Manuel João Pires

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O ano do boi e os nomes das vacas

Bons dias, forte gente. Que estas palavras vos encontrem com saúde e com o ânimo e os corações ao alto para enfrentar mais esta hibernação. Hoje venho falar-vos de vacas, esse animal que faz parte do nosso dia-a-dia, seja por causa do leite e demais lacticínios, das costeletas ou da posta à mirandesa. Um animal que sempre nos deu o corpo ao manifesto, ora em vida, entregando-se aos trabalhos forçados dos campos, ora depois da hora do seu abatimento, para satisfação dos prazeres de comensais não vegetarianos. Excepção feita às que tiveram a sorte de vir ao mundo em algum el dorado hindu. Mas antes de passar à vaca trasmontana, começo pelo boi chinês. O novo ano chinês começa na segunda lua nova do ano, o que calha sempre entre meados de Janeiro e meados de Fevereiro, sendo também conhecido como Festival da Primavera. Em termos da sociedade civil também utilizam o nosso calendário gregoriano, mas para festividades usam o calendário lunar. Uma curiosidade do calendário chinês é que quando há estas celebrações ou festivais (da Primavera, de Outono ou de Inverno), por se basearem nas fases da lua, normalmente a mudança climatérica própria de cada estação sente- -se de forma mais evidente. Digamos que bate mais certo, não tanto como no nosso em que o Verão costuma derrapar até Novembro ou o Inverno quase até Maio. A forma de se celebrar não difere muito do nosso Natal, muitos jantares de amigos e de trabalho durante esta quadra, conviver em família na noite de ano novo e no primeiro dia do ano, e um período de dez dias em que tudo literalmente pára. Segundo o horóscopo chinês a cada ano corresponde um de doze animais devido a uma lenda em que os animais mais estatutos, pelas suas diferentes características, conseguiram atravessar o rio e chegar até junto do senhor Buda. Este ano que vai entrar é o ano do boi. Para quem liga a signos, que não eu, é idêntico ao nosso signo touro, nomeadamente, a força, a determinação, o empenho, a capacidade de trabalho, a resistência, e a tenacidade a toda a prova. Qualidades que até não vêm a despropósito. No fundo é aquilo que os signos fazem que é dizer- -nos o que precisamos de ouvir e aconselhar-nos o caminho que idealmente devemos seguir. Estes bovinos caminhos fazem-me seguir a lembrança muito pueril de uma vaca grande e misturada que não era totalmente mirandesa e que apesar de forte e trabalhadora era má como as cobras, domesticada mas pouco (de tal modo que eu até julgava ser um touro). Uma das ténues recordações que guardo de meu avô paterno, foi de um dia em que ele a estava a tirar da loja e ela esperneava e escorneava, indomável, não sei se por feitio ou se por ter tido algum vitelo há pouco tempo. Certo é que me lembro desse episódio porque inclusive feriu o meu avô na face de tão desgovernada. Ao que o meu pai acrescentou outro, que certa vez numas férias, já bem adulto, a dar uma ajuda aos pais revisitando o tempo de ir com as vacas, teve de dar corda aos sapatos e saltar um muro à peixe por causa dos bravios e repentinos maus humores da dita cuja cujo nome agora não me lembro. O destino não poderia ser outro se não vendê- -la quanto antes, pelo que foi, creio, a última vaca que meus avós tiveram. Estes animais sempre foram chamados pelos nomes que se lhes davam, desde o tempo em que um vitelo era tão ou mais importante do que um filho para a economia de uma família e o dono dormia ao lado da vaca quando estava para parir, para garantir que ambos não perdiam o seu precisoso bem. Apontava-se num caderno o dia em que a vaca ia ao touro, contavam-se as nove luas, depois os vitelos tratavam-se a pão de ló e vendiam-se por voltas dos cinco meses. Ouvi contar que vinham os bezerreiros com umas carteiras enormes cheias de dinheiro e que compravam os vitelos por umas quantas notas. “Vale 12 notas”, diziam, enquanto os donos regateavam para ver se chegavam às catorze ou quinze. Nesse tempo os bezerreiros andavam a pé, muitos vindos do sul, até do Algarve, e levavam o gado com paragens programadas onde pernoitavam, comiam e bebiam. Enfim, outros idos tempos, outros fardos para carregar. Os fardos vão e vêm, mas os nomes ficam como os que ainda hoje as vacas possuem, por exemplo as belas e autóctones vacas mirandesas, e que se podem ver nos eventos a elas dedicados como feiras ou concursos. Se quisermos passar uma demão para transformar o nome das vacas em académiquês, registe- -se esta área de estudo como “onomástica bovina trasmontana” elaborada com o apoio de meu pai na investigação de campo. Antigamente as vacas tinham nomes que lhes eram dados pelas suas características físicas: carriça ou carricica (pequena), malhada, morena, amarela, preta, castanha, roliça, cabana (como o lombo encurvado em baixio como uma barca, mais próprios dos cavalos, dizia-se vaca ou boi cabano); pelo seu feitio: amorosa (como a de um senhor que se montava na vaca e ia às feiras e a todo o lado com ela), marquesa, ratunha (que se escapava e ia roubar comida aos lameiros dos vizinhos colocando o pastor em trabalhos...); pela origem de onde vinham ou onde tinham sido compradas: mirandesa, vileira, romeira; nomes de motivação campestre: cereja, perdiz, rola, pomba, rosa, tomilha. Muitos mais se poderiam descortinar. Havia também as que herdavam os nomes de família, ou seja, certo dono costumava atribuir o mesmos nomes às diferentes bovinas gerações que lhe passavam pelos jugos. As vacas têm nomes e merecem a nossa maior consideração, palavras de apreço para além do bem ou mal passado. Um agradecimento às vacas, e ao tanto que nos dão, e que a força do ano do boi esteja connosco para levarmos tudo a eito sejam quais forem as adversidades. Um forte abraço!

