Manuel João Pires

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N’América

Ora viva minha gente. Essa saúde anda valente? Assim espero! Passico de pardal e já cá estamos, mais um ano quase passado. “Caindo o Natal à segunda-feira, tem o lavrador que alugar a eira”. Andava à procura de um ditado sobre o advento para fazer mesa e surgiu-me este pelo caminho. É nestas alturas que dava jeito um tradutor de provérbios para quem meia palavra nem sempre basta. Ainda por cima umas vezes aparece “alugar a eira”, outras “alargar a eira”. Natal, segunda-feira, muitos dias de gazeta para o lavrador, será? Não sei. Outro, “Bom alhal, semeia-o pelo Natal”, mas também “planta-o pelo Natal”. Planta-o, semeia-o, mas afinal... Estou a ficar confuso, alguém me passe com urgência um Borda d’ Água para as mãos. Para mais o agricultor tem sempre aquela coisa de treinador de futebol, às vezes mais de treinador de bancada. Para o mesmo efeito cada um tem sempre a sua tática, o seu modelo de jogo. Uns que é melhor plantar antes, outros depois, uns que é melhor podá-lo e outros deixá-lo crescer. É assim uma coisa meio avulsa mas que faz parte da gíria. A natureza são os jogadores, quando querem correr correm, quando não querem não puxam pelo cabedal e consoante a prestação destes o treinador leva por tabela, umas vezes recolhe os louros, outras a chicotada. Não é fácil a vida de agricultores, de treinadores e restantes comuns mortais. E se forem comuns mortais portugueses então, mais difícil ainda, basta o presente ano para prová-lo. Já nem nos lembrávamos da nossa esquizofrenia, depois de ganharmos o Euro atirámos a medicação fora, mandámos à fava os conselhos do médico, pensámos que seria sempre a subir, o céu o limite. E num ápice o céu ficou também ele à mão de semear, tocámo-lo com a benção do Papa a “amar pelos dois” e pelos demais, para cada turista seu carteirista, a olho nu pusemos um director na ONU. Mas o céu encolerizado de tamanha ousadia, qual gigante Adamastor fora de água, encheu-se de chamas para nos chamar à nossa condição e fazer voltar a cair no triste fado, na noite fria, no pijama cheio de cotão, na chaleira a ferver água para encher a botija e aquecer a cama. Quem vos julgais vós, pobre povo? E este mesmo nosso céu, azul-celeste por fora e impudico por dentro, tanto colocou um ministro no Olimpo duma cidade que todos dizem ser suja, como não deixou findar o ano sem vir buscar alguns dos nossos mais famigerados para a sua perene morada. Cruel, jocoso, uma no cravo, outra na ferradura. – Estou sim, boa tarde, podia dizer-me se tem vaga para uma consulta esta quinta-feira da parte da tarde para o Doutor Marcelo? – Olhe, infelizmente já está tudo preenchido. Consultas de afecto e miminhos agora só para o ano. – ‘Tá bom obrigado, pode ser que até lá com uns benurons e uns vídeo-árbitros isto passe. Realmente, meus caros, falta cumprir-se Portugal. Um Portugal que não seja feito de borracheiras e ressacas. Um Portugal que não acorde a jurar que nunca mais volta a beber até o chamarem para uma festa no fim de semana seguinte. Um Portugal que fosse um cidadão exemplar, contido, equilibrado, zeloso. Um Portugal em que se fale menos e se faça mais.  Um Portugal... que certamente não teria a mesma piada, um Portugal que não seria Portugal, porque afinal “pode alguém ser quem, não é?”.
Deixem-me aproveitar ainda para falar do Zé Pedro, um gajo porreiro. Duas coisas. Primeiro, era aquela pessoa que ninguém conhecia pessoalmente, mas toda agente juraria que sim. Um dos raríssimos gajos porreiros que antes de o ser já o era. Isto é, antes de “adeus aos meus amores” e ir “p’ra outro mundo” já era alguém genuína, verdadeira e unanimemente porreiro. Não aquela pessoa que passou súbita e automaticamente à condição de boa pessoa só porque bateu a bota. E isso não é assim tão comum como se possa pensar, principalmente, de alguém com tanta fama, parte da nossa cultura contemporânea. O segundo aspecto, de especial gozo e ironia, é ver o que foi um jovem punk, marginal, que experimentou tudo o que acabava em “inas” (a frase por acaso é do Jorge Palma, mas podia ser dele) a quem tiraram um fígado que nem para um patêzinho dava (segundo as suas próprias palavras) tornar-se um homem com rumo e chegar ao fim do seu alinhamento a ser saudado e reconhecido por todos os portugueses, mais altas figuras do Estado incluídas. De facto a vida dá muitas voltas. Forte abraço!

