porém, de modo a acautelar surpresas não se pode descurar a possibilidade de jogar o xadrez noutros tabuleiros, assim como quem lança um olho ao burro e outro ao cigano. Faz-se jogo limpo enquanto este nos é favorável, mas a bola é redonda e o resultado sempre incerto. Que bom não seria poder mudar as regras a meio, caso estejamos a perder, sobretudo quando há muito a perder… Nada mais natural então do que fazer um nadinha de batota criando e ativando grupos esconsos (cujos sócios podem à luz do dia aparentar mesmo ser opositores) para mover na sombra os cordelinhos. Ou não fosse o dinheiro um instrumento privilegiado das maquinações do belzebu!
Se buscarmos alguns princípios da coisa democrática, eles não andarão muito longe do acolhimento da diversidade de interesses, da abertura aos outros e ao diálogo, da troca de ideias, do confronto aberto, da negociação benevolente, da humildade para a cedência, do sim à crista-da-onda e à mó-de-baixo, da sabedoria na derrota como na vitória, da serena aceitação das incertezas. Os mesmos que propiciam uma instância cívica, a democracia, onde nenhum saber, propósito ou atividade humana poderiam ser estranhos ou tabus, incluindo mesmo aquilo que a põe em causa. Onde toda a ação privilegia a abertura, não o fechamento, e por conseguinte se deseja impregnada de convicta e honesta transparência.
Em suma, tudo aquilo de que esses furtivos clubes, por mais que se reclamem de aperfeiçoamentos, fraternidades e coisa e tal, são a própria negação. Isto sem prejuízo de admitir que haja quem, sem a clara noção destas mundanas subtilezas, se lhes possa juntar somente por retirar prazer de algum sombrio gosto da camuflagem ou de exclusivismos snobes.

Estreitos laços

Faz por agora dez anos o primeiro-ministro de então dava uma entrevista televisiva a propósito da manifestação de professores ocorrida dias antes, considerada a maior de sempre. À medida que discorria, o poder argumentativo e persuasivo era magistral, de tal forma que lá para o fim os espetadores se viam plenamente convictos de que a classe era do piorio, uma cambada de favorecidos mal-habituados, agarrados como carrapatas a ilegítimas mordomias, precisamente a mensagem que se queria propagar. Para quem possuía algum conhecimento dos assuntos o caso era outro. E se preocupava o arremesso de uma cadeia de fake news (para usar um empréstimo em voga) proferidas com convicção inabalável, e a limpeza com que os leigos eram assim manipulados, então constatar toda aquela impassível impostura chefiando o governo da nação já era aflitivo.
