Tânia Rei

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As nossas lembranças

A minha primeira memória nítida tem 25 anos. A minha mãe a olhar para mim, eu com quatro anos, acabada de chegar do cabeleireiro com o cabelo, na altura pêlo de rato meio loiro, cortado à tigela. Ela à porta de casa, num misto de expressão choque-normal, perguntou: “O que é que te fizeram, filha?”. E eu, que até então estava radiante a olhar-me pelo espelho do retrovisor do nosso carro branco (na altura não fazia mal não ter cadeirinhas e ir no lugar do pendura), enquanto ouvia meu pai, que me tinha levado a cortar o cabelo, a dizer que estava muito bem, chorei. “Estou feia, mãe?”. E toda a minha alegria se transformou num pranto, suponho que para deleite da família, que me deve ter explicado, tal como se explica uma criança de quatro anos, que não faz mal porque o cabelo volta a crescer. Tenho fotografias com o famoso corte de cabelo, em que apareço a sorrir, bastante feliz. Curiosamente, não me lembro do dia desse retrato ao pé das roseiras, mas lembro-me do dia em que cortei o cabelo. Até de estar sentada na cadeira, com aquela toalha enorme à minha volta, e de ver o meu pai pelo espelho, a dizer que podia cortar “mais um bocadinho”. Hoje, 25 anos mais tarde e vários traumas com cabelos curtos depois, uso o cabelo por cima do ombro, e gosto. Não é à tigela, mas é bastante curto. Deduzo que seja então verdade que o tempo é relativo e que cura tudo.

O tempo apaga também algumas pessoas, que em algum momento fizeram parte das nossas vidas. Devemos apagar algumas por falta de espaço de armazenamento, porque não nos fazem grande falta ou não nos foram particularmente próximas. De outras, simplesmente nos fomos afastando, muitas vezes sem uma zanga pelo meio ou sequer razão óbvia. E vamos esquecendo detalhes que costumávamos saber de cor, porque ficam fora de mão do uso diário das nossas faculdades. Vão ficando cada vez mais distantes, cobertas de nevoeiro. Num sábado à noite fazia-se uma espécie de reflexão sobre pessoas assim, que tinham feito parte do crescimento, mas que algumas já não figuravam. Alguns deixaram mesmo de falar, apesar de continuarem a cruzar, às vezes, as mesmas ruas. Não se sente mágoa ou ressentimento. Cada um ficou no lugar onde não fazia mal ficar. Todos podemos fazer este exercício, dos colegas da primária, dos amores do secundário, dos amigos em comum, gandas malucos, que não fazemos ideia de onde andarão, apesar de termos passado momentos que achávamos que nos iam unir pela vida fora. De outros, nem do nome nos lembramos bem, e temos que nos recorrer dos amigos que ficam, e que têm mais espaço de armazenamento. Podemos até sentir uma certa nostalgia, uma vontade súbita de retomar contacto. Penso que raramente, ou nunca, o faremos. E muitas vezes por um motivo tão simples e racional como saber que não vamos encontrar essas pessoas no mesmo comprimento de onda, nem nós estamos onde todos estávamos quando fazíamos parte do mesmo círculo.

É que as relações, todas elas, parecem ser circunstanciais. Disseram-me isto, mais do que uma vez. Não quis crer. Até que comecei a ser mais realista. Ainda assim, essas circunstâncias, às vezes, também dependem de nós.

Almoços de domingo

Ao domingo custa-me, genuinamente, trabalhar. Ter que sair, estar longe de casa. Já tive esta conversa muitas vezes. Uma delas, precisamente, antes das nove da manhã de um domingo, enquanto abastecia o carro e partilhava a dor de estar a trabalhar com outra pessoa que estava na mesma posição. É difícil porque, para a maioria, é dia de estar com a família, de almoçarem todos juntos. E eu não gosto de falhar o almoço de domingo.

Desde miúda que estou habituada a que o almoço de domingo seja reforçado, especial, com direito a sobremesa e a bebidas com gás. É assim, desde sempre, onde muitas vezes podia escolher a ementa, ou ouvir as sábias sugestões dessa chef famosa que muitos poderão conhecer como Maria Fernanda, mas a quem eu chamo simplesmente mamã.