Comichão e coceira

Meus caros, como têm passado? Espero que essa saúde esteja de ferro. Não vos vou perguntar por magustos porque de castanhas é melhor nem falar este ano. Quer dizer, haver há. Há sempre, de uma maneira ou de outra. Mas este ano não foi nada amigo dos soutos. Por falar em tempo, parece que por aí, embora já tenham caído umas geadas, as temperaturas andam bem amenas. Eu que estou no tropical ando a pingar do nariz há mais de uma semana e vocês aí no temperado-continental em mangas de camisa a desfrutar dos 20 graus ao sol. Nem com músicas e berloques de Natal São Pedro se deixa intimidar. Já vos disse, não duvidem das suas capacidades. Antigamente falar do tempo servia para preencher aqueles silêncios chatos, desemperrar conversas, agora é a conversa toda. Está trocado. O pessoal no elevador “bom dia, esta austeridade no sector privado até entra nos ossos”, “nem diga nada, e diz que para a semana os professores vão voltar a fazer greve a partir de quarta”. “Isto anda tudo mudado, vizinho”. Quando há tempo para se trocar três dedos de conversa, aí sim se fala do tempo, das previsões, das sequelas mais ou menos trágicas, de Setembros e Outubros passados com chuva e frio de rachar ou então com um calor ainda mais desgraçado. Algures entre o isto já não é o que era e o afinal sempre foi assim. Na verdade, os desbloqueadores de conversa estão para ficar. O que antes era acessório agora é o assunto todo, à imagem das comidas que irritam só de olhar, das cervejas caseiras e dos próprios chefes de cozinha. É porque alguém decidiu jantar rodeado de pedras-mármore, porque fulano tomou a liberdade de fazer ninguém sabe bem o quê, mas que é no mínimo revoltante ou porque escreveu uma palavrinha meio desviada sem sequer se dar conta em algum sítio de pouca monta. Esses são os assuntos. Isso é que é matéria para desfiar em conversa séria, fiada e duradoura. Não é somenos, não é o repetitivo chichi-cocó de criança a aprender a falar. É tema nacional e fracturante. É este o epidémcio caminho do vírus da discussão estéril, do debate fugaz cujo Menino Jesus teria confessado não ter interesse absolutamente nenhum, do dedo em riste à procura de bagatelas e insignificâncias para apontar. Vamos Rocinante que aqueles moinhos estão a pedi-las, os bandidos! Não tenho dúvidas de que foi assim que a humanidade avançou ao longo dos tempos. Lembro-me por exemplo de que há uns anos o Bill Clinton se fartou de piadas da sala oval e mandou um par de aviões bombardear o Kosovo para ver se se falava noutra coisa. Agora não seria necessário gastar tanto em gasolina. Podia simplesmente dizer que determinado membro da oposição usou a palavra “mariquinhas” num jantar em que estiveram juntos e que segundo consta nem sequer estavam a falar dos fados da Amália. Ou, inclusive, que tinha visto um dos seus delatores a puxar os bigodes de um gato com particular malícia quando andavam juntos na escola primária. Até porque os políticos, batidos nestas coisas da opinião púbica, prontamente entraram nesta onda do “eh, ele deu um pum” para tornar a política ainda mais apelativa e tragável. Todas estas indignações ejacolectivas e neo-conservadoras surgem e alimentam-se não poucas vezes de quem se considera com a mente muito aberta. Uma abertura que, no entanto, é pouco mais que uma ténue frincha de uma janela encravada virada para as traseiras de algum beco escuro e imundo como os daqueles filmes americanos que dão a partir da uma da manhã. O vírus neo-conservador da mesquinhez pura e enervante no tempo da pós-comunicação global e webcetera está para durar e manifesta-se sempre neste bullying da demagogiazinha socialmente correcta onde o único lado em que se pode alinhar é o da carneirada junto ao brutamontes acéfalo que arrasa e esbofeteia impediosamente todo aquele que não estiver precavido nem souber  jogar este jogo dos tempinhos modernos. A forma mais eficaz de o combater parece-me que seria chamar aquele castigador da parvoíce dos Gato Fedorento que não deixava passar estas situações incólumes e entrava em cena sem dizer palavra para descarregar uma rajada da sua pistola-metralhadora em cima de todo e qualquer oficial da palermice. -“Castigador da parvoíce! Tu aqui? [Acompanhado de uma alegria surpreendido-aparvalhada], logo de seguida rajada em cima e assunto encerrado. Creio que a pistola era nitidamente de plástico, antes que alguém à falta de desbloqueador mais sumarento se ponha com ideias. Seria uma limpeza épica e o ar tornar-se-ia muito mais leve e respirável.