Infelizmente, o que se veio a saber na década que decorreu confirmou essas intuições. O fenómeno como um todo é passível de levantar tantas questões quantas tem levantado, mas algumas que também parecem relevantes são espinhosas, razão pela qual se foge delas como o diabo da cruz. A primeira podia passar por questionar a legitimidade de muitas decisões durante aqueles seis anos de gestão. Considerando que a personagem não caiu do céu, que fez um trajeto tendo por baixo toda uma pirâmide de suporte, outra, porventura mais óbvia, consistiria em saber como foi possível tal estrutura tê-lo conduzido ao cargo e facultado apoio enquanto lá esteve. Mas esperar respostas a isto seria puro lirismo, tanto como acreditar na emergência de algo parecido com uma autocrítica individual ou coletiva depois de a bomba ter estourado, apesar de o país ter sido arrastado para a falência no meio de inúmeros indícios de ligeireza. Pelo contrário (e honra seja feita às exceções da praxe, caso de Ana Gomes), ante a desgraça tudo o que até aí tinha sido uma máquina pesporrente, à imagem do próprio líder, revelou evidentes sintomas de fuga e negação.
Acho que ser de um partido é já por si altamente empobrecedor. A riqueza e beleza da realidade (e o que torna aliciante descobrir-lhe os segredos) residem em ela ser indivisa, apesar de mutável e multifacetada. Ora os partidos o que fazem é vê-la como estando partida, estilhaçada (daí chamarem-se partidos). E depois de assim a terem escacado, como se não bastasse, optarem voluntariamente alguns partidários por ver o mundo através de um desses cacos é como condenar o espírito a pena de prisão, é estabelecer laços que lhes sequestram o pensamento. Daí a piada que a autocensura às vezes tem, o contorcionismo a que muitos se obrigam para não pisar o risco que alguém lhes traçou. Se a essa postura juntarmos conveniências individuais, está aberto caminho para perceber que muitas vezes a máscara carnavalesca não passa de um símbolo daquela que usamos nos restantes trezentos e sessenta e dois dias do ano.
Não que a tendenciosidade seja inédita na nossa espécie, longe disso, mas no caso em apreço, tendo em conta que o fingimento de muitos se juntou à quase geral pusilanimidade, houve um evidente sabor de farsa. Portanto, assistir em concreto ao mutismo salamurdo de alguns militantes ou (no caso de falarem) vê-los a pretender fazer-nos acreditar que alguém acusado de mais de trinta crimes pudesse estar inocente, até pode cair na alçada do risível. E mesmo ouvir ex-ministros e outros devotos, convertidos agora em comentadores, atidos a milhentas ninharias mas ignorando enfiados a única coisa que se esperaria que comentassem (como que a assobiar para o ar a ver se não se dava conta) não é nada que as fraquezas humanas não expliquem, não obstante causar acentuado desconforto. Ainda assim há incómodos maiores. Quem não sentiu pena ao ver Mário Soares, um dos pais da democracia, atirado de forma desrespeitosa a membros de um órgão de soberania, e um dos seus pilares?
Agora o que feriu como punhal trespassando o coração, e mostrou como até os impolutos se podem ver enredados nas malhas do camaradismo mecânico, foi ver gaguejar um homem da envergadura intelectual e moral de Eduardo Lourenço, figura tutelar do partido, quando um jornalista lhe fez uma pergunta embaraçosa sobre aquela romanesca figura. Isso é que foi confrangedor, embora revele também o valor imenso da independência mental.