Portugal, Portugal

Boas tardes, meus caros. Escrevo para o distrito de Bragança onde o deputado do Benfica teve a segunda maior votação. Não vos condeno o feito, nem vos gabo a sorte. Compreendo-vos. Um país que vos olha ainda mais de lado. Votastes num político anti-sistema do sistema até à ponta dos cabelos que subiu os polidos degraus dos jotinhas, dos padrinhos e dos cristãozinhos perfeitos. Não os cristãos que como Cristo se sentavam à mesa com ministros, putas e pulhas e em todos procuravam a redenção. Não do Cristo proto- -feminista do atire a primeira pedra de há dois milénios, mas dos cristãos inquisidores, da perseguição e da tortura, dos que mandam Cristo às favas e estão mortinhos para que o Papa Francisco tome o mesmo caminho, dos que querem fazer valer a constituição da instituição para ver o mundo bem dividido entre beatos e satanáses segundo as inquestionáveis e divinas leis dos antigos regimes. Vá de retro esse catolicismo! Como braço direito e fiel cardeal Cerejeira, o inatacável presidente do Benfica para completar a bendita neo-triologia deste país: CMTV, Benfica e Fátima. A família que seja monoparental, monofilial ou até monossexual desde que eles não se cheguem para o meu lado. A força do meio de comunicação mais impactante de Portugal aliada às duas instituições mais influentes do país. O deputado criado pelo futebol e pelo espaço de opinião que, como os da sua estirpe, tem um percurso muito do bem, mas se expressa em oco português tasqueiro. Perspicácia bastante para o seu plano de chegar ao poder pelo caminho mais rápido entre os pingos da miséria, da falta de ideias e de rumo. Velejando mais à bolina de quem o repugna, do que de quem o apoia, que lhe faz a vontade de o colocar invariavelmente na ponta da língua e na crista da onda. Mas a culpa não é dele. O caminho foi aberto por nós, que confiámos tudo à classe política como se eles fossem feitos de matéria diferente da nossa. Como se quando eles dizem povo, não se estivessem nas tintas ou sequer se verdadeiramente o conhecessem. Como se não quisessem, mais que tudo, remediar as próprias contas bancárias como todos os outros, que ideologias são muito bonitas, mas não pagam dívidas nem enchem a barriga. Como se quem fosse hoje para a política não fosse sobretudo por isso, e entre tantos, quando as coisas dão para o torto, valham- -nos os independentes que nos acudam, seja na Economia, na Saúde ou na Educação, porque eles disso percebem pouco. Como se Portugal não estivesse hoje ainda mais binomizado entre Lisboa e Porto (mais o Allgarve nas pontes e feriados) e o resto do país, essa cambada de labregos, Terra Nossa, que pouco mais servem do que para continuar a ser satirizados, sendo que às vezes sai de lá um Tino que, grunho, consegue quase tanto como os políticos ultra-profissionais, tendo pelo menos o bom-senso de não fazer publicidade atrás de publicidade daquilo que não se quer comprar. Como se Portugal fosse só um par de meios urbanos, ou a América só Nova Iorque, e no dia das eleições abríssemos todos muito a boca de espanto porque não é tudo como nos Instagrams e afinal não pensamos todos tão bem como os John Stewarts deste mundo. Com esta é que não contávamos, país de burros, país de incultos, é o que é, culpa dos parolos de além A2. Como se os partidos não vivessem tão alienados no seu exclusivo mundinho e não nos governassem em modo “para quem é bacalhau basta”. Como se a direita não estivesse ruída e a esquerda pelo mesmo caminho, batendo-se quase só por moinhos de vento com fraquinhos moleiros sem a mínima ideia de como produzir farinha para o povo ter pão. Como se ainda alguém passasse cartucho a essa história das direitas e das esquerdas de quatro ou cinco gatos pingados, capazes de sequer convencerem um jovem a sair de casa para colocar um papel dentro de uma caixa, num país que não sendo para velhos, são eles que ainda vão votando. E fazem-no, muitas vezes, mais em memória de não o terem podido fazer no passado do que propriamente pela vontade de o fazer no presente. E, amigos brigantinos, quando com tudo isto votais no deputado da CMTV, os capatazes ainda carregam mais em vós, enfiam a cabeça e estalam com raiva o chicote nas vossas costas provincianas, sois vós os maiores culpados como se quisessem saber de vós ou sequer tivessem muito melhor para vos oferecer. Na única vez que sois necessários para alguma coisa, nem uma cruz sabeis pôr no sítio certo. Para isso, morte ao interior moribundo, que vá morrer (ainda mais) longe de uma vez. Já Fernando Namora escrevia, depois da revolução, mas ainda longe da CEE, que enquanto tivéssemos mentalidade de assistidos nunca saberíamos fazer cumprir a revolução. E aqui continuamos nós a assistir à desassistência, desistidos, à espera que alguém mexa uma palha para prontamente comentarmos o que foi feito. E com esse muito nosso desporto de comentar e opinar, que além de desporto passou a catapulta para o poder-poleiro, lavamos as mãos no que faz o governo, todo-apoderado e tudo-criticado, mas a caravana passa sempre imperturbável. Nisso não temos qualquer diferença em relação ao povo chinês que delega tudo no partido único, que remédio, com a diferenca que não pode refilar. Residindo nesse apático estrebuchar, a principal democrática diferença. Somos um país que se diz livre de liberdade dependente de terceiros. A liberdade filosofal como bola colorida entre as mãos de uma criança com o mundo inteiro pela frente mas que não sobrevive um dia sem a saia e o biberão da mãe. Haverá liberdade sem pão ou sem o que faz fazer o pão? É livre um país que aos 900 anos vive em casa dos pais e em tudo deles depende? A noite já vai longa para retóricas. De modo que nós que já não produzimos nem revoluções nem o resto, tirando talvez vinho, vivemos literal e pré- -historicamente do que a natureza nos vai dando, os campónios de chuva na horta, os cidónios de sol na praia. Quando a fome aperta, de mãos nos bolsos, assomamo-nos ao sítio do costume à hora marcada, ansiosamente à espera das bazucas de sopa que nos traz a europeia carrinha da Comunidade Vida e Paz, sem a qual não conseguimos pôr uma perna à frente da outra. E depois disso, muitos de nós não passamos sem a carrinha da metadona para recolher as bazuquinhas sem as quais não conseguimos dormir nem dominar os espíritos. E com isto, minha gente, boa noite que já é tarde, a conversa está boa mas vou à cama, deixa só ver o Facebook que antes era gatinhos e boas intenções e agora é só odiar e dividir, sempre a facturar a fracturar. E nisto perdi- -me nas horas, vamos dormir para amanhã tomar café, agora que já nem há postigo, Portugal, Portugal, amanhã é outro dia, sempre à espera, cada vez mais no fundo do mar, nação dolente e banal, da qual Portalegre, Bragança e tudo onde a maresia não alcança são o corolário do atraso de vida, não fazem cá falta nenhuma. Era vender tudo aos espanhóis para olival ou aos chineses para arroz. Mal por mal isto já é tudo deles. De maneiras que, caros bragançanos, não se iludam, a culpa é exclusivamente vossa e de outros como vós. Marquem na agenda, eles hão de voltar aí na próxima campanha eleitoral e fazer o frete com o melhor sorriso amarelo. Enquanto isso não espereis ser compreendidos, tidos ou achados, pois a culpa não é dos governantes, a culpa não é dos mesmos, da minoria que nos domina, a culpa nem sequer é de todos nós. Faz-se tarde, boas noites. Portugal, Portugal, venha o diabo e escolha.

Natal e alhos (sem bugalhos)

