Tânia Rei

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Mudar só dá trabalho

As mudanças causam frio na barriga . Eu não gosto de mudar, só pelo simples facto de ter... que mudar. Normalmente envolve mexer em coisas, tirá-las dos sítios e arranjar-lhe outras. Meter-me confusão. Tenho sempre medo de deixar algo para trás. A mesma coisa com as viagens. É tudo muito bonito até que chega a hora de ir, efectivamente. Ou as horas antes em que se tem que fazer a mala, tirar coisas do sítio e levá-las para outro sítio diferente. Durante os dias em que estamos fora, nada tem sítio definido, desde que esteja à vista, não vá acabar por ficar no sítio novo para sempre.
Falando em sítios, gosto de ir a sítios onde nunca fui, mas não gosto de não saber para onde estou a ir. É chato. "Vira à esquerda, agora à direita. Agora é direita, direita, esquerda. Rais parta do GPS. Pronto, vira para trás e perguntamos ali a alguém, que isto não me parece que seja para aqui".
Viajar é bom e faz falta. Sou no entanto a favor das cápsulas que teimam em não inventar, para, através de um processo de liofilização qualquer, ficar tudo espalmadinho, sem ocupar espaço nem pesar. Chegará o dia em que vamos procurar um saco-cama no fundo da carteira, preocupadíssimos.
É bom viajar e manter-se discreto, misturando-se com os nativos. Eu pelo menos tento sempre, e até consigo que turistas, com cara de turistas, me peçam indicações. Tudo resolvido com um "eu não sou daqui, mas..." e mando sempre uma dica, com base no meu conhecimento sobre o local em questão, que pode ser quase nulo. Tenho muito este estranho defeito de transformar tudo em locais-tipo, e a partir daí imaginar que me safo em todo o lado. Não é assim, obviamente, só que pelo menos consigo manter a calma mesmo quando estou perdida e sozinha.
Como me tento misturar com os nativos, gosto de conversar com eles. Fico aborrecida quando não me respondem de forma a podermos falar, ou, em casos extremos, não me respondem de todo. Quando o contrário acontece, de repente fico sem contexto, por desconhecimento de causa, e é aí que percebo que poderia encaixar-me ali.
Contudo, aborrece-me estar fora muito tempo. Começo a sentir falta dos detalhes da minha casa. Quando era pequena, já era assim. Com uns cinco anos chorei até adormecer, em férias em casa dos meus padrinhos, porque a cama não era a minha. E se estivesse em minha casa, "a minha mãe tinha já a minha cama feita" e preparada para eu dormir. Aqui se vê o comodismo de gostar de ter as minhas coisas à mão, sem ter que pensar muito. Tudo no meu aconchegante lar.
Uma deslocação implica sempre uma mudança. Mesmo que pequena e temporária. É escolher o que temporariamente nos pode fazer falta, num jogo do adivinha. É espremer os nossos pertences numa mala, num saco ou numa mochila. A única coisa boa é que, quando voltamos, trazemos saudades de tudo e até a comida nos sabe diferente, para melhor.