Água mole... Negócios da China

Reproduzo “ipsis verbis” uma frase já com alguns anos de um nosso representante no Parlamento Europeu e soou na altura (dois mil e nove) como se alguém friccionasse duas placas de esferovite junto dos meus ouvidos: “A campanha centrou-se mais em questões éticas do que políticas”. Por momentos pensei ter ouvido mal: um governante tinha explicitamente rasgado uma fenda entre aqueles dois campos, admitindo que o primeiro é de somenos importância, um empecilho para o que seriam os propósitos do segundo.
É sabido que ao longo da História, desde Aristóteles, inúmeros tratados se têm ocupado das ligações entre um e outro, tantos que talvez o homem não tivesse vagar de os ler a todos, o que é compreensível. Eu por acaso também não. Mas, mesmo sem estar com grandes especulações, apenas me é dado a entender que apesar de variações através das muitas sociedades e das que ocorrem com a passagem do tempo, ética e política têm mantido sempre uma relação próxima. Ou melhor dizendo, parecem não poder passar uma sem a outra.
Por exemplo, no final da era medieval Maquiavel achou que o negócio e o lucro não deveriam mais ser reprováveis, nem a riqueza um entrave para aceder ao reino dos céus. Por isso, na sua ótica era tempo de acabar com a velha ética de fidalgos e padres em política e inaugurar uma outra de burgueses, aquela que existe ainda hoje. E para os grandes totalitarismos do século vinte, passou a ser ético massacrar pessoas aos milhões em nome de um certo ideal de sociedade a construir num futuro resplandecente. Em ambos os casos os fins em vista justificariam quaisquer meios usados para os alcançar.
Se as novas éticas que exoneram as antigas são melhores ou piores do que estas já é outra questão mas, subentendida ou claramente, as duas esferas do pensamento e da ação humana andam sempre ligadas. Pois não terá a política a ver com o que por uma comunidade pode ser considerado bom e mau, justo e injusto, correto e incorreto? Isto é, com valores, com o que é basicamente do domínio da ética? Então não há uma ética democrática? E não a têm as nossas leis como fundamento?
É provável que a tirada apenas tenha sido possível por ser diminuta a percentagem de portugueses que conhece o significado de “ética”. De certa forma o povo tem os políticos que merece, até porque são seus filhos. Seja como for, e tendo em conta os discursos habitualmente dissimulados da classe, achei demasiada franqueza da parte do nosso parlamentar. O mais provável é que lhe escapasse um nadinha a boca para a verdade e aquela “boca” não fosse outra coisa afinal senão o rabo exposto de um gato escondido.
Para o compreender há que ter em conta que a nossa política não se tem limitado a ser, como a génese da palavra o exigiria, o conjunto de atividades cujo fim exclusivo são os interesses da maioria. Desgraçadamente, como sabemos, tal espírito tem sido desvirtuado de sobejo. Sem querer incorrer no pecado da generalização, o regime viu medrar uma casta de negociantes-políticos que se acolheram à sua sombra e à sombra do progresso económico que ele facultou. La bem no fundo é o que muitos são, negociantes que, a cavalo da velha máxima judia “onde há lucro não há escrúpulo”, tomaram de assalto o estado para alavancar (como eles dizem) os seus negócios em prejuízo do bem coletivo.
Calculo que para esses as obrigações da gestão pública propriamente ditas constituam uma maçada, uma pastilha a gramar enquanto se está com o sentido no que verdadeiramente interessa. Mas depois, e como se isso não bastasse, há ainda uma coisa chamada ética, essa irritante contrariedade com que se esbarra a cada momento e, se encarada como corpo de normas que balizam interesses egoístas, só pode ser um sério embaraço à expansão dos negócios. O que afinal vem lançar luz sobre a embirração do palavroso deputado e esclarece também o motivo pelo qual, pelos bons serviços e fidelidade ao chefe (cujas tropelias gananciosas começavam então a dar que falar), tenha sido agraciado com um confortável assento em Estrasburgo.
Talvez este seja o ponto mais infeliz e doloroso da vida portuguesa das últimas quatro décadas. A que não é alheia a pouca conta em que as pessoas em geral têm os políticos e explica o facto de perto de setenta por cento delas desvalorizarem os atos eleitorais. Já o velho padre Vieira reparara que eram os próprios pregadores os grandes culpados dos escassos frutos que a palavra de Deus produzia.

