Tânia Rei

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“Quem és tu, ó Mascarado?“

Todos passamos tempos estranhos com isto das máscaras. Da novidade, veio a adaptação inevitável. Do desespero por encontrar qualquer uma, nem que fosse para trabalhos de serralharia e, de preferência, mantendo os dois rins, passando pelas de pano “que sempre seriam melhor do que nada”, aos especialistas em TNT (que antes era só AC/DC), às cirúrgicas e Ffp2 (isso soa nome de avião), até aos tutoriais para um simpático home made com resguardos de ensinar os cães a não fazer xixi pelos cantos da casa e meia dúzia de agrafos, qual MacGyver pandémico. Depois de tudo mais ou menos normalizado, começamos a ter as nossas preferências. As que encaixam melhor no nariz para não embaciar os óculos, as que não nos fazem sentir elfos, as que se mantêm efectivamente no sítio e, por fim, as que ficam melhor com a roupa que temos vestida. E passaram a fazer mesmo parte da indumentária, a ponto de nos sentirmos esquisitos sem ela. Como o slogan do Pessoa para a Coca-Cola. “Primeiro estranha-se... “. No início, pensava que o uso de máscaras nos dava um certo anonimato. “Ai, isto agora com as máscaras”, que, além de nos ensurdecer, nos poderia tornar também menos reconhecíveis. Isto a juntar a uns óculos escuros e a uma gabardina, poderíamos ser verdadeiros 007, agentes secretos prontos a não fazer nunca mais conversa de ocasião. Sonho pessoal. “Vi-te no outro dia”. “A sério? Isto agora com as máscaras... “. Remate perfeito. Acontece que agora já todos nos reconhecemos com máscara. E o mais certo é mesmo ter conhecido pessoas no entretanto (parece um paradoxo) que nunca vimos sem a dita. Por isso o mais difícil era mesmo reconhecer sem a máscara. Fizeram um estudo, se calhar também se cruzaram com ele, em que se chegou à conclusão que ficamos mais atraentes com máscara. Isto porque o cérebro preenche o que não se vê com características que agradam. No caso mais extremo, uma mulher foi considerada 70% mais bonita pelos participantes com máscara do que sem. Dá que pensar. Àquele flirt gostoso com alguém de máscara, quantas vezes se seguiu a conversa “agora vamos ver no - inserir nome da rede social - para ver o resto da cara”. Só para ter a certeza. Se pensarmos em exemplos semelhantes famosos, como o Clark Kent, o Zoro ou a Hannah Montana, chegaremos à conclusão que os pequenos pormenores talvez façam mesmo a diferença. E ficaremos confusos com assaltantes que usam meias de vidro cabeça abaixo ou passa-montanhas. Sem necessidade alguma, afinal. Ou isso ou a população tem só, no geral, um défice grave de atenção. O meu exemplo preferido é o Mascarado, do desenho animado Navegantes da Lua. Uns fantásticos óculos brancos design olho de gato, que não são para qualquer um. Além do toque fashion, ocultavam a identidade na perfeição. Não impediu que a Bunny se apaixonasse perdidamente pelo suposto estranho. Só que na verdade conhecia-o e nem se davam assim tão bem. Enfim, quem nunca? Lá mais para a frente, os óculos deixam de ter lentes que parecem espelhadas, passam a ser meias transparentes ou até inexistentes. Há alturas em que se fica na dúvida se é só uma máscara kinky, e afinal nem são óculos nenhuns. O que não muda nada em efeitos práticos. Bom, e sem outros pormenores a que se agarrar, há que fazer a conversa de ocasião possível: “Qual é o teu hobby, Mascarado? Diz-me. Tu gostas de...feijoada, por exemplo?” Em boa verdade, as Navegantes da Lua não usam máscara, só aquelas farpelas reduzidas e lycradas, com saias plissadas. E nem por isso são identificadas. Então se calhar vou aceitar que as máscaras não são o Manto da Invisibilidade, que pode antes ser obtido com um cocktail de adereços. Sejam quais forem os argumentos, neste novo mundo, que fica dentro do nosso planeta, na impossibilidade de castigar em nome da Lua e salvarmos o universo, presente e futuro, continuamos a ser, pelo menos, heróis à escala local se continuarmos a cumprir as regras. É só mais um bocadinho. Citando o Luna, “coitadinhos”. Mas lá terá que ser.

