Tânia Rei

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Um coração que não bate. Só apanha

Nestes dias de chuva, a minha Mãe andava empenhada numa batalha perdida à partida. Lavou o chão da varanda e tinha esperança que este pudesse secar em tempo útil. A água continuava a vir do céu puxada pelo vento e a humidade era palpável no ar. Claro que no azulejo também. Uma guerra entre duas Mães (a minha Mãe e a Mãe Natureza) que tinha já um ganhador desde o início. E, claro está, o chão não secou. A minha Mãe continuou a reclamar, apesar de cada vez menos, à medida que se ia resignando às condições meteorológicas. Contudo, mantinha alguma da esperança inicial, creio. A esperança é uma coisa, ao fim ao cabo, estúpida. Porque nos empresta uma certeza irrealista de que algo pode mudar e conspirar a nosso favor. Por vezes, temos só que nos resignar aos desígnios que as circunstâncias nos oferecem. Nas lides domésticas e no resto da nossa existência. É a esperança que nos coloca perante as piores situações que podemos imaginar. E acho que nem funciona, se não tivermos sorte. A esperança é o que nos faz ir. A sorte é o que nos faz vingar. O tal vento que muda e alinha os astros para nós, para tudo correr de feição. Raramente acontece, além de que nada disto é certo nem tão pouco de crença geral. Há quem siga sem expec- tativas, há quem nem acredite na sorte. Pior ainda: haverá uma franja populacional que é da equipa da frase feita “a sorte constrói-se”. Isto será mentira, na medida em que só podemos controlar aquilo que a nós nos diz respeito e todas as histórias têm, pelo menos, dois lados. E, quase sempre, controlamos muito mal. Às vezes pelas tais circunstâncias. Outras tantas só por falta de capacidade de gestão. Associado a tudo isto há sempre um sentimento de frustração, de tristeza e de angústia. A vida seria mais simples se fosse como nós queremos? Seria. Sem mais comentários. Não acho nada que os obstáculos nos tornem mais fortes ou resilientes. Tornam-nos mais amargos, inflexíveis e cépticos. Dizemos que acreditamos que coisas boas vão chegar só porque é preciso dizer alguma coisa. Para mentirmos a nós próprios e aos outros. As coisas boas que poderão chegar vão trazer novas complicações. O que vale é que a experiência vai acumulando e com isso aumenta também a leitura prévia que somos capazes de fazer para responder à questão: “Como é que será que este novo evento me pode magoar?”. Afinal, e em jeito de resumo, há corações que não são feitos para bater. Estão destinados só a apanhar.