Água mole... Psitacismos

Próprio de inúmeras espécies vivas e parte apreciável da sua aprendizagem, imitar é para a nossa tão útil que será difícil, ao fim de um dia qualquer, lembrarmo-nos de algo que tenhamos feito não aprendido dessa forma. Os comportamentos imitativos têm ainda a vantagem de ser socialmente aceitáveis, facultando desse modo sentimentos de inclusão, proteção, a segurança do rebanho.
Mas imitar também traz riscos. A tendência para o fazer é tanto maior quanto menor for o autoconhecimento, quer a nível individual quer coletivo. Ora o que nos identifica é o que mais ninguém tem. Por isso, se ao reproduzir não juntarmos o tempero da reflexão e da personalidade, estamos apenas a responder a estímulos, como os cãezinhos de Pavlov, a ser robôs. E em íntima ligação com isto, é sabido que a liberdade pessoal diminui na razão inversa da normalidade, de maneira que, embora sob os riscos da punição do grupo, os que têm a coragem de ser eles próprios são também os mais livres. O maluco é muitas vezes aquele que, não se cingindo a copiar, se desvia tanto quanto possível de condutas uniformizadas.
As ações de cada um tendem assim a ser uma linha média entre a permeabilidade às forças e pressões externas e a capacidade crítica perante elas. Acontece que, no que nos diz respeito, somos bem mais inclinados a plagiar do que a refletir. Basta pensar nos tiques de linguagem que de repente desatamos a repisar para nos sentirmos “in”, nos gestos estereotipados que fazemos ao apanhar uma câmara pela frente, no afã com que, para aparecer no Guiness, construímos o maior seja o que for do mundo, na paixão com que nos deixamos pescar pelas redes sociais, na forma como acatamos cegamente as modas do vestuário mesmo se nos propõem algo tão disparatado como andar esfarrapados. No meu prédio os carros não cabem nas garagens e são forçados a manobras árduas porque as dimensões destas obedecem a um modelo trazido sabe-se lá de onde.
Mas não era bem aí que queria chegar, até porque há coisas mais e menos ponderosas. É já proverbial o caso de uma das nossas vilas que possui uma larga avenida de alto a baixo com uma série de belas rotundas, vitais para a fluência do tráfego, onde não falta absolutamente nada a não ser o próprio tráfego. Sucede que a rotunda se tornou um cliché para obter votos, qualquer quinta faz questão de ter a sua e aquela gente não quis ser menos que as outras. Aborrecido é que, para mal dos nossos pecados (e bem da dívida) este anedótico caso está longe de ser único, a insensatez conta-se por milhares, por todo o lado.
Os de Arçanha-de-cima arranjaram que o presidente lhes erguesse um pavilhão desportivo todo apetrechado mesmo que, com a escassa gente da terra, não se enxerguem grandes eventos para lá fazer? Que importa, os de Arçanha-de-baixo, não se querendo ficar atrás, e sob a tácita ameaça de não votarem no partido nas eleições seguintes, exigem um superior e mais moderno. E conseguem-no.
Um autarca vê algures um belo campo de futebol de cinco com o que há de melhor e o faz recuar ao seu imaginário infantil? Não está com meias medidas e toca de construir um igual na sede da junta. Até podia dar-se o caso feliz de tal equipamento ser usado para fazer as delícias de uma série de garotos. Mas ocorre esta coisa bizarra de não haver no sítio nenhum garoto, nem sequer um para amostra, é extraordinário.
Noutra aldeia faz-se um parque de merendas junto ao rio, num local concorrido, uma bela ideia para os piqueniques de verão tanto para locais como visitantes? Logo os outros povos do concelho pedem parques de merendas. E eles prontamente aparecem, bem arquitetados, com bons materiais, mesmo que não haja rio, nem sombras, e seja pouco provável que apareça lá alguém para merendar.
Os exemplos, todos com o seu quê de risível, poderiam amontoar-se. Avanço só mais um, referido à cidade. Entre as décadas de setenta e noventa vivi nos dois grandes centros do país. Acontece que, nessa altura, tanto num como noutro a invasão automóvel era caótica, sendo muito comum ver os carros fazer dos passeios parque e atirar com os pobres peões para o meio das ruas. Foi para acabar com o abuso que sensatamente se decidiu colocar aqueles pinos que toda a gente conhece.
Mas aqui, não me lembro de alguma vez ter sido hábito estacionar dessa maneira. E como neste caso os bonecos conseguem juntar o inútil ao desagradável, não estou a ver outro motivo a não ser que alguém se tenha deixado encantar por eles. É isso. Assim não vamos lá.