O normal é ser diferente

Às vezes, percebemos que, para podermos andar descansados, temos que andar ao contrário de toda a gente. Por norma, se estamos a fazer algo diferente de todos os restantes, leva-nos a crer que algo está errado. Como quando caminhamos da direcção oposta dos restantes, que se deslocam em manada (tempos A.C. - Antes da Covid-19) . “Ou somos muito espertos, ou então muito burros”. Quem nunca?

Bom, a verdade é que o que neste momento em que vos escrevo me está a permitir usufruir de alguma calma e normalidade é ter vindo tomar o pequeno-almoço fora... Quase ao meio-dia e meia hora. Ora, ao passo que muitos se preparam para o almoço, eu vim, poderão dizer, com algumas horas de atraso. Para mim, cheguei no momento certo. Evitei filas, confusões, pessoas em geral. Não evitei o ar reprovador e algo confuso da senhora que me atendeu, e que perguntou duas vezes para confirmar o meu pedido, que lhe pareceu tão desajustado. Agora estão provavelmente sentados a mirar uma ementa de pratos do dia, ou a espreitar pela esquina do olho para um qualquer programa da manhã enquanto tentam não deixar queimar o estrugido do arroz. E eu, aqui estou, a beber uma meia de leite, sem pressas.

São pequenos luxos que nos permitem manter a sanidade mental. Andar como queremos, sem querer saber o que pensam sobre nós. Isto quer dizer que nem sempre o mais sensato, o mais “normal” é o melhor para nós? Acho que, no fundo, quer dizer isso mesmo. Quantas vezes dizemos que “não” a querer dizer “sim”?

Quantas vezes dizemos que “não” porque é mais fácil, mais ajuizado, e outras tantas damos um “sim” para não levantar ondas (a ordem dos “nãos” e “sins” podem decidir vocês, sintam-se à vontade para trocar. Este é um texto totalmente livre de regras, por isso, força!).

E, pior, por cada vez que nós dizemos “não” alguém diz “sim” em nosso lugar (mantenhamos a regra do parágrafo acima, caro leitor). Por cada vez que adiamos a vida, por tantos motivos que não passam de desculpas, de facilitismos, ela continua a avançar, sem nós, noutros sentidos onde não estamos. Se isto nos deve preocupar? Claro. Se devemos fazer algo para mudar isto? Certamente.

No meu caso, hoje não, que ainda tenho uma meia de leite e estas linhas para acabar, e estão ambas a saber-me bem. E vocês, do que é que estão à espera?

As mudanças começam em nós. Esta frase não é minha, logicamente, ainda que não cite autores porque não sei se há mesmo um ou se é a sabedoria popular ou, talvez, tenha lido num livro de auto-ajuda qualquer na prateleira de um supermercado. As mudanças são enormes. Outras são um pequeno passo. Um ato de coragem, de ousadia, um efeito borboleta Hoje, a minha mudança, a minha revolução, foi tomar o pequeno-almoço à hora do almoço e contrariar do resto do mundo (neste fuso horário, pelo menos). Remar contra a maré e ser diferente pode mesmo ser uma “estranha forma de vida”, como cantava a Amália (eu por acaso gosto mais da música dos caracóis, mas não se adequava aqui). É, afinal, o que há de mal em ser estranho, certo? De revolução em revolução, um dia vamos acabar felizes e descansados com a vida que escolhemos. Mesmo que seja o contrário do resto do mundo.