São Pedro procura casa em Lisboa

Ora viva minha prezada gente. Há quanto tempo! Como vai essa saúde? E a família, tudo em ordem? Espero que sim! Ora parece que este ano o ditado que diz “em Outubro, fogo ao rubro” até soa a piada de mau gosto. Em vez de andar sossegado pelas lareiras anda aí à solta a dar trabalho e chatices fora de tempo. Isto hoje em dia já não está para ditados. Não dá para lhes fazer a atualização, por isso ficam descontinuados. Nem para ditados nem para castanhas! Compreendem agora para onde é que vai grande parte da taxa aeroportuária. São Pedro, ele mesmo, tomou-lhe o gosto. Chinelo no pé, barba bem aparada, smartphone, chaves do carro, maço de tabaco e óculos de sol em cima da mesa da esplanada, “era mais uma, se faz favor”, babes ao fundo a molharem os pés na orla da praia, isto merece uma foto, #não é fácil, #autumn of 2017. Sempre foi meio céptico, mas encontra-se completamente rendido às evidências, há quem diga que está a atravessar uma crise de terceira idade, outros dizem que foram os copinhos de chocolate da ginjinha de Óbidos. Primeiro a Secretaria de Estado do Turismo enviou-lhe uma carta, obrigado por toda a consideração e amabilidade que tem tido connosco nestes últimos anos, dentro seguia um bilhete de avião para vir cá em baixo ver isto com outros olhos. Tempos depois mandaram fechar o gabinete para lhe renovar o visto. Peixinho grelhado, copo de vinho branco, toucinho do céu. “Esta gente estraga-me com mimos”. Sacrilégio é não dar uma ajudinha para continuar a fazer de Portugal o país mais cool da Europa. Com o seu charme de sessentão renascentista tem sido visto no ginásio, consta que disse que o budismo até é uma cena fixe que não impõe nada a ninguém e que se não tivesse medo de agulhas até fazia uma tatuagem de uma daquelas mãos com olhos no meio das costas. Está a levar isto de ficar entre nós muito a sério e aos poucos vai ficando entendido na matéria, na sua opinião não havia motivo para grande penalidade, prefere o pão de Mafra ao pão alentejano, o bitoque não é bem nem mal passado e o café é sempre curto em chávena escaldada. Se for para ficar cá a viver ainda está indeciso entre um apartamento remodelado com ampla vista para o Tejo ou uma moradia na margem sul mesmo junto à praia. Diz que já andou a ver casas muito bonitas do outro lado do rio, mas todas têm o inconveniente de ficarem de costas para o Cristo-Rei e “isso é uma coisa que dá azar”. Enquanto e não, está a partilhar um quarto através do Airbnb, reconhece que podia estar num hotel com outras mordomias, mas assim “conhece-se pessoas e é mais humano”, embora o colega de casa agora tenha trazido a namorada para viver come ele e ela “deixe o lavatório cheio de cabelos”. Já sabe pedir “água com gás” em português, para meditar e encontrar-se com Deus gosta de ir à Boca do Inferno, não é particular apreciador de bacalhau e diz que acerta “quase sempre” no preço da montra final. Mas além de andar por cá a levar uma vida santa São Pedro também tem de mostrar serviço. Está responsável por não fazer cair uma gota de chuva e deixar o Verão ficar por cá até lhe dar na real gana, ano após ano. Se os governantes nos vendem lá fora como o país com “mais de 200 dias de sol por ano” com São Pedro entre nós podemos ir até aos 300. Nem precisamos de chuva, só serve para espantar as pessoas. É como mudar de canal e aparecer a Teresa Guilherme. Para justificar o investimento está com algumas ideias em carteira: primeiro essa coisa do 21 de Setembro, dos solstícios e equinócios tem de acabar, isso é muito pré-história, não reflecte os tempos modernos. O Outono não precisa de 3 meses para nada, pode ceder um mês ao verão e ainda lhe sobra tempo para andar a varrer folhas do chão. Depois também não tem jeito nenhum fazer a juventude começar as aulas com mais um mês de calor intenso pela frente. Um aluno não se consegue concentrar quando poderia estar lá fora a apanhar umas ondas e a curtir um festival de verão para ser forever young. Festivais de Verão até Novembro claro, permitiria realizar mais uns 120, pelo menos. Noites e festas temáticas, publicidade com gente descascada, bebidas que não são carne nem peixe, etc, toda uma indústria que poderia ser melhor aproveitada se não fizéssemos de conta que o Verão acaba mais cedo. São Pedro até costumava ser amigo dos agricultores, dos pastores e de todas as coisas campestres e com cenários bucólicos, mas isso já foi chão que deu castanhas. Pode ser que seja só uma fase. Forte abraço!

 

A talhe de foice

Ora muito bons dias. Bons olhos vos vejam. Por aqui tudo a andar, felizmente. Então as foices já chisparam muito por essas searas adentro? Parece que este ano o tempo andou mais marçagão do que granaio. De qualquer modo já ninguém anda de foice em punho nem de fardo ao ombro, quanto muito de volante de ceifeira debulhadora nas mãos. E andar à torna jeira e começar a segar ainda antes do sol nascer, e as cantigas e as comidas da segada e aquelas primeiras ceifeiras debulhadoras de madeira que vieram e que pareciam umas máquinas do futuro e de um passado longínquo ao mesmo tempo. As poucas que vi, ao vivo, em ruínas envergonhadas, ou em fotos antigas cheias de vida e de gente em cima delas… Sempre me custou perceber como é que uma máquina daquelas, aparentemente tão complexa e rudimentar, pode ter vindo para facilitar. Ainda por cima precisava de tantos homens com funções tão definidas que mais parecia toda ela uma daquelas máquinas ou fábricas onde o Charlot trabalhava e mostrava os novos paradigmas e problemas com que os homens do seu tempo se deparavam. Na foto que vi estavam uns em cima, outros em baixo, alguns pareciam enfiados lá dentro, uma autêntica e bizarra - a palavra é precisamente esta - geringonça. E o moleiro, já me esquecia do moleiro, marcar um dia, ir de burra até ao moinho, levar-lhe o cereal e em troca dar-lhe de almoçar e uma parte da farinha. Não passei por isso, mas não invento nada, sabem que eu tenho as minhas fontes… Mas este talhe de foice não vem do cereal, mas de tudo um pouco, desde o que por aí tem acontecido ao que tenho andado para aqui a falar e que vós tendes a bondade de ouvir. De ler, digo. Na verdade o título destas palavras de hoje era para ser gaspacho. Um gaspacho de considerações muito pouco saborosas. Começando, os recentes incêndios do centro do país. [Pausa]. Os meus sentimentos a todos o atingidos. [Pausa]. Por acaso há uns anos andei aí a lutar com um fogo, embora com proporções bem menores, é uma aflição muito grande. E uma aflição que sarcasticamente sabemos que vai voltar Verão após Verão. O que é particularmente triste. E até revoltante. Evitar estes incidentes e apostar na prevenção para proteger meia dúzia de casas pingadas não dá dinheiro nem votos, de modos que não quero lançar mais achas para a fogueira. A questão é que este tema chegou aqui à China em força. Nos noticiários, nas redes socias, três palavras repetidas: Portugal, fogo, floresta. Durante essa semana toda a gente me perguntava o que se andava a passar, mas eu próprio (e não fui o único ao que parece) ainda não percebi bem o que se passou. Vinham os chineses perguntavam-me, e os ingleses, e os americanos, e os espanhóis e todos. Tirando quando a selecção de futebol se destaca, não é normal a actualidade trazer assim o nome de Portugal de modo tão expressivo. Para quem não conhece o país fica uma ideia um bocado negativa (um bocado bastante grande). Incêndios há muitos, da Austrália ao Canadá ou à Califórnia, agora… A pergunta que se impõe é: "o que é que andaram a armar?”. Averigúem isso, bem averiguado, se faz favor. E quando se estava na ressaca ou no rescaldo de tudo isto, vem a bomba (a falta delas) de Tancos [Oh que…]. No princípio parecia uma coisa de somenos, mas logo se viu que era algo lastimosamente sério. E igualmente difícil de compreender. Que eu saiba não chegou aqui, excepto aos espanhóis que cá estão. Os seus meios de comunicação deram realce. É verdade que nos pusemos a jeito, mas não perderam tempo a fazer pouco. É incrível, estando nós colados, ver o desconhecimento que de modo geral têm de nós. Excluindo talvez a Galiza e localidades mais fronteiriças. Nuestros hermanos vivem virados para as Alemanhas, Franças e Inglaterras e vêm-nos como aquele primo campónio que parou no tempo, feliz com o seu bacalhau e sempre pronto a vender atoalhados. Estão ao nosso lado mas, de modo geral, passam-nos tanto cartucho como se estivessem a milhares de quilómetros.
E isto não são considerações minhas, não é assim tão difícil de constatar, já muitos mo admitiram, e ainda há um par de dias um vizinho espanhol reconheceu ele próprio tudo o que eu acabei de escrever em cima. Estereótipos, preconceitos. Concluindo: Para eles, que vão comer uma bela pratada de gaspacho, do nosso, para que se dêem ao trabalho de perceber quão pouco distamos, de saber como somos e de compreender que estereótipos e preconceitos brotam sempre da mesma fonte: desconhecimento e ignorância. Para nós, a mensagem é para não descansarmos à sombra de nenhuma bananeira, nunca dá bom resultado. Afinal somos muito melhores do que isto, tolerância zero para mais tristes figuras. Vejam lá isso. Força, um abraço!