Germes do terror

Não é debalde que a Europa (e o Ocidente em geral) exibe uma aura de vigor material e implícitas promessas de bem-estar, vida fácil, tolerância, integração. Tudo isso atende aos desejos de qualquer ser humano e não poderia deixar de atrair forasteiros que, acossados por um mundo de misérias, acorrem àquilo que julgam como um porto de abrigo. É bom que assim seja, pelo menos em nome das cristianíssimas caridade e compaixão.
Acontece que por cá também nem tudo são rosas. A começar pelo facto de tal imagem de abundância e satisfação, levada à cena pela ubíqua publicidade, ter fortes elementos fantasistas, logo enganadores. A sociedade real que por esses persuasivos meios promete mundos e fundos dá o pão com parcimónia, e ainda assim sacado com unhas e dentes. Razão pela qual cria fatalmente faixas maiores ou menores de excluídos e auto­excluídos, forçados a ver de fora a sonhada prosperidade, gente para quem muitos devaneios consumistas serão sempre utópicos.
Mas há mais. O progresso não foi dado de borla, tem e sempre teve altos custos. Bastaria dizer que os seus alicerces foram unidos, ao longo de séculos, com uma massa feita de suor, sangue e lágrimas. Ou que se chegou aqui à custa de um longo processo de mudanças, movido a ideias poderosas, que sacrificou gerações à violência, à guerra, à ruína e moldou as mentalidades. Pertencer a este espaço não reside apenas em ser herdeiros do lastro que em nós se acumulou em camadas e nos identifica com o todo civilizacional e a variedade das culturas. É preciso ainda ter em mente que, no presente, a marcha da vasta máquina europeia vive de uma aposta colossal em investimento, planificação, organização, produção que exige grandes esforços a todos mas se impõe como contrapartida aos níveis e estilos de vida. A título de exemplo, a inclusão de uma criança implica um aprendizado árduo que se pode estender por mais de duas décadas e ainda assim não é certa pois, contra o que a ideologia bem-pensante insinua, o sucesso está longe de poder sorrir a todos.
Lugares propícios a uma vida mais ou menos digna, estas sociedades cobram pesados custos às pessoas, gerando nelas fortes sentimentos ambivalentes, em equilíbrio instável. Se é certo que alimentam, protegem e incluem, também com frequência são escassas, opressivas e remetem muitos para fora das suas realizações mais atrativas. A regra é subir a pulso no meio de dura competição. A luta por um lugar ao sol é renhida e os que ficam à sombra, sobretudo esses (e são a maioria), têm de conformar-se a uma vida de trabalho aturado, de monótono e amargo desencanto. Mas, sobretudo, pelo interesse geral os desejos dos indivíduos devem vergar-se a sérias imposições, restrições e renúncias que contrariam os impulsos mais básicos.
Não é pois de estranhar que os escolhos da vida nos possam levar a vários graus de inveja, frustração, ressentimento, ódio e irrompam depois em formas mais ou menos conscientes de agressividade e destrutividade. E se tais forças são geralmente contidas por laços de identificação com a coletividade, também não é necessário que elas nasçam de minorias raciais, étnicas, culturais, religiosas ou entre os que por razões várias aqui vão chegando, mesmo que os seus vínculos connosco sejam baixos ou mesmo inexistentes.
Por tudo isto creio que o “terrorismo islâmico” não parece ser senão uma forma de delinquência, que os novíssimos media incitam e promovem a crime organizado. E a sua ideologia, um pretexto que dá forma a essas paixões ambíguas para com a sociedade e que, alimentadas por pulsões destrutivas, resultam no desejo de a violentar. Para lá do desejo de fuga à mediocridade como forma de vida, à excitação da aventura e do risco, vários sinais mostram claramente que o idealismo espiritual e social dos seus adeptos é uma cortina para tapar o inconfessável.
De facto, mal se propõem fundar algo parecido a um estado é vê-los a satisfazer cobiças grosseiras em inúmeras traficâncias; a saciar ímpetos sexuais desposando uma série de raparigas incautas; a ceder a instintos homicidas trucidando populações indefesas, mesmo que muçulmanas; e a nadar em poder irrestrito para obter tudo isso. Justamente o que de forma mais cómoda fariam aqui na Europa, berço de muitos deles, caso as leis e os costumes não lho proibissem.  

Água mole... O meu jardim (2)