Sim, continuo aqui

Vou lançar aqui um desafio: conhecem alguma história de amor que tenha ficado mal resolvida? Ou será melhor perguntar antes de quantas se lembram, sem pensar muito (ou no próximo texto ainda estaremos a discutir este tema, e vamos chegar à conclusão de que é melhor escrever um livro só com estas vivências. Fica o registo para eu receber depois os devidos louros). Começo, como é lógico, eu, - e até acho que já contei isto uma outra vez - com a história de um senhor que queria pedir a mais nova de duas irmãs em casamento. Mas, com o nervosismo, atrapalhou-se tanto que o pai das moças em idade casadoira percebeu mal, e acedeu dar a mão da filha mais velha. Não foi permitido desfazer o engano, estava feito. Pelo que o jovem teve que casar com aquela que queria antes para cunhada, e que se chamava Perpétua. Já pensaram quantos amores ficaram desfeitos por mal- -entendidos, por uma carta que nunca chegou ao destino, por culpa de um preguiçoso que não foi chamar para ir ao telefone, por uma mentira maldosa de terceiros? E tudo tinha um fecho, de algum modo. Que podia ser um “e nunca mais soubemos nada um do outro”, com mais ou menos pena. Tudo mudou com as redes sociais. Podemos estar a morar noutro planeta que nos é permitido manter por perto quem nós quisermos. Ou afastar. Só que, por norma, e pelo sim pelo não, fica lá. Ou porque achamos infantil eliminar alguém só porque as coisas correram menos bem, ou porque estaríamos a dar a parte fraca e dizer que aquilo nos afectou. Ou, tanta vez, porque queremos manter uma ligação, ainda que digital, com determinada pessoa. Saber algo dela, saber que podemos conversar (ou tentar, vá) com ela ou interagir de alguma forma. Interagir é talvez a melhor expressão, porque é o que fazemos online. E há uma espécie de manual quase universal com vários passos para isto, quando se trata de “pendências” (façam vocês a piada). Podemos escolher dar “likes” depois de meses ou até anos sem trocar uma palavra. Podemos elevar o patamar e fazer isso só que em fotografias com séculos (eu estive a ver o teu perfil todo, todinho, pois foi. E como é que isso te faz sentir? Vais falar comigo? Ou começo eu? Sim, sou o amor da tua vida. Mas está tudo cego?). Podemos dar logo tudo numa piada no chat. Lançar ao mar aquilo que parece um inofensivo anzol sem isco, que acaba por ser pesca de arrasto. Estamos ávidos de informação na internet, de dar e receber. Queremos também marcar uma presença, lembrar ao outro que estamos vivos, numa publicação perto de si. E não queremos demoras nas ditas interacções, se houver lugar a elas. Para isso teríamos escolhido enviar uma carta, soubéssemos nós o raio da morada. Acho que hoje em dia só as Finanças sabem a nossa morada. Ou talvez, com a internet, saibamos é tudo e tão pouco, na verdade, sobre as pessoas a quem queremos. E sabemos que as queremos por perto, ainda que assim à moderna, onde tudo funciona à distância, sem horários e quando nos apetece. É então caso para perguntar: estamos a dar cabo do romance ou é o romance que está a dar cabo de nós?

Dar água sem caneco

Quão fácil é falar? Falar é algo natural ao ser humano. Comunicar, de qualquer forma. É inato. Mesmo quem se diz anti- -social e que prefere estar sozinho acaba por ter necessidade de algum contacto humano (até porque, reparem, “quem se diz”. Tiveram em algum momento que verbalizar este sentimento). No meu caso em particular, sempre tive uma propensão enorme para comunicar. Até em demasia. Que o diga a minha mãe, que teve que lidar com uma criança que só queria conversar a toda a hora, criando tópicos de conversação à velocidade da luz e testando palavras que ouvia na televisão e tentava encaixar num discurso que, achava, coerente e fluído. “Filha, vai brincar um bocadinho para outro lado, para a mãe descansar a cabeça”. Uns bons trinta segundos depois, após uma volta completa à mesa da cozinha: “Já descansaste? Já posso falar outra vez?”. De tal forma estamos habituados a interagir, sem, até, darmos muita importância, que frequentemente dizemos mesmo que “falar é fácil”. Porque, de facto, sem embaraço atiramos palavras para expressar verdades, inverdades ou raio de coisa nenhuma. Para “deitar conversa fora”, para “dar dois dedos de conversa”. Ou, em alguns casos, “dar água sem caneco”, chegamos a essa conclusão. Temos a percepção de que falar, ceder parte do nosso tempo ou da nossa atenção pode não ter grande importância. Que não belisca em nada a nossa vida. Que pode ser, até, uma espécie de caridade para com alguém que precisava mesmo daqueles minutos do nosso dia. Minutos esses que a nós nem nos fizeram diferença, nem demos pela falta deles. Conseguimos completar as nossas tarefas sem aquele bocado que atirámos fora. Ainda assim, isto não corresponde à verdade. Dar água sem caneco pode ser perigoso. Não tão perigoso como ser ajudante de um atirador de facas ou beber lixívia - porque são coisas potencialmente mortais. Mas pode deixarmos danos irreparáveis. Porque o tempo tem esta mania estranha de só andar para a frente. E ainda ninguém fez o favor de tornar um vira-tempo real (isto é uma referência à minha saga literária predilecta, mas podem trocar por máquina do tempo, que vai dar ao mesmo). Se somarmos todo o tempo perdido com conversas sobre coisa nenhuma ou que não nos levaram a uma conclusão arrebatadora, vamos chegar à conclusão que com este lero-lero perdemos, pelo menos, tempo que podia ser gasto com uma boa soneca, num passeio, numa mariscada ou, quiçá, numa prosa realmente interessante. E por que é que temos este tipo de conversas? É porque achamos que nos guiam a algum lado ou porque retiramos delas alguma satisfação pessoal momentânea, sob um ponto de vista retorcido? Há estas pessoas que teimam em conversar sobre tudo. Tudo é um possível assunto para uma conversa séria, daquelas que exigem tempo e disposição, para deixar tudo em pratos limpos. A não ser, claro, que seja mesmo necessário conversar. É que, hoje em dia, tudo é muito efémero. E é tão fácil falar, mas só se não tivermos nada de útil para dizer. Dizemos coisas da boca para fora. E, no final do dia, parece que andamos é todos a dar água sem caneco.