Mundividência

Boas tardes meus caros. Como têm passado? O calor aperta por aí? Costuma dizer-se que o tempo que vem no seu tempo não é mau tempo. O tempo, sempre tão dado a ditos e lengalengas. Sem perder tempo vou dar-me a outras considerações e mudar um pouco de assunto. Por mais que os tempos avancem e se celebrem vitórias há uma coisa de que os portugueses mal conseguem desprender-se. De cada vez que se fala do estado das coisas em geral ou de algum tema em particular lá vem o velho argumento “porque lá fora é assim”, porque “na Europa faz-se assado”, porque “lá é diferente” (entenda-se por diferente muito melhor do que cá). Primeiro este tema não é novo. Já Eça de Queirós escrevia acerca desta tendência para o português facilmente se deslumbrar de cada vez que ia ao estrangeiro e uma vez regressado ninguém o calava com esses “porque lá fora isto, porque lá fora aquilo”. Falava desta espécie de basbaquice portuguesa acompanhada pelo constante engrandecimento de tudo o que se fazia no estrangeiro e a tendência para a desconsideração da nossa própria forma de fazer as coisas. Hoje em dia ainda é comum estar a ler notícias ou entrevistas e surgir o tal “porque na Europa”. Portugal, país acontinental de morada desconhecida, onde a Europa é outra coisa. Penso que estes princípios e atitudes, como tudo, têm um lado bom e um lado mau. O lado bom é que olhamos para fora e de uma maneira ou de outra nos inspiramos ou aprendemos algo com isso. Somos um povo atento ao mundo, basta ver o espaço que as notícias - de todo o tipo - estrangeiras têm nos nossos meios informativos. Nas décadas mais recentes apreendemos e adoptamos muitos modelos e condutas importadas, nem todas se aplicam à nossa realidade, mas a verdade é que essa atitude nos ajudou a melhorar, a desenvolver, tentativa, erro, a encontrar o nosso estilo com essa noção presente de como é “lá fora”. É verdade que sermos um país que se cruza em duas horas ajuda um pouco a esta predisposição. Países territorialmente extensos, quiçá demasiados extensos para um país só, têm muito com que se entreter dentro de portas, diferenças de vária ordem para agregar diariamente, sendo que não possuem nem de perto nem de longe esta visão global como povos de todo um vasto mundo que os circunda. São de certa forma países autónomos e auto-suficientes no que à mundividência (visão ou concepção do mundo) diz respeito. Países há que têm objectivos muito concretos no que respeita a esse “olhar para fora”, perseguem ferozmente certos modelos económico-sociais (mais económicos do que sociais) e fazem uma filtragem do que consideram acessório ou dispensável para conservar essa concepção. A China, pois claro, tem ambas as características. Em chinês, China (中国 –Zhong guó) significa “país do meio”. Reparem bem em como é gráfico esse primeiro caracter e nele se consegue divisar perfeitamente o significado de “meio / centro”. Historicamente a China sempre se viu e se vê como o país do centro. Aliás, o que para o Ocidente a Antiga Grécia representa, a Oriente todas as culturas beberam de uma forma ou de outra da ancestral China Imperial. Por exemplo, aqui o mapa do mundo tem a China (Ásia) no meio. A Europa e África à esquerda e as Américas do lado direito. Quando vejo um mapa-mundo dos chineses lembro-me do Cabo da Roca e da pedra que cita Camões, “onde o mar começa e a terra acaba”. Isto porque à esquerda de Portugal no mapa só o Oceano Atlântico. Mas se afinal o planeta é redondo quem os impede de o apresentar deste modo e de se colocarem no lado que quiserem da fotografia? Estas coisas ajudam a perceber como os povos se vêem no meio do mundo. Isto é, os chineses vêem-se literalmente no meio, no centro do mundo, mas o que eu queria dizer é como nos vemos como parte deste planeta, deste conjunto de territórios e nações. Não me esqueci, o lado mau. O lado mau é que esta ideia constante de tomar o lá fora como exemplo, por vezes faz-nos ver um pouco mais pequenos em relação aos outros e, como consequência, faz com que os outros nos vejam também dessa forma. Um pouco como aquela do “se não gostares de ti quem gostará?”. Neste caso, se te vês a ti mesmo de um determinado modo como queres que os outros te vejam? Os nossos olhos postos lá fora, e nos que vêm de fora, dão-nos uma visão do mundo mais ampla e inclusiva. Em jeito de balanço creio que esta postura tem-se despido bastante da pequenez de outrora e tem tido um impacto considerável e positivo em nós enquanto sociedade. Mas o que será exactamente este “lá fora” que tanto repetimos? Talvez volte a falar disso. Cuidai-vos!