Não me tendo sido possível concluir a última crónica dentro do limite dos três mil e quinhentos carateres da norma, peço ao vereador a quem me dirigi um pouco mais paciência de modo a poder acrescentar alguns itens ao que lá propus.
Entendo que a autarquia veja vantagens em contratar empresas privadas tendo em conta que, nos tempos que correm, sempre é melhor entregar as coisas a profissionais. A chatice é que, lamentavelmente, no meio destes há muitos amadores. Se o fossem no sentido original do termo, que aponta no fundo para a ideia de amar, cuidar, zelar, acarinhar, seria ótimo, tal como o seria a utopia de ver um país inteiro entregue a esta classe de pessoas. Mas em muito do que tenho visto por aí trata-se de amadorismo na aceção mais vulgar, isto é, de inépcia, desleixo, falta de zelo, estar-se-nas-tintas que por vezes, para piorar a coisa, se misturam com estupidez.
Deixe-me só concretizar com alguns exemplos. Na braguinha, de que já falei, tenho reparado que em todas as primaveras se replantam os exemplares que por alguma razão não vingaram, o que é excelente. Entretanto, sempre que aparam o relvado passam também com motorroçadoras para cortar as ervas que crescem junto ao tronco das árvores, onde os corta-relvas não chegam. Acontece que, como esse trabalho é geralmente feito de forma descuidada, o fio daquelas máquinas (que como sabe roda a alta velocidade) desfaz-lhes a casca no fundo, a toda a volta, de forma que quem devia cuidar delas as assassina sem apelo, sobretudo as mais jovens. Entretanto, e sem que ninguém pareça dar-se conta daquele pormenor, voltam a ser replantadas, como disse, repetindo-se o processo ciclicamente pelo menos há uma boa dúzia de anos.
Um dia dei-me ao trabalho de descer e tentar explicar o processo, in loco, a uma senhora engenheira que supervisionava. Olhou para mim como olharia para um homúnculo verde com antenas, tendo eu tido o agudo pressentimento de que a técnica dizia para os seus botões: “E este cromo agora!?… De onde é que me saiu!?...” Nisto, como em tudo, ou se fazem as coisas por gosto, existem princípios, fios condutores, finalidades que nos orientam, ou então anda-se à deriva e tudo é possível. Se não, faça o favor de me dizer: qual é a lógica, por exemplo, de arrancar agreiras já com uns anitos de idade para, exatamente no mesmo sítio, plantar outras agreiras? Pois garanto-lhe que isso já aconteceu no dito jardim. Ou então, de se fazerem podas apenas porque se está no tempo delas e há que cortar qualquer coisa, apesar de os cortes serem mais do que discutíveis? Pela minha parte, enviei várias vezes estas e outras questões para um endereço de correio eletrónico onde parece que os munícipes podem dar opiniões, colocar dúvidas, fazer sugestões. Mas como nunca obtive resposta repito aqui algumas, não leve a mal.
Sei bem que existem pessoas para quem tudo isto são bagatelas, pantominas, coisas de quem tem pouco com que se preocupar. Mas não. Com efeito, a maneira como lidamos com as partes espelha a nossa postura perante o todo, se é que tal separação é sequer pertinente: os pequenos descuidos, incompetências e erros revelam como cada um se posiciona na vida e no final, somados, fazem com que na globalidade esta venha a ser de facto descuidada, incompetente, errática. 
Está ciente, sem dúvida, de que nos últimos anos as tradicionais estações do ano estão desreguladas, que quando o outono já vai avançado temos temperaturas de verão, que quase não há invernos, que a chuva se faz mais rara, que as ondas de calor aumentam de frequência, que os fogos passaram a ser calamitosos. Pois as perturbações climáticas, e é afinal disso que se trata, resultam de pequenos gestos banais e rotineiros, de rituais quotidianos e inconscientes nascidos da nossa relação desajustada com o meio ambiente e que, multiplicados por vários milhares de milhões, acabaram por redundar numa realidade para lá de preocupante.
Talvez já ontem fosse tarde para acordarmos. Mas ainda assim gostaria de concluir fazendo votos para que os espaços verdes, sem deixarem de ser símbolo do que sempre foram, carreguem agora uma nova simbologia, a da união entre o carinho pelo que é nosso e o respeito pela biosfera em geral. O futuro, a sobrevivência, podem depender disso.