Bons dias, meus caros. Que estas palavras vos encontrem bem de saúde e devidamente abrigados do frio. Para ásperas gargantas tocadas por cortantes dias e geladas noites recomenda-se um chá bem adubado com cenoura, cebola e alguns dentes de alho. Uma espécie de micro- -caldo servido em chávena temperado apenas com uma ou duas colheradas de bom mel caseiro. Receita muitas vezes provada (de má cara e um tanto ou quanto à força) e comprovada por este escriba, e um dos inúmeros aproveitamentos das propriedades do alho. Aqui perto de mim há um restaurante particularmente frequentado pela classe operária, nomeadamente por trabalhadores da construção civil. São quem realmente faz a China. Não são os ideólogos nem mandantes, nem as classes médias e altas que quanto mais sobem mais se fazem depender das bases para as servirem e para lhes tornarem os dias mais fáceis e à medida das suas vontades. Quem faz a China que se vê hoje são todos os trabalhadores migrantes que deixam os seus para trás e estacionam numa obra o tempo que for necessário até que fique pronta e cujos direitos numa outra província mudam tanto ou mais como se tivessem emigrado para outro país, os que a todo o segundo levam e trazem comida e encomendas de motoreta ou carripana, os senhores e senhoras cantoneiros, electricistas, canalizadores, amas e mulheres-a-dias de todos os incansáveis dias da semana. De todos estes, e de muitos outros, destaco os homens da construção, enrugados e tisnados do sol e do pó que ao fim do dia se dão uma lambidela de água e se juntam em magotes, sentados em cima dos próprios capacetes das obras a fazer de banco, de cigarro ao canto da boca, a atacar algum caldo de hortaliça ou alguma talhada de melancia, trocando dois dedos de conversa ou simplesmente vendo passar os minutos que o sol leva a cair e o céu a descolorar- -se. Fonte de diárias e peculiares exposições fotográficas, mesmo aqui ao lado, para quem seja versado nas artes fotográficas. E agora, atenção que lá vai alho. O alho vai no tal restaurante em que cada mesa está apetrechada para quem goste – além dos frascos do tradicional e local jindungo e do molho de soja – com uma pequena malga cheia de dentes de alho soltos e por descascar. Dos dentes de alho à mesa da classe operária de hoje podemos viajar até à primeira greve da história feita por trabalhadores das pirâmides egípcias precisamente por lhes ter sido retirado o alho da alimentação diária em ano de má gestão das colheitas. Fazendo um esforço por evitar cair na tentação da Wikipédia e efectuando um périplo por sites com alguma fidedignidade, fui dar a um livro chamado “Alimentos com História” onde se pode ler que os egípcios acreditavam que o alho tinha até poderes sobrenaturais ou mágicos e que aquando da abertura do túmulo de Toutankhamon foram encontrados feixes de alho entre os tesouros destinados à transcendente viagem. Na Antiga Grécia atribuíam-lhe semelhante devoção, Homero serviu- -se de alho para que Ulisses se defendesse de pragas e encantamentos, os atletas usavam-no bastante no decorrer dos Jogos Olímpicos. Com o Império Romano o consumo de alho prosperou e era considerado, segundo o poeta Virgílio, “essencial para manter as forças dos soldados e dos homens que trabalham no campo.” Dos tempos das pestes negras do medievo persistem semelhantes mitos ou lendas, por exemplo em França e Inglaterra, de que famílias se terão salvo devido a confinamentos com abundante provisão de alhos. Ainda agora nesta pandemia também houve quem destacasse (e descascasse) os seus atributos preventivos. Toda uma história de íntima e constante relação entre um vegetal e a humanidade numa dicotomia trabalhadores-dentes de alho que continua actual e vigorosa. Alguma coisa há-de ter esta planta para ter andado sempre à mão de semear. E para tal, dizem os antigos que a melhor altura é o advento, algures por esta época do ano: “No Natal semeia o teu alhal”. Para os que já trataram da sementeira, que a colheita se avizinhe boa, para quem colhe do supermercado que não lhe falte alho para fazer companhia ao polvo e ao bacalhau que não se querem solitários na travessa. Atravessemos o que falta deste ano que não está para tradições e tenhamos esperança que o próximo não venha tão alheado. Aqui não há Natal, que é um dia tão útil como os outros, embora por esta altura se assinale também uma das maiores festividades da cultura chinesa na qual as pessoas se juntam para celebrar a chegada do Inverno. Traduzindo o nome é mesmo “Festival do Solstício de Inverno” em que os membros da família se reúnem e ao longo da noite vão fazendo e comendo uma espécie de raviolis com diferentes recheios e com o alho como ingrediente de destaque. Nós humanos chateamo-nos por causas das nossas diferenças, das identidades, das religiões, das politiquices, mas o que nos conduz é a verdadeira natureza. A nossa natureza, a natureza que nos doma, que nos apequena e iguala, contra a qual pouco podemos e da qual absolutamente dependemos. As fases da lua, o sol, da água, as plantas que nos acompanham, as limitações do nosso ser. A Natureza que nos ensina, com a qual aprendemos e sobre a qual transmitimos intergeracionais conhecimentos. Por entre esta original humanidade que nos une e que vive connosco embora por vezes não a consigamos ver de tão ocupados e distraídos que andamos, um grande e intercontintental abraço de amizade e consideração. Que o espírito natalício inspire o que há de melhor na natureza de cada um e de todos nós. Feliz Natal onde e como quer que te encontres. Não te esqueças de que continuamos juntos. Saúde!

Pós e contas

Boas tardes, forte gente. Espero que a castanha esteja a pingar do jeito que esperavam e que o esforço para a apanhar seja bem recompensado. A economia trasmontana agradece. Como é natural as pessoas têm-me perguntado como está a situação do vírus aqui pela China. Como sabem deixei de falar sobre este tema por não haver nada que um leigo possa acrescentar. Já toda a gente está farta de saber o que isto é e o que há a fazer, de maneira que não vale a pena ser mais uma voz a insistir nas mesmas pesarosas e batidas teclas. Enquanto foi uma realidade que apareceu primeiro por estas bandas podia valer a pena tentar alertar as pessoas, mas a partir do momento em que se tornou uma questão global e quotidiana dei por findado o meu contributo para esse cansativo chover no molhado. É dar tempo à ciência para percorrer o seu caminho e irmos todos cumprindo o nosso papel para lidar com esta realidade. Mas hoje abro uma excepção após todos estes largos meses porque tenho recebido muitas mensagens a perguntar sobre a situação por estas bandas. Ora bem, aqui na China não tem havido Covid. A vida decorre normalmente como antes. Tirando as máscaras obrigatórias nos transportes públicos, umas medições de temperatura aqui e ali... Honestamente, quase só me lembro da existência do Covid quando leio as notícias de Portugal e vejo que o país e a Europa estão novamente mergulhados num epidémico caos. Não é que aqui se viva exactamente um pós-Covid porque ninguém está em condições de decretar “pós” coisa nenhuma, mas é uma vida normal quase como sempre foi. A sombra paira, continua a haver muita gente a usar máscara, houve uns casos no mês passado (cento e tal) em Qingdao, mas a coisa ficou por ali, até porque os nove milhões de habitantes da cidade foram todos chamados a fazer testes. Mas então o que é que a China tem ou faz para que não haja Covid e se possa sentir mais segurança ou viver mais próximo da tão almejada normalidade? Simples, a China continua com as fronteiras (praticamente) fechadas. Desde Março até hoje pouquíssima coisa mudou em termos de circulação de pessoas nas fronteiras. Os cidadãos nacionais podem regressar e têm regressado muitos, principalmente vindos dos EUA. Tenho conhecido bastantes chineses a viver lá há muitos anos que me dizem que o país está um caos - violência, insegurança, hostilidade - neste momento é uma sombra de si próprio e muitos chineses estão a voltar à procura de refúgio, na esperança de que a trumpestade passe e a coisa volte a assentar. Para os estrangeiros, o regresso à China é bem mais difícil, muito burocrático, só para quem tem visto de trabalho ou de negócios e mesmo nesses casos as instituições têm de superar montanhas de burocracia para conseguir trazer trabalhadores estrangeiros de volta. Os estudantes internacionais, por exemplo, ainda estão impedidos de regressar à China sem data anunciada. Há pouquíssimos voos e poucas companhias autorizadas a fazer voos internacionais, os aeroportos estão às moscas e os poucos voos que há estão a preços proibitivos. Ao chegar, uns e outros, estrangeiros e nacionais, têm de fazer duas semanas de quarentena em hotéis designados para o efeito, normalmente próximos do aeroporto. Em alguns casos as pessoas depois desses quinze dias ainda têm de ficar mais uma semana em casa, se posteriormente tiverem de se deslocar para outra província (praticamente só os aeroportos de Pequim e Xangai estão com voos intercontinentais). Mais, agora antes do embarque são exigidos dois testes feitos até 48 horas: o teste do Covid e também o teste serológico. Caso algum deles dê positivo, a pessoa não pode embarcar para cá. De maneira que a moral da história é muito simples: aqui não há Covid porque as portas estão (continuam) fechadas a sete chaves. Não as confinadas portas de casa, mas as portas do país. E, segundo parece, pelos menos é essa a percepção das pessoas, não vão abrir tão cedo. Não enquanto não se controlar a pandemia pelo mundo fora ou enquanto não houver uma vacina para proteger, segundo estimam, cerca de 20 a 25% da população. Diria que a normalidade, ao que à circulação de pessoas diz respeito, não vai chegar antes de 2022. E pronto, no caso do Covid não há mesmo milagres. Há apenas medidas que se podem ou não tomar. Antes que alguns comecem desde já a dar azo ou a corroborar certas teorias, é preciso dizer que não só o país está vedado como o Covid trouxe um rombo gigantesco. Aqui tudo é maior em escala. A economia começa a recuperar, mas largos milhares (milhões?) de pessoas ficaram sem trabalho, imensos negócios foram ao ar, muita gente por conta própria foi trabalhar para outrem, outros mudaram de ramo profissional, as famílias perderam poder de compra, alunos ficaram sem poder continuar a estudar. E aqui as pessoas não tiveram direito a lay-off, foi mesmo chapa zero durante meses a fio... Eu próprio, passe o pleonasmo, conheço gente que se enquadra em todas essas situações e tenho ouvido outras tantas histórias desta natureza, por isso embora desconheça números oficiais, não tenho dúvidas da abismal dimensão destes problemas. Por tudo isso, esta é uma normalidade ainda com um pós muito desconfiado e com imensas contas à vida para fazer. Um abraço e bons magustos a todos, na medida do que o bom senso dos novos tempos possibilitar.