Agnus comei

Ora boa tarde a todos. Como têm passado? Essa Primavera quase acabada de chegar, a natureza no seu esplendor, tão bom de se ver. Por falar em Primavera ocorre-me falar da celebração que, entre outras coisas, comemora o primeiro domingo de lua cheia depois do equinócio da Primavera, a Páscoa. Há quem fale de festividades pré-cristãs na sua origem, há quem aponte a herança de uma ceia judaica, que todos os anos lembrava o êxodo dessa comunidade, acolhida nos primeiros anos de Cristianismo. Seja como for, esta coisa de Cristo ter nascido a 25, dia fixo e redondo resvés solstício de Inverno quando mal era conhecido, e de subir aos céus em dias diferentes, umas vezes em Março outras em Abril quando meio mundo o perseguia, às vezes é de deixar uma pessoa meio baralhada. Mas não é de botas e perdigotas de que vos venho falar. Venho falar de tradições. Tradições trasmontanas. Que me lembre este é o período do qual mais tradições recordo. Recuemos uns dias. Carnaval. Segundo os mais velhos havia uma tradição que era fazerem-se os casamentos. A rapaziada juntava-se nessa noite em dois grupos e munida de grandes funis de ferro “casava”, de uma forma tanto ou quanto carnavalesca alguns casais, passem o pleonasmo, da aldeia. Em locais estratégicos, de uma encosta à outra da povoação, para que todos ouvissem, eram anunciados esses inusitados e exagerados matrimónios. A última geração que fez isto foi a de meu irmão, meia dúzia de anos mais velho que eu, depois disso a tradição morreu. Na Páscoa a tradição era os homens na noite de sábado juntarem-se num forno e comerem o cordeiro. Não sei se é preciso o esclarecimento, mas entenda-se forno como o espaço ou divisão (dos que o tinham ou têm) onde se cozia o pão, etc. Comia-se o cordeiro pela noite fora e durante a madrugada ia-se cantar a ressurreição. Tocava-se o sino e cantava-se a ressurreição. Estou a escrever ia-se, mas posso escrever vai-se, porque esta tradição ainda se faz, ainda persiste. Muito menos gente, muito menos vontade de comer, muito menos pela noite fora, mas mais pessoas de todas as idades e mais igualdade de género, o que só prova que as tradições por mais recônditas também se sabem actualizar. Quando eu andava mais por aí ainda se fazia o cordeiro dos solteiros e o dos casados, agora creio que há só um, e a ressurreição não se cantava num ponto só, no adro da igreja parece-me, mas percorria-se a aldeia toda em alegre caminhada e sacra cantoria. Era uma tradição dentro da tradição e servia também como uma espécie de intervalo para desmoer. Depois voltava-se ao forno e atacava-se o cordeiro novamente. Mas havia mais. Fazia-se algo bastante poético que era pôr flores às janelas das raparigas solteiras. Diz que eram coisas mais elaboradas noutros tempos, incluindo vasos e bilhetinhos e tudo, e também com propósitos mais concretos. Houve um ano em que eu e outros ainda chegámos a fazer mas muito mais na desportiva. Creio que na manhã seguinte foi maior a fúria das vizinhas que ficaram com os canteiros semi-destruídos do que propriamente o contentamento das raparigas visadas. Mas fez-se tradição! Agora é mais uma já finada. Em suma, cordeiro e ressurreição lá vão resistindo. Muito devido à teimosia de uma mão cheia de puristas. Flores e casamentos já se perderam. E pronto, é assim a vida, fica o registo, muito bons dias e até amanhã. Ora bem, o que é curioso no meio disto tudo é que segundo sei estas tradições não têm igual mesmo nas aldeias vizinhas. Não se faziam sequer nas localidades próximas, o que demonstra como viviam isoladas e que apesar de haver um contexto sociocultural semelhante, dentro disso cada comunidade desenvolvia os seus próprios hábitos, as suas próprias interpretações e tradições. Quer-me parecer até improvável que não houvesse ou não haja outras aldeias trasmontanas com iguais ou semelhantes tradições, mas sinceramente desconheço. Para mim não pode haver Páscoa sem que se cumpra a noite do cordeiro e oxalá assim seja por muitos e bons anos. Força! Páscoa feliz!