Água mole... O meu jardim

Aproveitando é certo para desviar um pouco a água para o meu moinho, não quis deixar passar em claro o facto de os vários candidatos às recentes eleições mencionarem nas suas propostas o cuidado com as zonas verdes. Por isso este texto é especialmente endereçado ao edil vencedor desse pelouro, para quem, não tendo o gosto de o conhecer, vão também as minhas desculpas.
Como os quintais e os jardins das nossas casas (ou mesmo as plantas que expomos nas varandas), as alamedas e as áreas ajardinadas públicas surgiram como evocação e reflexo do campo. No fundo são recantos que lembram com nostalgia, no meio da inquietude árida das grandes cidades, a natureza aberta e livre, a terra pacata e a paz bucólica deixadas para trás, para muitos talvez para sempre. Não é o nosso caso. Bragança é pequena e o campo é mesmo aqui mas, ainda assim, a forma como pensamos e tratamos desses espaços não deixa de revelar o maior ou menor carinho pelo paraíso perdido, o papel que a beleza ocupa nas vidas enfadonhas e em geral um pouco da nossa mentalidade.
Por outro lado, a cidade também se erigiu sobre ideais, valores e modos de vida opostos aos do meio rural e em choque com este. Campónio, rústico, parolo, tosco, saloio, pacóvio, matarruano, são adjetivos que não deixam dúvidas quanto a isso. Portanto é de crer que, almejando civilizar-se, os primitivos citadinos renegassem as suas raízes, exibindo uma atitude parecida à dos novos-ricos: como a ruralidade lhes sugeria as origens humildes ignoravam -na, desprezando quase tudo que os ligava a ela.
De forma que quando se tratou de enfeitar os jardins, foram em busca de espécies estranhas, quanto mais longe melhor. Não por serem mais bonitas, até porque as mais das vezes se calhar nem reparavam muito nisso, mas por darem ares de progresso, evolução, cosmopolitismo. E foi assim que se criou uma tradição, mesmo se ela implica, como aqui, muito tempo depois, plantar magnólias ou palmeiras, como sabe árvores bem adequadas ao nosso clima, perdoe-me o sarcasmo.
Lembro-me, curiosamente, de há um par de anos, uma pessoa do norte europeu que estava de visita (fascinada, de resto, com tudo o que ia vendo) me ter feito certa vez parar na estrada para sair do carro e se deixar maravilhar com os verdes e amarelos de um freixo em finais de outubro. Todavia, para nós, os freixos fazem lembrar lameiros, hortas, cortinhas, a aldeia em geral, assim como os amieiros, os salgueiros, os alfenheiros, os sanguinhos, as aveleiras, os sabugueiros, entre outros (todos um encanto para quem se dignar reparar e não tiver a vista gasta pelo uso), e por isso nem pensar em trazê-los para o meio da urbe.
Pois já que estamos em maré de valorizar e promover tudo o que é nosso (e muito bem, diga-se), deixe-me lembrar-lhe que as ripícolas que referi no parágrafo precedente, algumas incluindo várias subespécies, para além de tolerarem bem as geadas também fazem parte do património. Mas se ainda assim quiser nutrir o irreprimível gosto pelo que é invulgar, o que entendo lindamente, sugeriria, se me permite, algumas outras que sendo indígenas são mais raras, não se ficando atrás em termos de potencial embelezador: zelhas, mostajeiros, fuseiras, lentiscos, tramazeiras, cerejeiras-de-santa-lúcia, azereiros, cornalheiras, etc. etc. Por isso, com o devido respeito, gostava de deixar ao ilustre autarca o desafio de começar a dar às nossas árvores o lugar que por direito lhes pertence nos jardins da cidade.
Há de ter notado que não aludi aos choupos. De facto foi propositado. Já há muito percebi que são uma causa perdida. A aversão a eles é um preconceito tão poderoso como qualquer outro, como o que consiste por exemplo em achar que as correntes de ar provocam gripes. Por mais que se martele não há meio de os afastar, é daquelas coisas que entram na mente popular e para saírem de lá é um caso sério, não vale a pena.
Mas ao menos, senhor vereador, abulam-se definitivamente esses tão malfazejos seres de uma vez, eles e os seus incómodos. Não se insista em plantá-los para, uns anos depois, quando já estão crescidinhos e nos mimam com a sua sombra no verão tórrido, os abater tontamente, como ainda há pouco se fez a umas boas dezenas no jardim da braguinha. A menos que seja mesmo, sabe-se lá, pelo prazer perverso de os cortar. (continua).