Carinhos de ferro

Boas tardes, boa gente. Que o Outono vos traga saúde, paz e muita castanha. Aqui há tempos foi notícia uma lasciva aventura a três que uns jovens tiveram na carruagem de um comboio da linha da Azambuja ou linha do Norte (de Lisboa). Nao é propriamente uma notícia, é uma decorrência de todo e qualquer um andar com um câmara de filmar no bolso. É o grande irmão das democracias, em que andamos todos sempre de olho no outro, de olho em tudo. São coisas que sempre aconteceram entre as juventudes. Que lance a primeira pedra a geração que nunca fez destas coisas. Hormonas incontroláveis, doses de risco e insensatez sempre andaram lado a lado e sempre assim hão-de andar entre corpos e mentes jovens. A questão é que hoje em dia há sempre uma câmara a fazer filmes que não interessam nem favorecem ninguém. Não favorecem os actores, muito menos os filmadores e nem sequer quem os vê. São coisas que podem acrescentar alguma coisa à felicidade de quem as pratica de bom grado, mas que não acrescentam absolutamente nada na perspectiva da partilha nem a nível de filmografia. Por outro lado, ninguém refere aqui o machismo ainda predominante, mas é sempre a mulher que fica mal nestas coisas quando todos os actores estão em pé de voyeurística igualdade. Os homens talvez até saiam como galifões. A rever esta forma de olhar para as coisas no âmbito da luta pelas igualdades. E ponto final parágrafo em termos de notícias que não o deveriam ser. Escolhi este apontamento porque nesta linha de comboio passei muitas horas da minha vida durante muitos anos, ora nos comboios, ora nas estações à espera deles. Primeiro para a escola secundária, depois para a universidade. Não sei como estão as rotinas agora mas não devem ser muito diferentes. Lembro- -me das mulheres que faziam crochê, dos revisores com quem alguns às vezes tentavam evitar cruzar-se, dos que adormeciam até ressonar, das horas de ponta em que não se cabia, das horas mortas ou do último comboio, quase sempre às moscas. Muitas vezes o último comboio era uma espécie de carruagem prestes a transformar-se num monte de abóboras tal como na história da Cinderela, na medida em que era o horário do último comboio que marcava o final da noite e o regresso a casa. À data não se tinha carro nem dinheiro para táxis. No comboio fazia os trabalhos de casa, entabulava conversas com novas pessoas, viajava sentado ao lado dos vizinhos a caminho das mesmas rotinas, uma vez lembro-me que comecei um namoro, outra vez viajava encostado à porta do maquinista com o combioo à pinha e ele de repente abriu-a de dentro sem ninguém contar, de modo que eu rebolei lá para dentro da cabine, para junto dos comandos da locomotiva. Depois havia sempre os quinze minutos a passo largo para se chegar à estação a horas, às vezes era preciso fazer uns bons sprints para não se perder o comboio. E quando se perdia que remédio se não esperar sentado pelo próximo. Toda uma vida de histórias passadas entre suburbanas idas e vindas. É interessante o facto de esta ser uma realidade por vezes difícil de explicar em países territorialmente muito maiores que o nosso. Por exemplo, aqui na China, em que os comboios não desempenham esse papel de parar a cada 5 minutos para largar e recolher pessoas, num pára-arranca de locais e locaizinhos em que uma pessoa vai indo aos soluços. Aí às vezes o comboio sai da estação, nem chega a dar uma acelaredela e já está a travar para poder parar na próxima. Aqui quando arranca só pára, no mínimo, aos cinquenta quilómetros de cada vez. Essa função suburbana que o comboio tem na Europa, equivale aqui ao papel do metropolitano, por norma com linhas muito mais extensas. Também tem a ver com as cidades em si, não só em dimensão, mas no modo como as pessoas vivem e a cidade se organiza – ou se desorganiza na perspectiva europeia do que é uma cidade e do que são os seus subúrbios. O conceito de subúrbios é bastante diferente nas grandes cidades asiáticas ou sul-americanas em que tudo é uma mesma massa, uma mesma cidade, um mesmo extenso espaço com diferentes zonas. Não há subúrbios marcadamente definidos, em que se percebe pela arquitectura ou pelo ambiente que se está num sítio com uma face e um ritmo diferente, sem grande vida, que basicamente serve para dormir (dormitórios). Lembro-me de ter esta conversa aqui uma vez com pessoal de Barcelona e da Cidade do México e falávamos precisamente sobre isto, sobre esta mudança bastante evidente entre o espaço da cidade e dos subúrbios na Europa que não ocorre noutros quadrantes em cidades muito maiores e mais populosas. Enfim, mudarão as cidades, mudará o transporte, haverá histórias semelhantes, mas quanto ao papel suburbano do comboio não é a mesma coisa, pois é um meio de transporte com características e com uma história única e incomparável. Para acabar, um último apontamento. Uma vez voltava da universidade e vinha a ler ou a estudar algo. Ao passar pela estação de Braço de Prata, junto a Santa Apolónia, pergunta-me um senhor de uma certa idade que estava sentado mesmo à minha frente: “tu que és estudante, deves saber o seguinte: quem é mais rico, Lisboa ou o Porto?” Uma pessoa sabe sempre que estas perguntas atiradas assim trazem água no bico, mas eu lá disse “será Lisboa”, ao que o senhor respondeu: “Errado. É o Porto porque enquanto Lisboa tem um Braço de Prata, o Porto tem um Rio Douro”. Muito bem, disse eu, tenho de continuar a estudar mais para chegar a esse nível de sabedoria. Comboios rápidos, às vezes voadores cruzando países, outras vezes comboios inamovíveis que parecem teimar em não nunca mais chegar onde devem. Os comboios chegam e partem, num cá para lá predestinado de “vai e vens”. Só o tempo avança impassível sem parar em estações nem apeadeiros. Caro amigo, um abraço bem forte para ti porque a vida é hoje