Os cidónios

Meus caros, como têm passado? Hoje venho falar-vos de um “curioso personagem”, mas não é Jeremias, o fora-da-lei. Trata-se do ou dos cidónios. Ora bem, os cidónios são um contraponto dos campónios. Sobre estes últimos muito se caricatura, toda a gente conhece a figura, cai sempre bem no imaginário galhofeiro de qualquer país. Os primeiros, os cidónios, são espécimes absolutamente convencidos da sua condição superior e distintiva pelo simples e pasmável facto de terem nascido ou sido criados numa cidade, arrabaldes incluídos. Aliás, certa vez ouvi da boca de uma cidónia assumida “Ah e tal para mim é diferente porque eu sou mêmo de Lisboa, não sou como muitos que andam por aí e vêm dos arredores…” (?!) Tendo em conta que Lisboa não é a Cidade do México em que alguém depois de 4h no trânsito para atravessar a cidade chega a uma ponta e está em Castro Verde ou chega à outra e está em Aveiro… E mesmo não tendo em conta o disposto anteriormente, não entendo que diferenças abissais possam ter duas pessoas que nasceram nestes espaços geográfica e socioculturalmente tão longínquos e alienados. Mas, bem entendido, esta afirmação não tem nada de ridículo. Nem pura estupidez. Talvez uma dose de vaidade, cartão amarelo-alaranjado a roçar a bazófia cidónia, sim senhor, mas tudo dentro da legalidade do conceito. E este episódio passou-se em Macau, revelador de que ser cidónio é uma condição e uma presunção que se leva na bagagem pela vida fora e além-fronteiras, como um par de postas de bacalhau ou aquela adorada e rafada camisola velha que nunca mais vamos chegar a usar. Todas as cidades têm os seus cidónios, independentemente da dimensão, mesmo nas pequenas cidades do interior se encontram cidónios com uma perspectiva ligeiramente superior em relação aos habitantes das vilas e aldeias limítrofes. Contudo, para os cidónios das cidades do litoral os cidónios do interior não passam de campónios, embora um nadinha mais apresentáveis. A respeito destas particularidades dos tipos de cidónios trata-se de diferentes características e tipologias entre os mesmos, aquilo a que os académicos e estudiosos da área definem como contextos microcidónios. Os cidónios por norma desconhecem os territórios da área que está para lá do que eles próprios definem como cidade, e se por ventura se aventuram a dela sair, fazem-no com a certeza cidónia de quem começa o jogo sempre a ganhar por 3-0. No contacto com o outro, leia-se o não-cidónio, a goleada muda aos 5 e acaba aos 10. O cidónio só treme com o citadino. Perante este último põe sempre o autocarro à frente da baliza para ver se não perde por muitos. Por isso é espécime a evitar. Com todos os outros o cidónio é sempre a aviar, está ganho, não é preciso mexer uma palha, a camisola de cidónio vence jogos sozinha. É esta a principal condição do cidónio, única e simplesmente ser cidónio é vantagem, sinal mais. Assim como o verdadeiro campónio, o cidónio tem um certo défice cultural/formativo e é precisamente desse vazio que nasce a fonte cidónia (e campónia). A diferença é que o cidónio acha que essa insuficiência fica perfeitamente colmatada pelo facto de ser… cidónio. O cidónio não tenta, talvez não consiga, compreender o outro, o infeliz, às vezes aparentemente conformado e até satisfeito com a sua condição de não-cidónio, nem citadino, o pobre coitado… O cidónio por norma não tem uma referência, um espaço que sinta como seu onde possa sentir refúgio ou sentir-se bem vindo, não sabe ou nunca soube o que isso é. Muitas vezes o cidónio não tem nada, sequer onde cair morto. Inclusive não poucas vezes o cidónio vem de lugares tristes, deslavados com pouco ou nada de cidade. Mas não interessa como nem de onde. Todos invejam a sua sorte, é natural. Ser cidónio é ser mais alto, é ser maior do que os homens. Estive no Porto, muito menos tempo do que gostaria, e soube pela boca de gente amiga da minha geração que cidónios portuenses estranham vincada e cidoniamente tradições, vivências e hábitos culturais trasmontanos (inclusive enchidos como o botelo). Alguns até passaram a acreditar que as abóboras vêm de árvores às quais se põem estacas para não vergarem ao seu peso. Como é possível ser-se tão cidónio? Em pleno séc. XXI e dentro de um espaço TÃO pequeno?! Eu que vivo numa cidade com quase 5 milhões (M) de pessoas, a 100km de uma com 15M numa província com 80M e num país com 1.400.000.000M, onde os do Norte são mais altos que os do Sul, há oito diferentes tipos de gastronomias, gente que conheço demora 3 ou 4 dias de comboio para chegar à terra natal, depois de um longo etcecetera, pergunto: mas que raio de diferenças culturais, de mundos desconhecidos e inexplorados, de criaturas monstruosas e aterradoras, e de mares inavegáveis e intransponíveis poderão existir para lá de uma hora ou duas de boas auto-estradas?! Cidónios de Portugal, francamente…

 