As memórias são seguras

As memórias são o nosso único espaço seguro. Mesmo as memórias más. Porque se excluiu o factor surpresa. Por mais que possam doer, sabemos o desfecho. Escusamos de ficar ansiosos, à espera do porvir. Nas nossas memórias podemos ser miseráveis , sim, ou felizes, a gosto. O bastante é focar-nos num acontecimento em específico. Os entendidos dizem que o nosso cérebro não guarda tudo o que vivemos. É como um disco rígido com capacidade limitada, que depura o que não tem interesse nenhum. Por acaso, é pena. Assim poupava-nos, tantas vezes, a uma ginástica mental para nos lembrarmos onde pusemos as chaves do carro ou se desligámos o ferro de engomar. Muitas séries futuristas debruçam-se sobre esta matéria - as nossas memórias e forma de as guardar. Aí, nas telas, é possível rever acontecimentos ao detalhe, com recurso a chips e máquinas. Para reparar em coisas que as nossas falhas humanas não conseguem perceber de uma só vez - a vez em que as vivemos. Também quando o assunto é magia estão muitas vezes presentes. Como a possibilidade de voltar atrás no tempo para mudarmos o seu rumo ou de as armazenar num local à parte, numa espécie de memória externa. Até, e o mais relevante, de as apagarmos. Exercício coletivo: apagariam ou alterariam alguma memória, se vos fosse possível? Muitos dirão que não. Que são as nossas memórias, boas ou más, que nos definem. Que, sem elas, seríamos conchas vazias. A memória é também o que nos livra dos perigos, tantas vezes. Lembrámos da vez em que nos queimámos com água quente e assim aprendemos a importância de avaliar a temperatura. Por exemplo. Outros dos caros leitores, por sua vez, iriam eliminar algo que passa em repetição na cabeça e que queriam, simplesmente, esquecer, para poder ter uma vida mais descansada. Ou mudar algo. O arrependimento não mata, mas mói. Pode ser difícil lidar com a bagagem deixada pela memória. Ou na memória, como preferirem. Teimamos em revisitar o que não vai voltar. Ou em pensar demasiado, tentando apanhar detalhes que, entretanto, vão ficando desfocados. É como tentar acertar com a fechadura de casa depois de emborcar uns copos. Acaba por parecer um esforço hercúleo patético para o qual não estamos capacitados e vamos sempre acabar a prometer a nós mesmos nunca mais o repetir. Felizmente, as memórias são só isso mesmo. Memórias. Vivem dentro de nós, fechadas. Não há tecnologia ou magia para as ma- terializar, apagar ou mo- dificar. Acaba por ser um problema sem solução. É ir fazendo contas para amenizar. Choramos ao lembrar algumas. Sorrimos com outras. Choramos a rir, também. Mas são como fantasmas, não são cor- póreas. Já não nos podem fazer bem nem mal. Já não estão no mesmo plano. As memórias são um lugar seguro, imutável. O único. Todos os dias somos, contudo, empurrados para fora dessa bolha para vi- vermos o presente. E, se o hoje são as memórias de amanhã, diria que tudo o que nos resta é trabalhar para que o espa- ço seguro futuro da nossa mente não seja um cemi- tério sombrio. Ou, a haver algumas sepulturas, que sobre elas consigamos depositar uma coroa de flores, sem pesar.

Uma vida desinspirada

A falta de inspiração é algo que me tem acontecido. Devo confessar que tenho dado por mim, não raras vezes, a ponderar seriamente em abandonar a escrita. Por consequência, teria que abandonar o trabalho, as redes sociais, a vida social e, enfim, num resumo, tornar-me eremita. Mais ou menos por esta ordem. Enquanto escrevo estas que podem ser as minhas últimas linhas de sempre (não há muita rede nas cavernas), ouço Jeff Buckley. Pode não ser uma banda sonora alegre. Mas é boa. O que me parecem atributos a ter em conta por quem está neste barco - triste, porém, nunca descuidando a qualidade. A falta de inspiração tem reflexos claros no resto da existência - tudo sabe a pouco, parece que falta sempre alguma coisa; o tempo passa com um vagar irritante. É mais difícil estar vivo, de forma produtiva, quando não vislumbramos um rasgo de novidade no horizonte. Ainda não estou mesmo decidida. Esta poderá não ser a minha despedida. Tirem essa cara de lamentação, vá! Sempre imaginei a minha retirada para os Himalaias mais teatral, sabem? Não assim, uma coisa meio apagada e sem glamour. Acho que tudo o que queria dizer, em boa verdade, é que é OK termos dias sem arco-íris e purpurinas. Sem fogo-de-artifício. Um dia em que, anormalmente, não tivemos que salvar o mundo, e pudemos ficar no sofá, a preguiçar. Os dias só mais ou menos farão, com certeza, dar valor aos óptimos. Mas... Creio que é suposto valorizar os chamados dias normais. Se calhar, analisando de forma mais profunda, é mais ajuizado valorizar todos os dias - maus, normais ou óptimos. Porque é sinal que tivemos direito a mais um dia. E quem tem mais dias, estatisticamente, vive mais. Pode não parecer grande coisa, quando não vemos um grande propósito. Mas, a acumulação de dias dá-nos a dádiva do futuro. E pode vir a ser maravilhoso. Espio pelo canto do olho a mala já começada para rumar às montanhas. Será que as grutas modernas têm aquecimento central? É melhor levar uma mantinha. Já não me parece tão boa ideia como no início destas linhas...Lá é longe. Tem neve. É grande. Tudo alto. Nem conheço lá ninguém! Haverá bonitas cavidades rochosas disponíveis para alugar antes em Montesinho? E se optar por uma ilha tropical? Poderei conviver melhor com os mosquitos do que com certas pessoas? Bem...É melhor uma pesquisa mais aprofundada antes de decisões tão radicais. A vida é, afinal de contas, uma questão de perspetiva. Pode ser que amanhã me sinta mais inspirada. Aliás, já me sinto mais inspirada, na verdade. É que, assim, sem dar por conta, estamos no fim desta crónica. Até uma próxima, caros leitores. Vou ali tirar a manta da mala de viagem.