Assadores furtivos

Boa tarde a todos, principalmente aos que vivem o luxo, e se calhar não sabem, de se assomarem à rua para se sentarem no banco de pedra à porta de casa e ficarem a ver os fins de tarde passar. Bem haja vós! Aqui perto de mim quando passo pelos fins de tarde vejo um restaurante que tem sempre dois senhores, um de cada lado, a dar fogo às peças ou a pôr as peças no fogo. Cada vez que passo por lá lembro-me das pessoas que trabalham nas churrasqueiras a virar frangos e pianos de entrecosto, sai frango e meio com batata e arroz, o pessoal dos santos populares que vive as festas na óptica do fogareiro entre nuvens de sardinhas, pimentos e bifanas, os homens dos restaurantes com assados na brasa a tratar diferentes tipos de pescado com o respectivo carinho e a carne passada mal ou bem, nem bem nem mal, mais para o bem, mais para o mal, consoante as demandas e demandices dos clientes. Uma nobre arte de transformar matéria-prima em bruto em valor acrescentado, às vezes em obra prima. Um labor digno de referência, embora furtivo, ou seja, escondido, feito de forma oculta. Aqui trata-se de um restaurante de Xingjian, uma das maiores províncias em área da China, no oeste, em cima do Tibete. A comida e os restaurantes desta região são famosos por dois aspectos: as muitas variedades de massa que são sempre feitas na hora. Os chineses dizem que os italianos devem as massas ao Marco Polo que por aqui andou no seculo XIII. Nao sei se é apenas mito, mas a ser verdade não me espantaria. E depois a carne, por ser uma região montanhosa e com muito pasto. Como é a província onde vivem os Uigures, minoria étnica chinesa de confissão muçulmana, a especialidade é o cordeiro, principalmemte umas espetadas, ou digamos, uns pinchos de cordeiro. Por alguma razão na vila espanhola de Alcañices lhes chamam pinchos morunos, pois foi um hábito introduzido em Espanha pelos mouros como certa vez ouvi da própria senhora Maria do bar/ restaurante “Maria y Manolo” onde os pinchos eram (são) também a especialidade. O mundo é um T-zero deve ser a frase que eu mais repito por aqui. Os Uigures são umas das 56 minorias étincas chinesas, uma vez que 97% da população pertence à etnia Han. O povo uigur por algumas vezes foi notícia ruim - peço desculpa pelo pleonasmo, claro que se é notícia é porque é ruim - mas essas coisas não são preto no branco como os opinadores profissionais fazem sempre tudo parecer. Tenho alunos uigures, sim também há uigures a aprender português (curiosamente na universidade até os próprios colegas chineses lhes perguntam de que país são por causa das suas feiçoes nada extremo-orientais) que me falam abertamente da situação. Os atentados lá são frequentes, eles próprios ja presenciaram alguns, e ninguém se identifica com isso, ninguém gosta de viver num ambiente assim. Os seres humanos de toda a parte querem viver em paz. Vejam no que deu a ETA e os bascos. É bastante complicado, principalmente para os que têm de viver com estas coisas. Para quem vive seguro na paz do senhor sofá, imbuído na falácia dos tempos modernos de que julgamos saber tudo bem sabido por termos muito acesso a informação, e em que estes conflitos são apenas coisas distantes que surgem em ecrãs, para esses costuma ser sempre tudo tão claro como água. Água quente. Por cá as pessoas andam sempre com o termo de água morna ou às vezes de chá, das crianças aos avós, de modo que ver os homens a dominar o assador, sob um calor de humidade sub-tropical e a dar goladas de água quente... É a mesma impressão que os assadores fumadores me causam, no meio de ondas de brasa e fumo e ainda para mais de cigarro na boca para juntarem mais chama a um cenário já de si ardente. É uma sufocante redundância que só de ver desconforta, a alta-temperaruta ao quadrado, lançar ainda mais achas para a fogueira. Ou na verdade, estoicismo. Coisa de faquir, um patamar de atenção plena e imperturbabilidade que se atingirá com a experiência de domesticar o transcendente do incandescente. É isso que mais me fascina, enquanto eu e os outros passamos sobre brasas no ir e vir do trabalho/casa, os assadores mantêm-se sempre furtivamente impassíveis, o avental enciscado, vira, espera, revira, pincelada, golada de água, tudo faz um morno sentido, os dias da vida parecem ali um fogo amigo, um fogo fátuo, um fogo descontrolado transformado em lume brando. Os assadores furtivos são merecedores do nosso agradecimento, de uma devida salva de palmas. A todos os assadores furtivos o meu profundo respeito. Aliás, dever-se-ia decretar o dia mensal da salva de palmas. Não só quando estivessemos com o rabo apertado de medo a bater palmas aos que tivessem de nos ir salvar a pele. Todos os meses se deveria criar o hábito de ir à janela homenagear, batendo palmas ou panelas, um determinado grupo de pessoas. Os seguranças que passam os dias em pé, os que passam os dias sentados nas caixas dos supermercados, os que vivem atrás de balcões. E os restantes. No fundo todos nós somos dignos de empatia e de palmas ou porque trabalhamos uns para os outros ou simplesmente porque só nós sabemos, só Deus sabe, aquilo que nós tivemos de andar para aqui chegar. Alguém tem de começar e eu começo hoje, aliás, começo já. Uma longa salva de palmas e já agora um abraço demorado para cada um de vocês, sim, para ti mesmo caro(a) amigo(a). Tu sabes muito bem porquê!