O fim do mundo

Assim de repente, contei cinco. Vinham a subir umas escadas de cimento quando os comecei a ver. Acho que estavam a sair de um parque de estacionamento subterrâneo. À frente vinha uma mulher loira. Calças de lycra pretas. Um top justo, algures entre o rosa e o vermelho. Por cima, um casaco fino largueirão exactamente da mesma cor, descaído casualmente, a condizer com toda a indumentária, no ombro direito. As sapatilhas de corrida deram mais jeito do que o previsto, uma vez que estavam a tentar escapar de uma invasão de extraterrestres. Uma das mulheres do grupo foi apanhada, entretanto, por entre gritos e correrias. Era uma espécie de polvo, mas biónico, que emitia sons que faziam lembrar morsas. Mas também ela estava impecavelmente vestida. Calças de ganga e um blusão de cabedal castanho. O resto não vi muito bem, porque rapidamente foi sugada pelo ser biónico de outro mundo. Nunca entendi muito bem esta fixação dos aliens em matar os terráqueos. A não ser no Marte Ataca!, porque aí é claro que os marcianos têm só um sentido de humor retorcido (talvez não fosse a melhor altura para vos lembrar disto, mas agora já está). Voltando ao que vos estava a contar, os restantes safaram-se. Entraram, por uma unha negra, num prédio. Foram para um apartamento. E lá deu para ver que a loiraça tinha o cabelo imaculado, mesmo tudo indicando que estava a fazer a sua corrida matinal antes, e a maquilhagem incrivelmente no sítio. Isto, sim, era um anúncio para vender cosméticos - aqueles que sobrevivem, até, ao apocalipse. Acho que o final do filme não é muito feliz. Mas também essa não é a questão. A questão verdadeira é: estamos prontos para saber o que vestir, quando chegar o fim do mundo? A sério. Quando tivermos que fugir, levar só o indispensável (que é esse belo couro e pouco mais). Saberemos nós estar à altura de todas as películas que vimos, onde toda a gente aparece com aquele look casual-chic-super-confortável-para-lutar-pela-vida? Ou, mesmo que não seja, rapidamente se converte. Rasga aqui, corta ali, atira fora os sapatos de festa de salto agulha e calça umas botas da tropa arrancadas a um cadáver, que calha ser o nosso número. E faz envergonhar muitos designers ou costureiras mais habilidosas. Mais do que saber que é preciso assaltar uma farmácia, para roubar antibióticos, ou que a água que fica no autoclismo é boa para beber, é importante pensar na indumentária. É melhor levar um casaquinho para a noite, mesmo se for Agosto? As nossas mães diriam que sim. Cabedal é sempre bom, dá um ar de durão, mais uns óculos de sol marotos. Mas, se for Verão, é capaz de fazer transpirar. E a moça desse filme que vi não se safou nada bem, mesmo com a coberta janota. E, se o fim do mundo demorar muito a passar, como vamos fazer com depilações, unhas ou raízes descobertas? Ou barbas e cabelos à náufrago? E onde vamos arranjar espaço para a maquilhagem, cremes e produtos de higiene no meio da mochila ridícula onde só já há latas de comida de gato, frascos de feijão manteiga e meia dúzia de antibióticos fora de prazo? Sabem? Acho que não estou preparada, ainda, para o fim do mundo. Mas, se tiver mesmo que ser, pelo menos que não me apanhe com o pijama enfiado.