A evolução do consumo de álcool por causa dos males de amor

Superar um desgosto de amor nem sempre é uma tarefa fácil. O fim pode ser difícil de digerir. Talvez porque não queríamos que tivesse sido assim. Talvez porque ficámos descontentes com a forma como tudo se processou. Talvez porque ficámos tão chateados que queríamos ser um polvo, para poder dar oito socos de cada vez ao agora ex. Voltando à síndrome do estômago amoroso sensível, para ajudar a desfazer todos os nós na barriga, o ser humano inventou o álcool. Uma arte que se foi aprimorando ao longo dos milénios. E assim fica explicada a variedade de bebidas capazes de nos deixar ébrios que temos hoje à disposição. Se, por um lado, temos uma carta de pinga jeitosa, agora temos também a internet. Algo que quando os nossos antepassados se meteram na destilaria não poderiam imaginar que iria revolucionar o mundo das comunicações. E aqui está uma combinação que me deixa nauseada só de pensar. Um bêbedo meio apaixonado ou em recuperação tende a ter imensas (demasiadas?) coisas a dizer ao outro. A fase de adaptação pode ser tumultuada. Inventaram o vinho antes da escrita (faz sentido). Por isso, porventura houve um momento da História em que a única maneira de desabafar os males embriagados seria encontrar o visado ou pintar uma parede. Avancemos, e poderíamos mandar cartas, com a letra toda tremida. Quando a missiva chegasse, até já a ressaca tinha passado. Mais tarde, quiçá, ligavam para o telefone fixo. A seguir, o pager. Telemóveis, com mensagens escritas. Ou toques na madrugada, para os mais forretas. E agora, com o raio dos smartphones e os dados móveis podemos humilhar-nos em qualquer lado, num instante, enquanto emborcamos o equivalente a drenar o Oceano Pacífico. Somos agora sofredores por amor mais perigosos, porque temos mais destreza e, obviamente, mais recursos. Mas o que muita gentinha não dava para ser possível possível malhar numa garrafa de uísque como em cereal maduro, só a ostentar um semblante introspectivo. Em vez disso, provavelmente acaba é a ostentar um olhar vidrado, a mirar um ecrã, enquanto digita uma mensagem ou grava um áudio em voz arrastada que começa com “só acho engraçado que...”.

A vida é dar e receber, para repôr a prateleira

Se a vida fosse uma prateleira de onde todos só tiramos, sem haver repositores, ra- pidamente se esgotariam os recursos disponíveis. Seria, talvez na óptica de muitos, o ideal. Não uma vida gasta de recursos, porque isso era uma mera consequência na qual nem tinham pensado, mas poder só tirar. E tirar, tirar, tirar. Sem dar nada em troca. Como naquelas barraquinhas de troca de livros, em que o convite é para levar um e deixar outro no seu lugar. Sempre desconfiei que o rácio entre quem tira e deixa não é o mais saudável. E só vão ficando livros porque, em boa verdade, os que gostam de ler também não abundam. Ou deixam um livro do qual nem gostam nada, os despojos do que receberam certa vez nos anos. Na vida é mais ou menos igual, só vai ficando alguma coisa porque muitos não sabem do que andam à procura. Então pode acontecer que deixem só porque estão indecisos sobre se querem ou não. E nesse entretanto, provavelmente, outro pegou. E é mais ou menos quando vamos às compras com fome - só queremos levar, nem interessa bem o quê. Estaremos esfomeados de vida? Não creio. Apenas temos ânsias de ter - experiências, coisas, pessoas. Tudo a orbitar em torno das nossas cabeças gigantes, sem realmente saborear. Aquilo que a vida nos dá pode ser facilmente medido com a pergunta - o que é que isto me acrescentou? Isto é, sou agora melhor pessoa? Estou mais sábio, mais maduro? Estou melhor preparado para os desafios futuros? E podemos ver o reverso, o que damos - o que é que eu acrescento ao outro? Ajudei alguém a ser melhor pessoa? Tornei alguém mais sábio, mais maduro? Preparei alguém para os desafios futuros? Constato, cada vez mais, que apenas se procura uma vida vazia. Um desenrasque, com o único propósito de ir respirando e, bem, o resto logo vemos. O consumo imediato, sem estar predisposto a viver, de verdade. E assim se esgotam recursos, se não temos nada para dar, como se fôssemos uma laranja seca - esgotamos experiências, coisas, pessoas. E ficamos outra vez (e cada vez mais sozinhos). “Mas eu não me importo de ficar so- zinho!”. Não, claro que não, até porque, claramente, nem toda a gente gosta da vida da mesma maneira. Refiro-me “sozinho”, sem experiências, coisas ou pessoas que acrescentem. É nesse momento que, olhando para a frente, damos de caras com uma prateleira vazia, onde já não resta mais nada para tirar.