A minha tia Inês e a acção feminista

Bom dia, terra quente, nesta altura não há por aí terras frias, pelo menos antes de o sol se pôr. Como vão esses fins de tarde? Espero que muito bem. Ora, peço desculpa mas hoje dentro deste pequeno rectângulo mando eu e daqui ninguém me tira. Como nos tempos de infância quando nas férias se formavam equipas para passar as tardes em modo “roda, bota, fora” dentro de um ringue de futebol, havia sempre alguém que se negava a aceitar as convenções da derrota e se aproveitava do facto de ser dono do esférico para usar o trunfo do “a bola é minha ninguém joga” e assim não ter de sair do campo. De modo que hoje é à Lobo Antunes, as minhas tias, os meus avós, as criadas e o que tinham para ensinar a cada novos imberbes varões, o empregado corcunda do café com o bigode amarelecido do cigarro, as velhas de Lisboa aperaltadas avenida acima, avenida abaixo e o alferes miliciano que ainda hoje jaz em palhas de capim deitado, velado num presépio de seringas trémulas de morfina, unimogues de patas ao ar, soldados cheios de surro e os sacramentos atropelados do capelão. E com António nos perdemos no emaranhado dos seus dédalos interiores e nos seus mundanos finos reparos de escritor como se os leitores fossemos o álcool desestimadamente tragado ora para esquecer ora para solenizar tudo isto. A minha tia Inês foi a primeira de uma enchente de filhos. Aquilo que agora se diria ser uma família numerosa, mas sem a chiquesa a que hoje soa nem os descontos a que dá direito. Os mais velhos tratavam dos mais novos numa empresa que se organizava a si mesma segundo normas estritas e bem definidas e cujo CEO marcava o compasso da organização e por vezes o passo à entidade familiar sem grande margem para sugestões ou sindicalismos. Lembrei-me da minha tia Inês por um texto que li sobre a temática do feminismo. Hoje faz-se tanto ruído sobre alguns assuntos que quase viram entretenimento e é triste que, apesar de tanto falar e aludir, a sociedade pouco mude e cada vez mais andemos como o gato e o rato. Uns irados contra os outros, a esgrimir palavras nos computadores e nos telemóveis, de tal modo que parece que o que move os ânimos das pessoas para estas batalhas é cada vez mais o jogar este jogo do “tu cá, tu lá”, o aparecer para “mostrar que assim se defende e assim se ataca”, quiçá vincar o ódio por quem está do outro lado da barricada. E todo o discurso é praticamente só teórico de parte a parte, centrado nas ideias, nas concepções, no histórico-social, mas em que o “fazer” quase não ocupa lugar. Não se diz às pessoas, mais que tudo, o que é que cada um de nós deve fazer enquanto cidadão, pai, filho, estudante, trabalhador, aposentado, etc. para efectivamente superar estas lacunas, melhorar a comunidade e a interação social. Pouca ou nenhuma atenção se dedica a cultivar nas pessoas o “fazer” ou o “saber fazer”, o que diz muito da vacuidade não destas batalhas, mas sim da maioria dos seus batalhadores. A acção e sobretudo a interacção, a abertura ao outro são aspectos que urge promover numa sociedade cada vez mais segregada e extremada e que infelizmente parecem não ser sequer tidos nem achados de forma concreta no “diálogo” sobre estes assuntos. As palavras já me trouxeram até aqui mas eu vim para falar da minha tia Inês e sobra-me já menos espaço. Mulher de decisões sólidas e gargalhadas fáceis – e de palavrão fácil também, para o qual as décadas de Porto certamente terão contribuído – que passou por tudo aquilo que de agreste e de genuíno teria por que passar quem no começo dos anos 40 nascesse numa aldeia raiana do nordeste trasmontano, recém-tocada pela guerra civil espanhola. Fez medrar irmãos e filhas, esteve uns anos sem o marido emigrado, mais tarde deu ainda guarida a meus pais na época em que os pés descalços de Gabriela colocavam o país em suspenso e o prendiam ao televisor na hora de jantar. Mas a história que a ouvi contar e que me veio à memória a propósito do feminismo foi a de que na adolescência alguém lhe ofereceu um par de calças, mas o meu avô não lhas deixava vestir. Calculo que terá sido entre o final dos anos 50 e o início dos anos 60. Nisto chegou o dia do baile da aldeia e também estava proibida de ir talvez porque andasse já a namoriscar. A moral da história é que a tia Inês arranjou forma de se escapulir e não só foi ao baile como fez questão de ir a presumir as calças novas. Ela sabia que o after-party não seria pêra-doce, como de facto não foi, mas ficou a atitude e a personalidade. Não era ser-se feminista, era só ser-se jovem com uma grande dose de coragem e de juventude. A minha tia também era Maria, Maria Inês, eram tempos de velhas cartas, “Três Marias”, quatro, cinco, na verdade eram todas Marias, mas sem hashtags. É verdade que as conquistas hoje não são tão perceptíveis como já foram no nosso país. Actualmente é preciso escavar mais para se encontrar uma causa. Antigamente bastava vestir umas calças ou querer ir ao baile. Por isso mesmo, embora sendo mais seguro, ser feminista em Portugal é hoje uma tarefa mais árdua, combativa. Creio, no entanto, que sem acção as mensagens não passam, as coisas não se alteram substancialmente. Os crimes passionais e a violência doméstica têm aumentado nos últimos anos, mas os direitos sociais não se alcançam só com teoria, conferências ou publicações. Por isso, em vez de se tornar o tema numa troca de inflamadas flechas ou numa medição elitizada de eloquências sem grandes efeitos práticos, viremo-nos para as pessoas comuns, ensinemos a fazer, eduquemos para a acção e para a interação. Não é preciso teorizar muito para se tomarem atitudes. Quanto à minha tia Inês, os seus olhos claros quase transparentes apagaram-se há dois anos, mas as suas vivências contadas entre gargalhadas andarão cá por mais uns tempos. E algumas delas também acabam por fazer parte da nossa história. Obrigado, tia Inês.