Futurologia

A conjuntura actual tem-nos obrigado a viver no futuro. O agora é como viver no suspenso, à espera. É viver da melhor forma possível, da mais responsável, da mais restrita. Uma espécie de garantia para chegarmos ao tal futuro. Há quase um ano que as conversas são dominadas pelo futuro: “quando isto melhor”, “assim que der”, “quando tudo passar”, “não vejo a hora”. Nunca vivemos o presente com tanta pressa, porque o que interessa é, na verdade, o futuro. Queremos lá chegar com a máxima brevidade possível, mesmo sem saber quando isso será. Numa actualidade repleta de incertezas e provações, é- -nos permitido este escape - viver no futuro, onde a nossa vida voltará a ser como antes. Ainda que nem saibamos, talvez, o que é esse “antes”. Porque nunca nos tínhamos encontrado em tamanha situação, em que o mundo tal como o conhecíamos ficou virado do avesso. O que nos vale é poder sonhar com o futuro, fazer planos para ele. Idealizar os sítios onde iremos, as pessoas com quem estaremos, o que faremos. São mesmo as pessoas e a liberdade de ir onde queremos e fazer o que queremos que mais passam a importar. É o que domina o tal futuro. NinFuturologia guém quer estar no futuro sozinho. O futuro deixa de ser a resposta a uma pergunta clichê, de onde nos vemos daqui a uns anos, rodeamos de bens materiais. Passa a ser uma mesa com a família e os amigos. Talvez até desconhecidos ou recém-conhecidos. Passa à frente o contacto humano. Passam à frente os risos e as conversas. Os beijos que queremos trocar. Os abraços, dos quais estamos destreinados. Fazer futurologia passou a ser uma forma de viver, de ser abduzido por um mundo paralelo. Estamos fartos do raio das provações, e, ainda assim, não as podemos ignorar. Provavelmente, quando tudo ficar bem, já teremos planos para as próximas décadas, de tanto almejar o futuro.  Algumas pessoas ficaram mais perto, mesmo estando longe. Outras, ficaram cada dia mais longe, e é OK. Percebemos que, afinal, sempre tivemos tempo, somente não tínhamos a disposição. Ou tínhamos disposição a mais para o que era um vazio, e isso obriga-nos a reflectir. Ainda assim, são mesmo os outros que mais nos fazem falta. Talvez, no tal futuro, aprendamos a gerir melhor o relógio. Deixaremos as pressas, os afazeres que, se calhar, nem são assim tão importantes. Talvez no futuro se queira estar presente. Mal posso esperar pelo futuro, esse malandro fugidio. Até lá, ainda falta uma grande corrida de obstáculos. O futuro é a luz ao fundo do túnel, a réstia de esperança. É como naquelas séries televisivas, com muitas temporadas, em que a derradeira demanda vai ficando adiada, porque, entretanto, surgem outros problema s prement e s que não podem ignorar, sob pena de hipotecar o propósito final. Contudo, está sempre no pensamento, no foco. Nunca fui adepta de futurolo - gia. Agora sou. Vivo a adivinhar, a desenhar o porvir. Porque o presente não me serve. O presente vai, um dia, ficar num passado doloroso. Uma aprendizagem à bruta, que nunca pensámos ter. E, quando dermos por ela, já é o amanhã pelo qual tanto esperamos. Nesse dia, quero ser mais feliz do que alguma vez fui, aproveitar melhor o tempo, a liberdade e as pessoas. Porque, como todos, saberei o quão foi difícil viver num agora que não queria, obrigada a viver no futuro.