“Palavras que rimam resultam sempre”

"Palavras que rimam resultam sempre”. A frase não é minha, como conseguem perceber pelas aspas. Mas é um conselho sábio, lá isso é. A rima conquista, é uma verdade, porque nos fala ao coração. E nota-se que perdemos algum tempo no dicionário. Ainda que a poesia nunca tenha sido a minha cena na escrita (porque exige uma sensibilidade que eu, claramente, não possuo), gosto dela e de palavras que rimam. E gosto mesmo quando não rimam. Gosto de trava-línguas e lengalengas. Gosto de ditados populares e de slogans. Gosto, em resumo, da palavra. Misturada, triturada, amassada, cozida, assada, frita, com arroz ou só uma saladinha verde. Usando palavras repisadas por aí - “um gesto vale mais do que mil palavras”. Será? É capaz uma acção de apagar mil palavras? Isto é um contra-senso, quando firmamos palavras em papéis, para tornar a imortalizar. E onde fica o “palavra de honra”? Ainda que tudo o que acabei de descrever seja um acto. Como é, afinal? Ficamos com as palavras e esquecemos os actos? Ou ligamos só ao que é feito e nunca ao que é dito? É pena que ninguém tenha feito - ainda - um manual. Assim saberíamos quando deveríamos falar ou quando deveríamos fazer. Este plano tem buracos: algumas coisas não se podem fazer sem se explicar e outras fazem-se mas não se explicam. Mas eu cá não gosto do que não se explica. Por mim, o ideal seria, e até já vos disse, que a vida tivesse legendas. Um acompanhamento feito por palavras que seja capaz de entender. Se eu escrevesse poesia, todas as minhas palavras seriam clichês. Onde o “amor” rima com “calor” ou “dor” ou “ardor”. E “paixão” com “atenção”. Por extenso, não tenho limites. Gosto, afinal, da palavra solta. E gosto que me falem a cantar, com métrica e léxico rico. Acima de tudo, gosto que me falem com detalhe. Tudo explicadinho, como numa receita culinária, não gostasse eu tanto da palavra cozinhada. Afinal, se calhar o que o mundo precisa, em geral, é que nos digam rimas por- menorizadas e que não tenham atitudes que nos façam mal. Se assim fosse, viveríamos um eterno poema. Com rima ou sem rima.