As festividades e as pessoas

Terminadas as quadras festivas penso que devemos falar sobre elas. O que correu bem, menos bem e mal. Isto já para começar a preparar este ano que agora começa, e não deixar tudo para a última, como sempre. Todos os anos penso comprar as prendas de Natal em Agosto, mas acabaram sempre por serem adquiridas e embrulhadas dia 24. Este é o meu "o que vou melhorar" neste 2018. Outra coisa é a roupa para a passagem de ano. Vi gente com combinações giríssimas mas com um toque de "foi a primeira coisa que me apareceu no armário, este vestido com lantejoulas e franjinhas", e um cabelo e maquilhagem que também não dizem nada "passei o último dia do ano metida em salões de beleza, enquanto contava às restantes clientes o que ia vestir e calçar". Para o ano... desculpem... este ano, vou fazer como toda a gente, e comprar a roupa em Agosto.
Isto do Ano Novo deixa-me pouco à-vontade. Primeiro, até quando podemos desejar "bom ano novo"? Há algum manual nesse sentido? E quando podemos esquecer as resoluções?
Mas, o que me tem deixado mais confusa, passadas as festividades, são os protocolos que regem a forma como gerimos as quadras festivas nas redes sociais, e já lá vamos. Não tenho registo de um postal de papel recebido. Tenho pena. Há uns dez anos, a febre eram as mensagens escritas no telemóvel. O pessoal tentava inovar e mandar textos originais. Com piadas malandras, a desejar "boas festas pelo corpo todo", ou muito sentimentais. Nos saudosos tempos dos Nokia, dava para mandar-mos símbolos com os "-" e os "*" que faziam bonecos alusivos ao momento. Como as mensagens se pagavam, ou se colocava um saldo de parte para mandar para todos os contactos, ou então tínhamos que selecionar os mais importantes. E retribuir todas, por cortesia. Havia aquele drama de não ter o número da pessoa que, pela escrita, parecia pertencer aos nossos amigos mais chegados. Alguns tentarem resolver esse problema, assinando com o primeiro nome. O que também não me ajudou em nada, porque só "Manel" é vago ao fim de 360 dias. Deviam começar a ser mais específicos, como "Manel que trabalha no talho, amigo da Ana que toma café às vezes no mesmo sítio do que tu". Se nos atrasávamos a enviar, a rede "entupia", e só dali a umas horas voltava a normalizar. Pior na passagem de ano, com os telefonemas pós-meia-noite.
Agora tudo se desenrola nas redes socais, onde podemos cear em simultâneo com amigos e conhecidos. Comparar mesas e presentes. Ver e conhecer famílias. E já ninguém deixa as mensagens a desejar boas festas para o dia dos acontecimentos. Foram mandando. E se recebemos dos amigos e familiares, recebemos ainda mais de pessoas que nem conhecemos. E não, não é engano. Não queriam falar, na verdade, com o Manel. Era mesmo para nós, uma lista aleatória onde se quer distribuir amor, paz, saúde, dinheiro e sucesso. Deixa-me confusa, mas feliz e agradecida ao mesmo tempo. Não há letras escritas, vem tudo em vídeo com vozes impessoais. Ali estão os votos.
Aproveito por fazer deles também os meus, para este 2018, não sabendo estar a infringir as leis da etiqueta ou não. Se sim, agora só me posso redimir em 2019.

Quando a neve era farinha

Não sei se é uma grande novidade, mas... o Natal está a chegar. Não é uma coisa destes dias, nem muito menos de Dezembro. Não. Em Agosto já eu comia chocolates alusivos à quadra, ainda que derretidos e com cor esquisita. Desconfio que pertenceram a Natais passados, e que ficaram esquecidos em stock. Ainda assim, quem consegue resistir a esta tentação? Esta época apela à gula e ao sentimento. Ter sentimentos, pelo menos a mim, dá-me fome. Por isso, é lógico que anda tudo ligado.
Depois, ainda em Outubro, começaram os anúncios. Promoções de todo o tipo, brinquedos com preço inflacionado e mensagens fofinhas começaram a saltar de todo o lado, principalmente da televisão.
Tenho a ideia de que antes isto só começava lá para meados de Novembro. Certamente a seguir ao Fiéis Defuntos. Quando eu era pequena, havia umas flores brancas no jardim de casa, muito cheirosas e farfalhudas, que abriam na altura dos Fiéis Defuntos. Era assim que eu sabia que era tempo de visitar o cemitério. Quando começavam as publicidades das bonequedas, estávamos próximos do Natal, ainda que eu não soubesse quão próximos.
Começava a cheirar a Natal quando se começava a desviar os sofás para colocar o pinheiro. Era natural (sei que agora não se pode) e colhido no monte ali ao lado. Não era preciso todo, só uma galinha bonita e com uma coroa, para enfeitar com uma estrela. No mesmo sítio encontrávamos musgo, bem verdinho e com volume. Forrávamos o chão com papel de jornal e alcatifas, para não estragar nada. O musgo passava a ser a Terra Santa, mais coisa menos coisa, e em cima desenhávamos caminhos de neve. Não sei se havia neve naquele lugar há mais de dois mil anos, mas em minha casa sempre houve. A neve não era neve, claro. Essa derrete, e não me lembro de passar um dia 25 com neve à porta. Por norma era farinha, que se roubava da cozinha. Farinha, por todo o lado, que dava um efeito nevado. Olhávamos para a obra prima – o presépio – com orgulho. Ficava com frio só de olhar. Os Reis Magos era mais pequeninos do que a Nossa Senhora, o São José e até do que o Menino Jesus. Não fazia mal, porque era uma questão de perspectiva. Eles vinham longe ainda, só chegavam dali a uns dias. Como toda a gente sabe, ao longe tudo parece pequenino. Tinha ainda um pastor, ovelhas e um castelo, que ficava igualmente enfarinhado. Desculpem. Nevados.
Não sei muito bem o que simboliza o Natal, às vezes. Para mim era a simplicidade de ter um pedaço de um pinheiro, com luzes, um amontoado de musgo com figurinhas castiças e farinha a fazer de neve. Não fazia mal não ser de compra, ou não ter um aspecto realista. Era a alegria de fazer isto com a família, de mobilizar todos os esforços para aqueles momentos. Embrulhar prendas às escondidas. Comer e rir. Jogar ao ‘par e pernão’ (que é uma espécie de jogo de apostas, dos que não faz mal, porque se ganham e perdem pinhões e nozes).
Agora já há, bem barata, neve em lata. Abana-se, e há neve por todo o lado. Branca e com textura. Tem que se ir retocando, porque como é a fazer de conta, vai perdendo características, até se resumir a um material borrachoso mirrado e meio amarelo. Isto não acontecia com a farinha. Essa era autêntica, nunca mudava. Ficava a fazer as vezes da neve até aos Reis. Mais tempo do que isso, se nós quiséssemos.
Não sei o que tem acontecido ao Natal, que já não me parece tão verdadeiro. Já não chega a farinha a fingir de neve, já se compra o presépio todo numa só peça, já não se reparam as luzes pisca-pisca fundidas com as suplentes que vêm na caixa, e tanto faz que haja cores iguais seguidas. Tanto faz porque o materialismo ganhou. Não há o decoro de celebrar as ocasiões devidamente, e pode ser Natal logo em Agosto.
Gostava que houvesse mais farinha a fazer de neve. A favor do que é simples. A favor do saber sorrir com tão pouco e mesmo assim não saber como se pode ser mais feliz.