Corações ao Alto

Muito boas tardes, bons olhos vos vejam minha estimada gente. Ora deixem-me lá sentar um pouco aqui junto a vós neste banco de pedra. Deixem-se estar que cabemos todos. Ah, que bem que se está aqui. Março, marçagão, tardes soalheiras à espreita, já começam a saber bem as sombras. Pois é… E então como vai a vida? Já se vêem as andorinhas? Sim senhor… Por falar nisso diz que “quem em Março asserenou tarde acordou, mas quem asserenou bem se achou”. Asserenar, fazer serão, pois claro. As noites a ficar mais compridas e o chupão a pedir menos lenha. Não tarda vêm os Ramos e depois a Páscoa. A Quaresma, e pensar que houve um tempo em que durante estes dias não se comia carne à sexta-feira e que quem pagasse a bula ficava livre de tais comprometimentos. O padre a fazer de cobrador (de almas) e a igreja a cumprir o “venha a nós o vosso” (reino). O Ministério da fé e dos negócios (de Deus) não deixava contas por acertar, não havia mar que não se abrisse nem montanha que não se demovesse para quem tivesse o espírito recheado (de bondade). Expliquem estas e outras coisas aos miúdos de agora. Não era ser-se religioso, era ser-se resignado, submisso, submisso da falta de tudo, tudo o que permite aos homens terem o mínimo para poderem sequer conseguir pensar em reflectir sobre o que os rodeia. E quem tinha um olhito, facilmente coroado rei entre miseráveis. Corações ao alto que deixámos de ser assim – e o mais incrível no espaço de uma só geração - viver a religião, mas com um mínimo de discernimento, de consideração. Mudámos, entrámos na Europa, fizemo-nos país desenvolvido. Não tenham medo das palavras. Falarei disso numa próxima. Olhar para o mundo numa perspectiva global. País desenvolvido, do primeiríssimo mundo. Não o deixamos de ser por insistirem em nos colar o autocolante amarelo no vidro como se fossem agentes das empresas municipais de estacionamento: “Roda bloqueada e venha o reboque retirar este veículo da segunda fila da economia mundial: aqui está a factura, vai desejar com ou sem contribuinte?”. Não o deixamos de ser. Não é porque devêssemos ter mais centros de saúde abertos ou porque o médico não vem tanta vezes como gostaríamos, é porque temos liberdade e capacidade para o exigir e é sobretudo, porque há 50 anos nesses mesmos lugares crianças nasciam sem sequer saber o que eram cuidados de saúde e crianças morriam como não se morria em lugar nenhum do mundo. Caso de estudo a nossa redução da taxa de mortalidade infantil. Falem destes avanços aos jovens. Não é por termos escolas a fechar, onde para todos os efeitos há pouca gente, é por termos boa, diversificada e acessível educação. É por termos pessoas licenciadas a tratar dos nossos filhos nos jardins de infância. Trabalhei com público adulto e é surpreendente, chocante, bárbaro, a quantidade de gente neste país que deixou a escola por só dela receberem rispidez. Não era rispidez, era violência, porrada, da grossa nalguns casos. É atroz a imagem que tanta gente neste país guarda da escola. Aspereza em casa, toma crueldade na escola para aprenderes. Estamos a falar de crianças, crianças. E isto até há um par de décadas. Duas coisas: Primeiro, há que reconhecer o esforço e o mérito de uma geração que passou por tudo isto, que sofreu, que penou, que viu a sociedade mudar e mudou com ela, que começou lá muito em baixo e deu a volta por cima. Segundo, isto tem de ser partilhado com a juventude. É a nossa história, havia gente dentro disso, vidas, gerações de pessoas. Famílias, escolas, entidades: investiguem, partilhem, interajam, transmitam. É assim que se aprende a dar valor ao que se tem, sem darmos o que termos por garantido. É assim que se aprende a dar valor ao que os nossos pais nos conseguiram dar, sem descurar que o conseguiram à custa de muito suor e trabalho. É assim que se aprende de onde vimos e a defender o que somos, sem nunca esquecer que amanhã tudo pode mudar. É assim que se aprende a querer ir mais longe, para podermos estar mais preparados e dar o melhor de nós ao mundo onde vivemos. Pensem nisso. Bem, minha gente agora se me dão licença vou indo que “moinho parado não mói farinha”. Obrigado por este bocado. Boas tardes e até amanhã!

Palavras muy caras

Ora viva, alegre gente. Como vão esses dias, agora mais pequenos, as noites maiores e mais frias. Está bom para a castanha vos fazer companhia nesses serões compridos. Por exemplo, cozidas com uma pitada de sal e outra de erva doce, uma delícia. E foi esta a sugestão culinária da semana. Por falar em sugestão permitam-me que faça deste parágrafo um pequeno tempo de antena. Realizou-se no último mês de Outubro na aldeia de Avelanoso, concelho de Vimioso, a 2ª edição da “Feira da Castanha e dos Produtos da Terra”. Mostra de produtos, magustos, música, caça, luta de touros, um fim de semana em cheio cujo ponto alto terá sido um almoço comunitário que juntou cerca de 400 pessoas. Desde já os meus parabéns à organização por fazer deste um evento que se está a enraizar e que se desenvolveu de um ano para o outro. Deixo apenas um reparo ao departamento de comunicação. Para além de todas as actividades, juntar 400 pessoas ao redor de uma mesa numa aldeia do nordeste é por si só matéria suficiente para se ter a comunicação social da região interessada em saber o que lá se passa. Para a próxima convém trabalhar mais esse aspecto. Fica o registo para todos. Este espaço foi da exclusiva responsabilidade dos seus intervenientes. Ora bem, tinha-vos dito que iria falar de um assunto que me é familiar. Porque o prometido é devido, tal como gerações de governantes nos têm zelosamente demonstrado, vou trazer hoje a talhe de foice algum vocabulário muito particular que a minha mãe costuma utilizar em várias circunstâncias e do qual já se pode dizer que está em desuso, o que na verdade tem tanto de sério como de desgostoso. São pequenos berloques de património sociolinguístico nordestino que apesar de estarem aqui fora do seu contexto – o que ajuda sobremaneira à sua compreensão – têm um significado que eu considero simultaneamente engraçado, meio esquisito e etnográfico também. Talvez nem esteja a exagerar. Em baixo deixo-vos uma dúzia de vocábulos de que me lembro de cabeça, espero não recorrer a nenhuma outra fonte de inspiração. Aí vai sem seguir ordem alfabética: cacharro, do espanhol, caçoula, panela, mas pode ser qualquer objecto, até o telemóvel por exemplo “andas sempre com o cacharrico na mão”. Estrelouçar, fazer muito barulho, com a louça ou com outros objectos. Muitas destas palavras têm um valor semântico muito ligado à sua própria fonética, isto é, o próprio som da palavra diz muito do seu significado. Enzonar, enredar, andar a fazer que se faz, perder tempo com algo sem importância, “pára de enzonar e ajuda-me a pôr a mesa”. Espingarotar, molhar algo, pingar, deixar o chão cheio de pingas. Palôncio, homem desajeitado, pouco activo, meio aparvalhado. Tartanhos, os tornozelos – corrijam-me se estiver errado – os tornozelos/pés/pernas. “vou-me sentar aqui ao lume para aquecer os tartanhos”. Eslombeirar, deitar, estender o lombo. Estive a aquecer os tartanhos agora vou-me eslombeirar aqui um pouco no escano”; ou então “ele eslombeirou-se no chão”, estatelou-se, caiu. Esferrunchar, na internet diz que tem um uso algo corrente em espanhol, como arranjar, consertar…mas aqui o significado não é bem este, quer dizer, também pode ser, mas o mais corrente… digamos que tem bolinha vermelha no canto. Cuchifrete (não sei se é assim que se escreve), coisa ou objecto insignificante, normalmente que está a ser um pouco irritante para o interlocutor. “Larga esse cuchifrete e vem ajudar-me”. Escarabulhar, esmiuçar, procurar, escolher com muita minúcia, “deixa de escarabulhar e escolhe as laranjas de uma vez” ou escarabulhar um castanheiro até que não fique nem uma castanha por apanhar por mais fulecra que seja. Rumiacos (ou será com o?), musgo que se forma em águas paradas, como um tanque ou um açude; pode referir também as moncas do nariz; Criatura, esta usava-a a minha avó nas poucas vezes em que se arreliava com os netos. Valia a pena chateá-la só para a ouvir dizer enervada “Ah, criatura!”. Curioso que num livro datado de 1932, Formas de tratamento em português, de Cláudio Basto podemos ler: “homem de Deus, alma de Deus ou criatura são exclamações que se usam quando o visado faz algo incorrecto”. Ehehe. E pronto por hoje é tudo. O trabalho de casa é fácil de adivinhar qual é. Fazerem vocês mesmos um levantamento de tantas outras palavras de que vos lembrais e que se poderiam perfeitamente acrescentar a estas. Força! Um forte abraço!