Mensagens escritas e beijos

Há cerca de duas décadas as mensagens escritas tornaram-se corriqueiras. Primeiro, nos telemóveis. Tínhamos que gerir bem quanto escrevíamos, para só pagar uma mensagem, e a quem a  enviávamos.  Uma mensagem escrita era um evento controlado. E tínhamos que ter um motivo válido para as receber ou enviar. Aprendemos a escrever telegraficamente, por causa dos tais caracteres contados. Usávamos abreviaturas manhosas, onde reinavam letras como o k. Infelizmente, há quem tenha ficado preso nos anos 2000, e essa forma de assassinar a língua materna permanece viva. Era entendimento geral que não era suposto manter uma conversa longa pela via escrita, no telemóvel. Por norma, havia um propósito, um objectivo. Se fosse só para chamar a atenção, dávamos «um toque». Havia quem tivesse códigos, qual jogo do copo, mas com o telemóvel e pessoas vivas. «Um toque sim, dois não». «Manda toque ao saíres de casa». Hoje em dia, isto seria um «olá», assim, à paposeco, em qualquer plataforma de conversa online. Para delongas, tínhamos a internet. Primeiro, o mIRC. Sou mais do tempo do Messenger, com aqueles dois bonequinhos, um verde e outro azul. Entretanto, veio o Facebook, e depois passámos a ter um Messenger lá. Não sei a ordem correcta dos eventos, mas o velhinho Messenger desapareceu por esta altura. Mudanças que tivemos que acompanhar, e que o fizemos de forma muito natural. Por esta altura, já a internet era mais acessível, a todos os níveis. Chegou a todo o lado, aos telemóveis sem teclas também. Tudo a uma velocidade (mais ou menos) galopante. Agora, quem não está disponível online é como que se não existisse. Está fora de mão. Estamos todos habituados a falar por escrito, online. Não me lembro a última vez que escrevi, à mão, uma carta inteira para ir aos Correios. Quanto muito, escrevo no envelope. E até isso estamos a perder. Hoje, é quase obrigatório usar bonequinhos para exprimir sentimentos. É possível fazer frases só com estes amigos coloridos. Completa a parte escrita, como uma bengala, para conseguirmos transmitir correctamente as nossas emoções. É que escrever é sempre um exercício individual, mesmo com a tecnologia. Podemos escrever, saber o que queremos dizer, achar que é entendível da maneira como o concretizámos. Mas ser imperceptível para o receptor, porque criámos um “ruído”, algo que impede a t ra nsmissão do que queremos dizer. Outras vezes, somos só mal interpretados. Até escrevemos bem as nossas ideias, só que ler também é um exercício pessoal. E nem sempre se entende o que o emissário quis, de facto, dizer. Uma interpretação deficiente, ou personalizada, se preferirem, não é incomum. Uma das coisas mais dúbias para mim nas conversas online são os «beijos», «um beijo» e «beijinhos», nas despedidas. Deve ser por isso que raramente, nestas interações, cumprimento ou me despeço, a não ser que saiba o que é seguro. É seguro mandar “beijinhos” a toda a gente. “Beijos” também é mais ou menos seguro. Mas “um beijo” é diferente. Parece demasiado pessoal. É só um. Repenicado. “Um beijo”. Claro que tudo depende de quem o diz e para quem se diz. Não teremos dúvida que há “um beijo” equivalente a “beijinhos”, e vice-versa. Contudo, “um beijo” parece criar proximidade, mesmo virtual. Ficam dúvidas, que podem provocar ruído e causar uma impressão equivocada, para o bem e para o mal. E é por isso que, para deixar tudo em pratos limpos, às vezes temos mesmo que optar por fazer as coisas à antiga. Cara a cara. Viver de verdade, por esse mundo afora. Como antes das mensagens escritas. E como deve ser.