 

Água mole... Incomplacente carma

A escusa do desconhecimento de nada adianta na medida em que, mesmo inconscientes, as nossas ações, quaisquer ações, visto surgirem num todo com o qual mantêm apertados laços, têm um impacto necessário sobre ele. Só isso já dá que pensar, mas mais perturbador é constatar que mesmo jazendo inativos sobre qualquer poltrona em estado de silêncio zen ou meditação budista, não apenas estamos a agir como a construir a própria realidade, que fatalmente dá forma ao mundo presente e se há de repercutir no futuro. Por conseguinte, por muito que dêmos por nós a desejar liberdade de ação, ou inação, como disse, sem ter que arrostar as consequências, não há saída, teremos sempre um papel no mundo, seja qual for.
Ora é sabido que há uma série de décadas, com total inconsciência das coações ambientais, se tem vindo a arborizar de forma extensiva parte importante do território com uma espécie exótica, o eucalipto, que, no ecossistema onde é endémica, não só tolera bem o fogo como evoluiu inclusivamente de modo a tirar benefícios dele. Não obstante, a decisão do seu cultivo entre nós não passou de mais um achado, entre muitos, da lógica exploradora das nossas sociedades industriais, lógica que exibe um desdém leviano pelo meio que nos sustém como se não houvesse efeitos, como se não fosse suicida maltratar a frágil bolha de vida de que somos parte e inteiramente dependemos.
É certo que, visto impelir o chamado desenvolvimento, tal ordem de desmandos tem vindo a acelerar e a multiplicar-se por milhões por todo o mundo, nos últimos séculos. Mas no que toca aqui a este peculiar retângulo, o que é mau parece sempre assumir proporções descomedidas, é tudo de caixão à cova, não se faz a coisa por menos. Se assim não fosse, como explicar a sanha predadora representada por essa bizarra e explosiva nódoa vegetal que, ao fazer de nós uma pequena Austrália no hemisfério norte, vai muito para lá do que é razoável e não pode deixar de ser vista como um atentado em grande escala, uma ousadia ignorante que lança na estupefação quem se dá ao trabalho de parar um pouco para pensar?
No meio natural que nos serve de matriz e nutriente, nenhum elemento está isolado e nada acontece sem ter ressonâncias. Ele é uma unidade solidária, onde tudo está ligado e cada parte produz a própria totalidade que a produz. Onde a borboleta que dá às frágeis asas em Saigão pode desencadear uma série de ocorrências que desembocam num mortífero ciclone no Noroeste Atlântico. Onde os blocos de gelo que derretem na Gronelândia vão submergir as terras férteis do delta do Ganges.
Afortunadamente, este nosso calmo recanto tem-se mantido, até ver, mais ou menos incólume à praga, mas a molesta conta do eucalipto (e também do pinheiro, já agora) mais tarde ou mais cedo haveria de chegar, como de facto tem estado a chegar. Ela traduz-se, no caso pendente, em desastres irrefreáveis e assoladores, com o seu desfile de perdas, morte e sofrimento que todos, de uma forma ou outra, suportamos. Contudo, a perturbação que com os abusos temos vindo a provocar nos climas do planeta (uma das consequências e causas dos incêndios), e que mais do que uma hipótese é já uma inquietante certeza, promete muitas mais desgraças, por certo bem mais severas.
No fervor da encenação alvoroçada que parasita a tragédia, debitada de maneira atenazante pelos meios informativos, e enquanto se discute a eficiência de bombeiros, proteções civis e siresps (coisas naturalmente pertinentes), o mais curioso é verificar que nunca se vai à raiz das coisas, pois o espalhafato existe mesmo se calhar para que, para lá do rosário de queixas e lamúrias, não se vá à raiz das coisas. Para montar cenários de faz de conta que desviem as atenções do essencial.
A verdade é que os principais suspeitos se barricam por detrás de um silêncio cautelar, fazendo figas para que se não dê por eles, com medo de que se mexa no ponto doloroso. E sem prejuízo do ónus que a todos cabe, eles são, obviamente, os interesses ligados às indústrias da madeira (com que os donos das terras também lucram, claro). O seu mutismo não acontece por acaso, sendo antes sintomático da tendência, que afinal nos é tão própria, de fugir à dureza incómoda da realidade.