A minha tia Inês e a acção feminista

Bom dia, terra quente, nesta altura não há por aí terras frias, pelo menos antes de o sol se pôr. Como vão esses fins de tarde? Espero que muito bem. Ora, peço desculpa mas hoje dentro deste pequeno rectângulo mando eu e daqui ninguém me tira. Como nos tempos de infância quando nas férias se formavam equipas para passar as tardes em modo “roda, bota, fora” dentro de um ringue de futebol, havia sempre alguém que se negava a aceitar as convenções da derrota e se aproveitava do facto de ser dono do esférico para usar o trunfo do “a bola é minha ninguém joga” e assim não ter de sair do campo. De modo que hoje é à Lobo Antunes, as minhas tias, os meus avós, as criadas e o que tinham para ensinar a cada novos imberbes varões, o empregado corcunda do café com o bigode amarelecido do cigarro, as velhas de Lisboa aperaltadas avenida acima, avenida abaixo e o alferes miliciano que ainda hoje jaz em palhas de capim deitado, velado num presépio de seringas trémulas de morfina, unimogues de patas ao ar, soldados cheios de surro e os sacramentos atropelados do capelão. E com António nos perdemos no emaranhado dos seus dédalos interiores e nos seus mundanos finos reparos de escritor como se os leitores fossemos o álcool desestimadamente tragado ora para esquecer ora para solenizar tudo isto. A minha tia Inês foi a primeira de uma enchente de filhos. Aquilo que agora se diria ser uma família numerosa, mas sem a chiquesa a que hoje soa nem os descontos a que dá direito. Os mais velhos tratavam dos mais novos numa empresa que se organizava a si mesma segundo normas estritas e bem definidas e cujo CEO marcava o compasso da organização e por vezes o passo à entidade familiar sem grande margem para sugestões ou sindicalismos. Lembrei-me da minha tia Inês por um texto que li sobre a temática do feminismo. Hoje faz-se tanto ruído sobre alguns assuntos que quase viram entretenimento e é triste que, apesar de tanto falar e aludir, a sociedade pouco mude e cada vez mais andemos como o gato e o rato. Uns irados contra os outros, a esgrimir palavras nos computadores e nos telemóveis, de tal modo que parece que o que move os ânimos das pessoas para estas batalhas é cada vez mais o jogar este jogo do “tu cá, tu lá”, o aparecer para “mostrar que assim se defende e assim se ataca”, quiçá vincar o ódio por quem está do outro lado da barricada. E todo o discurso é praticamente só teórico de parte a parte, centrado nas ideias, nas concepções, no histórico-social, mas em que o “fazer” quase não ocupa lugar. Não se diz às pessoas, mais que tudo, o que é que cada um de nós deve fazer enquanto cidadão, pai, filho, estudante, trabalhador, aposentado, etc. para efectivamente superar estas lacunas, melhorar a comunidade e a interação social. Pouca ou nenhuma atenção se dedica a cultivar nas pessoas o “fazer” ou o “saber fazer”, o que diz muito da vacuidade não destas batalhas, mas sim da maioria dos seus batalhadores. A acção e sobretudo a interacção, a abertura ao outro são aspectos que urge promover numa sociedade cada vez mais segregada e extremada e que infelizmente parecem não ser sequer tidos nem achados de forma concreta no “diálogo” sobre estes assuntos. As palavras já me trouxeram até aqui mas eu vim para falar da minha tia Inês e sobra-me já menos espaço. Mulher de decisões sólidas e gargalhadas fáceis – e de palavrão fácil também, para o qual as décadas de Porto certamente terão contribuído – que passou por tudo aquilo que de agreste e de genuíno teria por que passar quem no começo dos anos 40 nascesse numa aldeia raiana do nordeste trasmontano, recém-tocada pela guerra civil espanhola. Fez medrar irmãos e filhas, esteve uns anos sem o marido emigrado, mais tarde deu ainda guarida a meus pais na época em que os pés descalços de Gabriela colocavam o país em suspenso e o prendiam ao televisor na hora de jantar. Mas a história que a ouvi contar e que me veio à memória a propósito do feminismo foi a de que na adolescência alguém lhe ofereceu um par de calças, mas o meu avô não lhas deixava vestir. Calculo que terá sido entre o final dos anos 50 e o início dos anos 60. Nisto chegou o dia do baile da aldeia e também estava proibida de ir talvez porque andasse já a namoriscar. A moral da história é que a tia Inês arranjou forma de se escapulir e não só foi ao baile como fez questão de ir a presumir as calças novas. Ela sabia que o after-party não seria pêra-doce, como de facto não foi, mas ficou a atitude e a personalidade. Não era ser-se feminista, era só ser-se jovem com uma grande dose de coragem e de juventude. A minha tia também era Maria, Maria Inês, eram tempos de velhas cartas, “Três Marias”, quatro, cinco, na verdade eram todas Marias, mas sem hashtags. É verdade que as conquistas hoje não são tão perceptíveis como já foram no nosso país. Actualmente é preciso escavar mais para se encontrar uma causa. Antigamente bastava vestir umas calças ou querer ir ao baile. Por isso mesmo, embora sendo mais seguro, ser feminista em Portugal é hoje uma tarefa mais árdua, combativa. Creio, no entanto, que sem acção as mensagens não passam, as coisas não se alteram substancialmente. Os crimes passionais e a violência doméstica têm aumentado nos últimos anos, mas os direitos sociais não se alcançam só com teoria, conferências ou publicações. Por isso, em vez de se tornar o tema numa troca de inflamadas flechas ou numa medição elitizada de eloquências sem grandes efeitos práticos, viremo- -nos para as pessoas comuns, ensinemos a fazer, eduquemos para a acção e para a interação. Não é preciso teorizar muito para se tomarem atitudes. Quanto à minha tia Inês, os seus olhos claros quase transparentes apagaram-se há dois anos, mas as suas vivências contadas entre gargalhadas andarão cá por mais uns tempos. E algumas delas também acabam por fazer parte da nossa história. Obrigado, tia Inês.

O mundo das Catarinas

Muito boas tardes. Espero que estas palavras vos encontrem de boa sáude e a desfrutar o Verão das terras transmontanas do nordeste. O céu vivamente azul, tardes ardentes que dão demoradamente lugar a noites geladas, as andorinhas no ir e vir dos beirais, as ribeiras correndo com maior ou menor timidez, as melancias e o que ainda se vai colhendo das faceiras, gentes a avivar as aldeias, crianças em correria ao fim das tardes, pessoas que durante a noite se reunem ao café ou para os já habituais passeios sem relógio envoltos pelo abraço faiscante das estrelas luzentes. Tudo muito característico e muito bom de se viver por estes meses. Não são, contudo, vivências que para nós farão parte deste ano peculiar que distanciou efectivamente e afectivamente as pessoas. Tudo passa, haja saúde, nem é mau ano de todo. Hoje queria falar-vos de Catarina, uma das melhores amigas que a minha filha tem em Portugal, para além do primo André em Almada a um passinho do mar e das gloriosas tardes de praia, dos primos Henrique e Rodrigo entre a cidade e o campo, das bonitas Mariana e prima Leonor, e por vezes a Sara, com quem vive os verões de Avelanoso, de bonecas a tiracolo para trás e para diante, trocando roupas e refugiando-se do sol nas casa das amigas, circulando livre como em cada vez menos cantos deste mundo apartado se pode fazer. Esquecia-me das filhas dos padrinhos com quem também tem épicos e longos dias de brincadeira enquanto os pais confraternizam acompanhados de petiscos e néctares diversos. Tudo muito boa gente. A Catarina é uma menina de uma família chinesa que vive numa terra algarvia tocada pelo mar. Os pais têm uma loja e ela passa também os verões por ali, com os imãos mais novos e os avós, entre a casa e a loja e a pequena biblioteca da Sociedade Recreativa Luzense onde pode ler, coisa de que gosta particularmente, ou jogar alguns jogos de computador. A Catarina é uma menina de imensa doçura e educação, sempre com o “por favor” e o “obrigada” nos tempos certos e com uns modos tão delicados e apropriados que quase parecem em desuso no nosso país. A Catarina e a Beatriz brincam muito bem juntas e entendem-se de uma forma muito profunda. Para a sociedade onde vivem a Catarina é uma chinesa, embora tenha nascido em Portugal, enquanto a Beatriz é uma estrangeira (uma pessoa de fora), embora esteja na China desde o primeiro ano de idade. Ao brincar falam em mandarim umas vezes e noutras em português, mudando o registo de acordo com as brincadeiras ou consoante o que lá no mundo delas entendem que se ajusta melhor... Neste momento estou a ouvir rádio e começou a tocar a “English American in New York”, do Sting. É exactamente sobre isto. Até prefiro a versão da mesma música do Tiken Jah Fakoly “Africain à Paris” em que ele escreve a carta para a mãe desde uma pensão de três “etóiles” dos subúrbios. Não é o estar perto ou estar longe, não é sobre gostar-se mais ou menos de onde se está. É o sentimento de se ser estrangeiro, a identidade, a impressão de que se é doutro lugar, algo de que muitas vezes nem nos lembramos mas que os outros, os que jogam em casa, nos recordam ou fazem ver. São factos da vida de quem anda pelo mundo ditos sem querer despertar qualquer lamechice. Mais do que nunca andamos ligadíssimos ao mundo por todos os lados, consumimos, dizemo- -nos globais, viajados, conhecedores, então porque paradoxal raio temos de ver o quintal onde nascemos como único lugar onde desenrolar as nossas vidas? Se assim tiver de ser que seja como dizia o Padre António Vieira há quatro séculos: “para nascer Portugal, para morrer o mundo”. Note-se que apesar de bipolar o humano consegue ser um ser admirável e isso pode-se constatar na amizade de duas crianças, duas coisas incompletas com escassos anos de vida. Uma empatia que não se constrói de conversas ou palavreado como nos adultos, uma solidariedade que se estabelece natural e compassiva porque despida de acessórios. A Beatriz é uma menina que vive longe e que nas suas turmas de escola tem avançado sempre perante os desafios de ser estrangeira no meio de dezenas de colegas. O mesmo para Catarina, talvez com menos colegas de turma mas não devendo nada em qualidades a nenhum deles. Mesmo assim, por vezes a Catarina deixa escapar, na sua voz sempre calma, que algumas mães não deixam que os filhos brinquem com ela. Nós adultos esforçamo-nos bastante em fazer deste mundo um lugar mais repulsivo, desencaminhando as crianças dos seus mais livres e recomendáveis propósitos. Por este planeta já passou tanta gente com ideias interessantes para a humanidade, já avançámos tanto em tantas coisas, mas o que é verdadeiramente importante para o nosso futuro pouco ou nada muda. A ignorância nunca nos irá abandonar e com ela a segregação, a indiferença, a desconfiança e todas as coisas que nos desequilibram e diminuem. E o problema é que já não se trata tanto da ignorância dos livros, da iliteracia, que antes se julgava ser a origem de todos os males, mas uma ignorância intrínseca, numa era de informação, que se vai fossilizando meio dissimulada e por isso mais difícil de desincrustar. Que profeta poderá vir livrar os nossos espíritos destes males? Que vacina nos fará imunes a estas enfermidades? Que progresso nos trará respostas para estas perenes angústias? O mundo decidiu que Catarina e Beatriz teriam um dia de se juntar e para isso escolheu uma pequena aldeia do litoral algarvio. Talvez tenha sido o mundo, talvez tinha sido o mar. Diz o ditado que “Deus os cria e eles se juntam” e assim é nem que seja só para brincar durante um par de dias por ano. No mundo das Catarinas todos os outros mundos ficam de fora. Nenhum outro interessa, nenhum outro é necessário. Porque a amizade não se mede aos palmos nem à altura dos muros. A todos, um abraço!