Pelo orgulho de gostar de música duvidosa

Quando as redes sociais começaram a ser uma constante nas nossas vidas, era muito comum partilharmos músicas. Agora, já é mais raro. E acho uma pena, porque as músicas de que gostamos dizem muito de nós. Mentira, não acho nada disso. Acho apenas que a música é uma arte que não se explica muito bem. Nem a música em si, nem o efeito que tem em nós. Já vos aconteceu estar a trautear uma música e pensar: “Porquê? Odeio-a, mas não me sai da cabeça”. Uma relação amor-ódio que não temos como evitar. É o mesmo sentimento de querer amar uma pessoa para sempre, mas, ao mesmo tempo, jurar nunca mais na vida lhe falar. Tenho imensas dessas na minha playlist. Neste momento em que escrevo estou a ouvir uma música que queria odiar. Só que tudo o que sinto por ela é um carinho indecente, que não consigo explicar. “Burbujas de amor”, do Juan Luis Guerra. Uma letra que foi escrita, claramente, depois de uma noite regada a álcool e produtos estupefacientes. Já a altas horas da madrugada, naqueles momentos de reflexão de “e se...” com os amigos, em que se acha que se vai descobrir a cura para o cancro e a fórmula para fabricar comida em cápsulas, um olha para o aquário ao fundo da sala e declara: “Meu, queria ser um peixe, para fazer bolhinhas de amor”. E aplaudiram todos os presentes. É, apesar da sonoridade de balada romântica, a letra faz tanto sentido como barrarem-se com mel e irem procurar um urso-pardo para Montesinho. Se, numa fase inicial, pensámos que o cantor está com os problemas cardíacos normais de alguém apaixonado, com sentimentos contraditórios - “Tengo un corazón/ Mutilado de esperanza y de razón” -, rapidamente caímos num non sense delicioso, para o qual somos mais ou menos avisados nos versos anteriores. Algo do género: “Ok, malta, estou mesmo apaixonado e isto vai ficar esquisito”. Chegando o refrão, Juan Luis Guerra atira, sem pudor, que quer ser um peixe...para tocar com o nariz dele no aquário do objecto da sua paixão e fazer, obviamente, bolhas de amor. Há grande possibilidade de, na verdade, esta música ter uma carga sexual muito forte. E aí, esta coisa de ser um peixe, das “burbujas de amor” e passar a noite “mojado en ti” passam a ser um piropo seriamente candidato ao posto de mais insólito do século. Daqueles que se fica na dúvida se tem algo de elogio ou se é só um insulto. Mas Juan Luis Guerra não quer fazer só “burbujas de amor”. Também quer decorar com corais a cintura da pessoa amada. E, mais tarde, troca-os por malaguetas, o malandro. Dos corais, ainda vá. Mas não sei onde um peixe (sim, ele ainda é um peixe) de aquário iria encontrar malaguetas. Nem outro qualquer. Ainda assim, de tão bizarro chega a ser romântico. Bom, agora é provável que daqui a uns dias acorde antes a cantar “Taras e Manias”, do Marco Paulo, à qual também não consigo ficar indiferente. A letra é mais fácil de entender, tirando a parte de tratar a moça por “você”. É sensualão? Tudo isto para vos dizer que a música é, de facto, uma arte. Podemos sentir-nos, por vezes, envergonhados pelo tipo de arte que nos desperta interesse. Mas, é uma arte que nos faz sentir felizes. E não me importo mesmo nada de ser feliz a cantar “você não tem um pingo de vergoooonha...”, agarrada ao cabo de uma vassoura, num mega- -concerto privado, com coreografia a condizer. Em público, vou continuar a fingir que não sei a letra toda de cor.

Me, myself and I

Quanto mais tempo passamos sozinhos, mais tempo achamos que conseguimos passar sozinhos. É uma espécie de ciclo vicioso. Ou viciado. E não parece que faça mal. Estar sozinho, tendo como definição estar, de facto, sem companhia, a não ser nós mesmos. E não outra definição qualquer de “estar sozinho”, como que se de um eufemismo se tratasse para outros assuntos, nomeadamente do coração. Quando estamos sozinhos, temos que arranjar com que nos entreter, se não tivermos o que fazer. Mas, há sempre o que fazer, se pensarmos bem. Ou trabalho, ou lides domésticas, ler livros, ouvir música, ver televisão. Televisão, genericamente, não. Conteúdos em plataformas para o efeito, não é? Já ninguém vê outra coisa. Já ninguém liga à hora das notícias nem espera para ver determinado programa. É a era moderna. Mas pode, simplesmente, não apetecer fazer nada, a não ser procrastinar. E não faz mal, porque estamos sozinhos e ninguém vê a nossa preguiça. Estar sozinho implica que a pessoa que conhecemos melhor somos nós próprios. Mesmo que passemos grande parte do tempo acompanhados, não há como negar que é connosco que passamos a maior parte da nossa vida. Porque nós nunca vamos a lado nenhum, estamos sempre na nossa própria companhia. Há quem diga que não saiba estar sozinho. Isto já deve entrar nas definições dos eufemismos que falámos há bocado. Claro que sabemos estar sozinhos. E, às vezes, até queremos. E já pedimos, em algum momento, para que nos deixassem sozinhos (nem que fosse para mudar de roupa ou ir à casa de banho em paz). É quando estamos sozinhos que podemos ser nós mesmos, sem receio. Podemos tirar macacos do nariz, espremer borbulhas com caras estranhíssimas em frente ao espelho, esperar que o creme depilatório faça efeito, enquanto andamos pela casa a fazer outras coisas, sem que tenhamos de nos preocupar se parecemos saídos de um filme de terror. Podemos chorar a ver filmes com cãezinhos que falam, cantar alto (e mal) ou andar todos nus, só de meias. E reparem que, invariavelmente, acabo por referir “a casa”. Uma casa, a nossa casa. Como se fosse um escudo protector. Há quem, por exemplo, tire macacos do nariz no carro, como se fosse invisível aos olhos alheios, mas não é. Ainda assim, pode ser considerada outra bolha. A verdadeira intimidade é quando podemos fazer tudo o que queiramos, ou que necessitarmos, em frente a outra pessoa, sem que nos preocupe se nos vai passar a odiar a partir daquele momento, ou a sentir asco de nós. Como que se estivéssemos a partilhar, naquele exacto instante, que somos meros humanos, esquisitos como todos os outros. Que fazem coisas estranhíssimas dentro da sua bolha, da redoma de segurança, onde os olhos alheios não chegam. A não ser se lhes dermos acesso. O acesso privilegiado ao nosso íntimo, como um reality show, mas a sério. É nesse momento que deixamos de ser sozinhos, mas que podemos continuar a ser nós próprios, como se estivéssemos sozinhos. Ou talvez não, e continuaremos a precisar de passar o nosso tempo completamente sozinhos. Porque o tempo gasto com o nosso eu nunca será mal empregue.