A vida amorosa é como o corredor dos iogurtes do supermercado

E ali estava eu: tão perdida no corredor dos iogurtes como na vida, em geral. O costume. É aqui que começa a nossa viagem - num espaço ladeado por arcas de refrigeração. Quase poético, eu sei. Onde nos pode levar? Talvez, e se formos em linha recta, à secção dos frescos, no máximo. Não criem grandes expectativas. Expectativas normais, diria, levava eu, enquanto puxava o cestinho das compras. Queria iogurtes de coco. São os meus preferidos de todos. Parecia tão fácil. Acreditem ou não, não foi. Até havia o sabor pretendido, mas sem gordura, ou de soja, ou sem açúcar ou com misturas. E eu naquele momento estava capaz de matar por algo só normal, entendem? Descobri que existem mais iogurtes do que aqueles que seriam necessários. Como de abóbora e laranja. Eram precisos? O Marketing dirá que sim. Eu não paguei para saber. Já bufava eu como uma chaleira a ferver ao lume quando encontrei - benza-os Deus! - iogurtes normais de coco. Mas... (há sempre um) vinham num pack com mais seis, emparelhados, de limão, framboesa e banana. Destes últimos nem sequer gosto. Se comer, é por frete. Os outros, nem nunca provei. Por isso vou manter-me céptica-normal até os degustar. Reportarei resultados. Nesta senda, ocorreu- -me isto - a nossa vida amorosa é como o corredor dos iogurtes do supermercado. “Tudo o que vemos exposto tem prazo de validade?”, pergunta- ram-me. Pode ser, mas não é por aí que vamos. Tantas opções, algumas mais ou menos duvidosas, pelas quais podemos enveredar, se quisermos. Uma busca incessante, no meio de tanta variedade. E acabamos sempre por escolher. Tanta vez teria sido melhor cortar os lacticínios da alimentação. Ou optar pelo vegan. Só que, escolhemos. E não serei a desbravadora, ao levar para casa uma catrefada sem saber se estou capaz de fazer todo o conteúdo do pack. Só que havia ali qualquer coisa que fazia o meu âmago pipilar - o raio dos iogurtes de coco, pelos quais estava a salivar. Não me julguem. Quem nunca? Foi assim que acabei com oito iogurtes em casa, sendo que gosto apenas, garantidamente, de dois. Meia dúzia foram por arrasto, sem saber o que reservam ao meu palato, que é muito refinado e habituado a amarguras. Se não gostar, posso sempre atirar ao lixo, renunciar. Não assinei nenhum papel, se é que me entendem. Ou, em boa verdade, é preguiça e pressa. Deveria, sim, ter esperado pelo pack de iogurtes perfeito, aquele que me enchesse as medidas, que fizesse o pleno. Enfim, agora já está. Porque, vejam se me en- tendem, ali estava eu: tão perdida no corredor dos iogurtes como na vida, em geral. O costume.

Mentiras, chico-espertismo e gatos gulosos

A mãe comprou um belo naco de vitela para assar no forno. Muito tenrinha, garantiram no talho. Estava destinado a acompanhar com batatas e arroz, compondo a mesa do almoço de domingo. O gato, ao ver tamanho petisco - tenrinho, tenrinho - imaginou que se desse uma dentada do lado mais junto à parede ninguém veria. A ração é boa... mas...não chega. Nunca nada chega quando a tentação é posta ali, numa banca expos- ta. Plot-twist - foi apanhado. À partida, somos mais inteligentes do que os outros. Há uma vozinha que diz “não achas que ela pode descon- fiar? “. Mas, do lado oposto, um vozeirão palpita que, tal- vez com sorte, o outro tinha acordado meio estúpido hoje. E por isso, com essa tal sorte, pode ser que passe e que nos vamos safando. É um princípio comum - ou denota falta do mesmo. Criar novelos, enredos. Ir tirando o proveito que acharmos con- veniente. As mentiras, dizem, criam hábitos. Fica o costume de oprimir a verdade. Ou de lhe dar outros contornos, mais agradáveis. Omitir, é essa a palavra. E omitir é algo que até tem o seu quê de aceitação social. Afinal, ninguém precisa de saber tudo. Até causa desgaste, tanto conhecimento desnecessário. E nas mentiras podemos ser como quisermos. Vamo- -nos enganando a nós e aos outros. Quem sabe o que hoje é mentira amanhã seja ver- dade? A esperança é a última a morrer, toda a gente sabe. Não é a mentira. E a culpa, essa, morre solteira. Será que alguém se sente culpado por enganar os ou- tros? Bem, se sim, demons- tra arrependimento. Já conta alguma coisita para o saldo final. Sabem, naquele em que vão decidir se vamos arder no Inferno ou ir a grandes festas no Céu. O que ninguém gosta é de se sentir enganado. Traído. Mesmo que não sejamos os seres mais íntegros a pisar a Terra, achamos sempre que não nos vai calhar. Nunca entendi a necessidade de enganar os outros. Podemos, simplesmente, ignorar esses outros que não são dignos das nossas verdades. E a vida segue. Mas talvez sejam esses mesmos que temos vontade de enganar. Por não serem assim tão especiais. Ou tão inteligentes. Achamos nós. Só que, com o tempo, fica esba- tida a importância e o que é alguém importante. Há por aí tanta gente que num instante se encontra alguém melhor. Ou, pelo menos, que não seja pior. Todos somos vítimas, de alguma forma, da vida. A vida molda-nos, com todas as tragédias e acontecimentos que experienciamos. Uma coisa é certa - ninguém sai dela sem mácula. Nesse dia, o gato foi corrido à lei do grito da cozinha. O chinelo falhou por pouco o alvo. De barriga cheia, talvez ache que valeu a pena. Quando tiver fome e ouvir um “agora, espera, seu gato guloso”, ou lhe faltar quem lhe coce as orelhas em sinal de desagrado, talvez lhe parece diferente. Ainda houve vitela que che- gue para o almoço, porque já foi comprada a mais, para so- brar. Como a paciência, faze- mos sempre por ir sobrando. Moral da estória? Da próxi- ma vez, o gato vai estar debai- xo de olho. Porque a confiança é de vidro, ainda mais quando há dentes e garras à mistura. A artimanha vai ter que ser maior. Até que, virá o dia, em que a carne vai estar tão protegida que não há forma de ludibriar. Afinal, por cada acto de chico-espertismo há sem- pre uma mente a ser aguçada. E, um dia, aprende-se a deixar de ser tenrinho, por mais que o gato pareça inofensivo e até fofo enquanto se espreguiça nos dias de sol.