Esta língua faz magia

Boas tardes, boa gente. Espero que se estas palavras vos encontrem bem de saúde. Há alguns meses celebrou- -se o primeiro dia mundial da língua portuguesa decretado pela UNESCO, um acontecimento com a dimensão e com o destaque possível nestes tempos em que andámos entregados ao domicílio, mas um motivo de reconhecimento da grandiosidade deste bem que o mundo partilha e através do qual pensamos e comunicamos. É a diversidade que vive dentro desta língua - parece que agora se recuperou o termo “mestiçagem” - a sua maior riqueza e um dos seus mais belos traços distintivos. As culturas e as nuances que a constroem e se espalham por quase todos os recantos do mundo. Um bem haja a esta língua que de longe até aqui chegou e tanto nos conta. Uma língua capaz de expressar e misturar de tudo um pouco, revelando desde os seus aposentos o clássico e o tropical, o mar e o deserto e gentes de toda a natureza. Uma língua que germinou outras e deixou prole, desde os crioulos do ocidente africano aos da Índia e do sudeste asiático, do patuá de Macau ao papiamento das antilhas caribenhas. Uma vez em Madrid conheci um pessoal da ilha de Curaçao, a norte da Venezuela, aquela malta toda loirinha e neerlandesa a falar um crioulo tão familiar e cheio de português pelo meio. Gente muito boa. Outra vez em Montenegro encontrei um sérvio que me dizia entender português se eu falasse devagar e a questão é que entendia mesmo, explicou- -me depois que era por causa de como nós ter crescido com as telenovelas brasileiras lá por casa. Incrível. Em Malaca, das profundezas da identidade dos povos uma senhora de sua bonita idade a trocar boas tardes num suave português dentro das ruínas de uma igreja com vista para o estreito. Em Lisboa um chinês com o genuíno português do Porto. Em Cantão um chinês com o autêntico português de Luanda. Em Xangai uma chinesa com o português mais paulista de São Paulo. Em Macau, por vezes ainda se apanha o patuá a andar pelas ruas, uma mistura de português com cantonês, mandarim e contributos de muitas outras línguas do sudeste asiático. A língua portuguesa tem tantos filhos, tantos mundos que nem nos passa pela cabeça. Até tem o “amazonês” que é quase a sinopse da própria língua portuguesa. Qualquer professor que ensine português fora recordará muitos motivos não tão evidentes que levam pessoas a estudar esta língua. Teria inúmeros para referir uma vez que aqui já trabalhei com público de muita natureza, desde trabalhadores de empresas em vias de ir para Angola, Moçambique ou Brasil, a crianças para se juntarem a familiares em Portugal, ávidos colecionadores de línguas, até a pessoal dos vistos dourados. Normalmente é pelo futuro profissional ou por razões familiares, mas por entre as motivações que trazem pessoas para a língua portuguesa menciono três: uma aluna que foi atrás do português porque tinha como ídolo o piloto brasileiro Rubens Barrichello (!); uma aluna que queria o português para ler Fernando Pessoa no original (não é das motivações mais inusitadas); um aluno atraído pela figura de Vasco da Gama (faz parte do currículo de história do ensino secundário chinês). Acrescento outra. Recentemente, procurou-me uma jovem que depois de acabar a universidade decidiu tirar um ano sabático para aprender português. Durante um ano tivemos aulas quase todos os fins de semana, ao fim do qual com enorme preseverança, até porque além desta família não tinha mais ninguém com quem praticar português, conseguiu a certificação que lhe permitiu aceder ao mestrado que agora frequenta em Lisboa. A motivação dela para tudo isto? Agir. A pancada que a ligou à língua portuguesa foi uma amiga lhe ter apresentado as músicas do Agir. Ficou tão apaixonada ou grudada nas músicas do Agir, mesmo sem entender as letras na altura, que acabaram por lhe desviar a vida para a língua portuguesa e depois para Portugal. Não é só por causa do valor económico e etc., muitas vezes a magia nasce do nada, de um acaso que como outros tornam os dias e as vidas tão mais únicas e saborosas. Lançando-me o desafio de escolher um de entre os insignes operários da língua portuguesa para assinalar a data e estando eu a lançar frases para um jornal, faço referência à figura do multi-facetado Millôr Fernandes, prolífico cronista brasileiro, mas também ilustrador e dramaturgo, sendo acima de tudo um dos grandes buriladores das palavras da língua portuguesa para a qual contribuiu com a sua genuína mordacidade com uma série de tiradas antológicas. Relembrei-o um dia destes ao cruzar-me com a frase “viver é desenhar sem borracha”; e outras acabei por ir pesquisar como “família é um grupo de pessoas que tem a chave da mesma casa”; “com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado.” O cardápio de inspiração e humor perspicaz é abundante. Nesta língua cabe Millôr e cabemos todos porque todos, consagrados e deslembrados, a produzimos e transformamos. Saúde para a língua portuguesa, para os que a falamos e para os que a ela se virão juntar!