Morrer de amor (?)

Acho que é seguro afirmar que todos já tivemos o coração partido. Todos pensámos, em algum momento, que íamos morrer, literalmente, de amor. Ou melhor, pela ausência de um amor em específico, materializada numa pessoa. Pensámos que nenhuma alma seria capaz de suplantar o que estávamos a sentir, tamanha a dor. E pensámos no que iríamos nós fazer nesta mísera vida sem o nosso amor, que nunca o mundo viu outro igual. É uma espécie de dor fininha, que parece que faz doer até os ossos. Alguns choram. Outros bebem. Outros procuram conforto imediato noutros braços. Depende também em que época da nossa vida é que o desgosto amoroso nos apanha, e, obviamente, da disponibilidade de terceiros, se considerarmos a última opção. Há quem goste de aturar as desgraças alheias nesses termos, e fazer de ama seca, porque ali não há um amor igual ao que, infortunadamente, perdemos para sempre. A verdade é que, não descurando que, se calhar, alguns morreram mesmo com o coração partido, a esmagadora maioria consegue, surpreendentemente, sobreviver. Só que é mais inato ao ser humano querer sofrer do que querer ser feliz. Ver o copo meio vazio, ser um mártir. Temos uma atracção natural para o fundo do poço. E parece que nunca estamos suficientemente no fundo. É isso que os corações partidos fazem (nesta parte, ainda não sabemos que vamos, de facto, sobreviver). Somos feios, maus, pouco interessantes, nem tomamos banho, se for preciso. Nunca fizemos nada de jeito na vida. E todos à nossa volta passam a parecer fadas encantadas, cheiinhos de virtudes. Mas, nenhuma dessas pessoas nos interessa, só nos deprimem. Primeiro, porque temos a nossa candeia apagada, e o escuro nem nos deixa ver. E depois porque estamos muito ocupados a sofrer, a rever tudo o que correu mal na relação que terminou, ao ínfimo detalhe, como se estivéssemos a estudar para um teste. É difícil perceber quando é que o coração partido sara. É quando já não pensamos nos ex? É quando passamos a ter outra pessoa? É quando vemos os ex e conseguimos dizer “olá, tudo bem?” com um tom indiferente, sem espumar da boca ou desatar em prantos? Simplesmente, deve ser quando já nem nos lembramos da dor fininha, até aos ossos. Quando, feitos malucos, começamos a olhar para alguém, que novamente traz a sensação de borboletas no estômago. É quando passamos a ser, outra vez, fadas pimpilantes, a espalhar charme por tudo quanto é lado, todos namoradeiros. E vamos ao ginásio, fazemos uma coisa diferente ao cabelo, vamos comprar umas farpelas novas, vamos a sítios novos. Há sempre aquele amigo que, farto de nos ver na depressão, até é capaz de arranjar um date a quatro, que, regra geral, corre mal, mas que não deixa de ser engraçado, porque é uma experiência diferente. E, quando vamos a dar por nós, já trepámos o poço. Estamos cá acima, qual Samara, que se recusa a ficar dentro de água. Cá estamos nós, prontinhos para outra! O mais inacreditável não é como superamos o fim de um amor, que achámos eterno. O mais inacreditável é como podemos voltar a cair na esparrela, mesmo sabendo que, muito provavelmente, dali a algum tempo estaremos outra vez na fase em que é mais certo morrer de amor do que outra coisa.