O beijo - mas agora a sério

Há uns tempos, se estão recordados - claro que estão, eu sei, seus fofos! - falei-vos sobre beijos.

Percebo que, devido a alguma nuvem cor-de-rosa, doença ou acidente grave que tenha tido à época, adoptei uma postura muito romântica. E, sobretudo, muito romantizada (vómitos). Peço desculpa. Do fundo do meu coração, perdoem esta pobre, sofrida e incauta cronista (lágrimas rolam-me pelo rosto). Mereciam mais to- dos aqueles que me acompanham na esperança da abordagem mordaz do costume.

Quero agora dar-vos a verdade. Pelo menos, aquela da qual eu sou possuidora. Vale o que vale. E vale mais a intenção.

Voltei aos meus primórdios, de quando comecei a escrever estas maluqueiras. E isso consistia muito em fazer perguntas a pessoas. Vai daí, questionei vários amigos e amigas sobre más experiências beijoqueiras. Não fiquei satisfeita com as respostas. Portanto, estou agora em crer que maus beijos são tema tabu.

Fruto das minhas pesquisas, acredito que maus beijos são como fantasmas - há quem jure que existem (como eu, já la vamos), que eventual- mente, já teve algum contacto, mas não tem provas cabais para convencer a classe. E a esmagadora maioria da população não tem dúvidas de que não há tal coisa. Até goza com essa possibilidade (para-normal ou normal? Decidam por mim, sou Balança).

“Ah, não existem maus beijos, porque tudo depende do sentimento ou da química entre as pessoas”. Deixem cair a máscara, seus Valentins de trazer por casa! A conversa aqui é sobre a técnica. Todos sabem, em teoria, o que fazer. Mas há formas de pôr em prática melhores do que outras.

Não tenho vergonha de admitir que já tive maus beijos. “Tânia, e o que é um mau beijo?”, consigo ouvir-vos perguntar. Ora bem, são os beijos que defraudam os vossos requisitos para que ele seja prazeroso - nenhuma/ pouca/muita língua? check-up a todos os órgãos internos incluído? muita saliva? bateu dente no dente? pareciam um peixe daqueles limpa-vidro, sem expressão e sem vontade, só a abrir e a fechar a boca no aquário? Estão a perceber, não estão?