Quem diria.

Muito boa tarde a todos. Então esses dias como vão? Já chegou o Outono ou agora o Verão passa o testemunho directamente ao Inverno sem passar cavaco a esta estação do ano? Apanhar castanhas em mangas de camisa não é lá muito agradável, sobretudo porque tem reflexos no preço de venda. São Pedro que faça bem o seu trabalho e traga de lá o frio e as chuvadas que se querem por esta altura, pelo menos até deixar São Martinho tomar conta do boletim meteorológico durante uns dias. Este Verão trasmontano, onde a castanha é o astro-rei, é movido a chuva e a frio quanto baste. Por isso oxalá esteja tudo em conformidade e não falte castanha de qualidade nem bons convívios à volta dela. Força! É por aí, neste meu bom convívio convosco, que hoje vou falar um pouco de como as pessoas vivem e convivem nos tempos que correm. No outro dia estava a dar uma vista de olhos pelas notícias no site da BBC e achei piada a uma daquelas tiras de cartoons ou desenhos animados em que alguém mais velho dizia para um jovem algo do género “antigamente é que ser emigrante era difícil, demorávamos dias a viajar, recebíamos uma carta de quando em quando, vivíamos isolados, etc.” e depois surge uma foto do jovem com o telemóvel na mão e a dizer “ok pai, desculpa mas agora vou ficar sem bateria, falamos mais tarde.” Sem mais demoras dois nomes estrangeiros mas que quase toda a gente aprendeu a pronunciar na perfeição. Skype e Whatsapp. Muito provavelmente as melhores invenções do século vinte e um. Pois, bem me parecia que muitos de vós concordáveis comigo. Quão importantes se tornaram para nós comunicarmos. Como vieram aproximar as pessoas, se está frio, se está calor, o que é que se comeu, o que é que se bebeu, aí vai a foto do domingo em família e dos rapazes que já vão criados. Reparem que agora logo é notícia que alguém anda desaparecido se passou dois ou três dias sem dar sinal de vida. Sem dar sinal de vida virtual, bem entendido. Algo de errado se passa se não se está ligado. Interessante como vemos e sabemos dos outros, como no controlamos. É verdade sim senhor, tudo tão igual desde há tantos anos a esta parte. Às vezes imagino quanta gente viveu décadas sem luz eléctrica até aos anos 70 e que hoje se tornou um ás destas ferramentas. Quando digo “quanta gente” leia-se meus pais, pelo menos. Como as coisas mudaram e de forma tão imprevista. Aos 20 anos à luz das velas – creio que não era tão romântico como esta frase acabou de soar – e aos 60 de “cacharrico” na mão – um dia hei de vos falar sobre as palavras estranhas que a minha mãe sabe – a escrever mensagens e a enviar fotos para o outro lado do globo. É realmente incrível quando penso nestas coisas, em como hoje é fácil estar em contacto. Sabem que eu gosto sempre de fazer a ponte ou de dar a conhecer um pouco dos hábitos por estas bandas. Os chineses não usam as nossas redes sociais, algumas até estão censuradas, têm as suas próprias, e como são tantos, costumam ter mais usuários do que as ocidentais. Em abono da verdade os chineses são muito mais tecnológicos do que nós. Compra-se um telemóvel numa loja e passado três meses já lá não está. Quando vou a uma das nossas lojas de telemóveis sinto-me num local com dispositivos a caminhar para o pré-histórico. Aqui há muitas marcas, muita oferta, muita procura. Vai-se no autocarro, novos, velhos, não há ninguém que não vá de olhos baixos no ecrã. Normalmente a ver as novelas deles. Por exemplo, é sabido quão útil é o Whatsapp, mas os chineses têm uma aplicação idêntica mas ainda melhor. Toda, mas toda a gente sem excepção a usa para comunicar. Não se dá o número de telemóvel, dá-se o número do Wechat. Tem dezenas de funções, inclusive partilhar carros. Estamos numa rua movimentada, pesquisam-se os carros aderentes e “pede-se” boleia. Apanha-se um carro na hora, num par de minutos, muito mais rápido do que demora um táxi a passar. Para que não haja dúvidas sublinho que isto se passa na China. Na eventualidade de algum caro amigo taxista estar a ler, queira ficar descansado. A função mais comum é o pagamento ou transferência de dinheiro. Sou um bocado conservador nestas coisas mas durante uma destas semanas decidi experimentar. Percebi porque há pessoas que nem sequer usam carteira. Em todo o lado se pode pagar com esta aplicação. Quando digo todo o lado é mesmo todo o lado. Desde a mulher que vende legumes na praça, ao hipermercado, loja de bairro, centro comercial, todo e qualquer restaurante. Gostei da experiência, bastante exótica para mim, mas a coisa mais comum do mundo para eles. Quem diria. Um abraço!