Entre dizer ou não, prefira ficar calado

Falar bem, no sentido de elogiar desmesuradamente, é coisa que não fazemos com frequência. Diz-se uma vez, e pronto. Está dito. Lembre-se quando for preciso. Acho que nem quando estamos a tentar conquistar alguém:"És tão bonita!", "Sou? Sou nada", "És, pois", "Eu não acho", "Pronto, acredita se quiseres".
Agora, falar mal são outros quinhentos! Quando o assunto é "falar mal" nasce logo ali uma árvore de folha persistente, que vai ramificando e crescendo.
Há aquela máxima que afirma que não importa que se fale bem ou mal. O que interessa é que falem. Deduzo que porque significa que não passamos despercebidos ou que não nos esqueceram.
Ora, pior do que o que se diz é o que não se diz. Verdade! Aquilo que fica no meio caminho entre o cérebro, onde são processadas as ideias, e o aparelho fonético, mas acaba remoído no suco gástrico do estômago. Nenhum pensamento sobrevive àquele ambiente hostil, e é mais do que certo que vão todos acabar por morrer nesta batalha, que, aparentemente, tem recurso a armas químicas. É daqui que vêm as dores de barriga, não é das porcarias açucaras que comemos nem das bebidas com gás. Isso não faz mal nenhum comparado com o resto.
E este resto tem repercussões nocivas na convivência social. Faz tão mal ao ponto de criar uma espécie de síndrome de Tourette, só que sem nenhuma explicação clínica ou tão-pouco lógica. Refiro-me àquelas pessoas que, sem que nada o faça antever, nos dirigem comentários mais ou menos insultuosos, que nos querem semear dúvida tal é o tom de ironia, que nem temos oportunidade de saborear. Isto porque, enquanto falam, continuam a caminhar, como se nada fosse com elas, e mastigam as palavras o mais que podem, quais ventríloquos maldicentes. Assim não percebemos se nos disseram "lindas botas" a gozar, se disseram "linhas tortas" aleatoriamente ou "malditas portas" por causa de algum "puxe" ou "empurre" mais traiçoeiro.
O problema é que não temos a oportunidade de nos defender. De responder à altura, ou pelo menos dizer alguma coisa. Quando processamos o que aconteceu, já o autor do comentário desapareceu na rua, Não seríamos capazes de o identificar nas autoridades, nem sequer numa mesa de café. Ficamos a olhar para o vazio, e a magicar respostas inteligentes e do mesmo nível,que nunca teremos oportunidade de usar.
Por vezes nem há palavras envolvidas. Só olhares e sorrisos enviesados que não entendemos. No outro dia, saí de casa de manhã para comprar pão. No caminho, muitos foram os que me olharam dessa forma. Pensei ter algo de diferente nesse dia. Olhei por mim abaixo, não fosse ter eu levado, por lapso, o pijama vestido. Não vi nada de especial. A senhora da padaria olhou para mim da mesma maneira. Mas que raio! Por fim, enquanto me dava os trocos, declarou: "A menina já reparou que tem a camisola vestida ao contrário?". Corei. Afinal não estava extraordinariamente bonita aos primeiros raios de sol. Com uma visão mais atenta lá vi a enorme etiqueta branca, que nunca tiro para saber a que temperatura tenho de lavar a roupa, a baloiçar do lado esquerdo. Não arranjei uma justificação plausível. Só consegui balbuciar: "Olhe, pois tenho!".
Aposto que a senhora da padaria não sofre do estômago.