O que mais me intriga são as pessoas que dão beijos na boca, com menu completo, com os olhos abertos. Em conjunto, cheguei à conclusão que, principalmente quando se tratam de primeiras interações bocais, tendemos a estar preocupados ou ansiosos para perceber o que se está a passar com o parceiro. É aí que abrimos a pontinha de um olho, só para ter a certeza que está a ser ao nível do incrível. E não há nada mais assustador do que encontrar dois olhões abertos, a fitar a ponta dos narizes e todo o acontecimento, de cima. De repente, vai-se o fulgor e é como se estivéssemos a fazer reanimação a uma vítima de afoga- mento (que ficam sempre de olhos abertos). Sinto ali uma desconfiança - terá medo que lhe palme a carteira? E os olhos abertos a fixar um ponto por cima do ombro? Deixam-nos confusos, como aos donos de gatos, quando os bichanos atentam num ponto na parede onde não há...nada.

É estranho. E, talvez por ser tão exigente...Bem... Essa fica para outro dia.

Se calhar o amor nem existe

Ninguém gosta de histórias de amor perfeitas. Ficaram juntos, no mínimo, mil anos, tiveram um rebanho de filhos e netos, ele nunca olhou para o rabo da vizinha, ela sempre lhe foi devota, morreram à mesma hora para que nenhum penasse, fim. O que vem a ser isto? Não. Isto não serve. Somos sempre a favor das histórias de amor impossíveis. Das que têm tudo para dar errado, daquelas de que as odds fazem pouco. Essas, sim, são do caraças. O normal não serve no amor. Não (abano a cabeça, com veemência). Os que têm tudo contra são os que merecem ficar juntos. Raramente ficam, só existem fugazes e furtivos momentos de encontro. Mas que fazem valer uma vida inteira. Como no filme A Cidade dos Anjos. Um amor, à partida, inconcebível, que depois até dá, e um plot twist que acaba com ela atropelada por um camião no dia seguinte a ele ter deixado de ser um anjo e de terem passado uma noite inarrável juntos (peço desculpa por eventuais spoilers, mas se nunca viram o filme não vivem neste mundo). Certa vez escrevi que o amor é diretamente proporcional à simplicidade e à naturalidade com que o expressamos. Continuo a acreditar que é verdade. Acrescento agora, após franca reflexão, que, muitas vezes, é inversamente proporcional às adversidades. O que, feitas as contas, e pese embora a minha fraca matemática, é capaz de o resultado ser um berbicacho jeitoso. Porque o que não podemos ter encerra sempre em si um fascínio absurdo. Guarda todos os “e se” que magicamos, de forma quase obscena, na nossa cabeça. Imaginando, estupidamente sem motivos, que está reservado O DIA em que os astros se vão alinhar e tudo vai fazer sentido, fluir como deve de ser. Voltando ao exemplo dos filmes, estes amores impossíveis são sempre protagonizados por dois personagens de carácter extremamente forte e vincado. Sempre mais ou menos acertados com a vida em geral, tirando, claro, no campo sentimental. Isso vai confuso ou inexistente. Por vezes, até há um deles que tem uma relação, que, por norma, tem ali um defeito qualquer, que a torna meia rançosa. Isto para que não sintamos empatia pelo terceiro elemento, que, a correr bem, vai levar em determinada altura uma guia de marcha. E, limadas as arestas, afinal, nem são assim tão diferentes e chegam à conclusão a que todos já tínhamos chegado mal trocaram o primeiro olhar - foram feitos um para o outro, porra! Às vezes, uma das partes do casal até é dos maus. Está ligado ao mundo do crime, parece ser frio e sem escrúpulos. Só para que depois nos seja cuspido na cara que o amor tudo pode, tudo muda e tudo suporta. E levarmos com uma dose industrial de altruísmo qualquer. Creio que seja assim na ficção porque, na realidade, isto é uma mentira. Tende piedade de nós, que acreditamos no amor. O peso da vida vai sempre provar-nos que o amor só existe nas telas, nas linhas dos artistas, nas letras dos poetas. Se calhar, nem existe! O mundo não está para brincadeiras, é esta a verdade impiedosa. E, tendemos a escolher o fácil, o confortável, o exequível. Porque, no final das contas, somo actores da nossa própria vida. E, lamento, não costumamos ter ao dispor um argumento digno de um Oscar.