Recentemente, num domingo destes de trabalho, fui surpreendida com uma espécie de piquenique ao ar livre, oferecido por pessoas muito simpáticas, a duas horas e tal de viagem casa. Foi muito agradável, mas não se comparou às favas com chouriço que pedi no domingo seguinte, sinónimo de folga. Ora, neste último domingo ao serviço, mas com tempo para o almoço de domingo, ainda que fora do meu restaurante particular preferido, resolvi meter mãos à obra, –que é como quem diz, à cozinha – com direito a escolher o menu, que seria picanha e os seus devidos acompanhamentos. Mas, infortunadamente, não acautelei o almoço de domingo a tempo, o que percebi que é uma coisa que toda a gente faz, à minha excepção. Percorri todos os sítios disponíveis, e não encontrei a chicha que queria. “Tivemos hoje de manhã, mas já acabou. Amanhã é ferido. Só voltamos a ter terça-feira”. Como pude ser tão ingénua? É claro que mais pessoas acautelam um almoço de domingo especial, para a família. Terei, acaso, pensado quer era a única? Falhei na elaboração de um verdadeiro almoço de domingo, no caso para duas pessoas e dois gatos. Insatisfeitos, e cada vez com mais fome, acabámos por ter picanha para o almoço de domingo, com direito a salada temperada com vinagre caseiro de vinho, queijo e doce e abóbora e uma deliciosa tarte de caramelo e limão para o grande final. Tudo num restaurante, é certo, mas foi um almoço de domingo como deve ser. Os gatos comeram frango cozido. Nada mau.

É ao pensar nestes pequenos hábitos que me apercebo o quão grandes são. Sim, o ser humano é um bichinho de hábitos. E, entre eles, lá está o almoço de domingo, ao qual é doloroso falhar. Curiosamente, só percebemos a importância destes pequenos rituais quando, por algum motivo, não estamos lá. Às vezes algo que parece tão banal é, afinal, algo essencial, ainda que não o soubéssemos. Acontece o mesmo pessoas ou lugares. Damo-nos ao luxo de acharmos que não tem importância, desvalorizamos. Puxamos simplesmente para a frente, entre o comodismo e a mera resignação. Até que um dia, não estamos, alguém deixou de estar, ficou para uma próxima, que pode muito bem nunca acontecer. Sim, enganem-se a vocês mesmo, e digam que não tem importância. Depois, arrependam-se o resto da vida por essas vezes.

Estou quase lá

Está na altura de começar a enfrentar os factos – dentro de alguns meses vou fazer 30 anos. Vou deixar os tenros vintes, para entrar numa nova década. Pode não parecer nada significativo, e se calhar não é.

Mas a verdade é que no espaço de mais ou menos 15 anos, vejo-me a anos luz do meu “eu” mais jovem. Com uns 15 anos, as pessoas de 30 pareciam extremamente fixes. Era onde estava a malta com mais pinta, super decidida e super independente, com empregos, obrigações, e horas livres só ao fim-de-semana. Eram adultos, e nós não. Agora, os de 30 estão na minha faixa etária, e, pergunto-me, se os adolescentes encaram os trintões como adultos, como antes, ou em que patamar estamos.

Já é mais difícil fazer directas. Aliás, não me consigo lembrar da última vez que fiz uma. Ademais, não vejo nenhuma necessidade de tamanha loucura. Tornei-me nesta pessoa que precisa, de verdade, de dormir. Mas custa menos levantar com poucas horas de sono. Acho que é o peso da responsabilidade a falar, na maioria das vezes, porque ninguém se levanta cedo sem uma boa razão. Pelo menos, eu não. Ou então há um rácio entre a idade e as horas de cabeça à almofada que vai diminuindo, como quando as crianças deixam de fazer sestas. Contudo, gosto de sestas.

Sinto que já não posso fazer coisas descabidas o tempo todo. Temos que pensar em agir como um adulto, apesar de não saber há quanto tempo entrei nesse mundo, e por isso às tantas já falhei este ponto. O que é certo é que cada vez mais pessoas me tratam por “senhora” e menos por “menina”.

Ainda é legítimo usar camisolas estampadas com frases engraçadas? Não sei, mas gostava de saber, porque gosto de frases engraçadas.

Começo a dar também importância a coisas que nunca pensei que fossem tão, passo a redundância, e à falta de melhor palavra, importantes. Como panos de cozinha – tenho gasto dinheiro que antes consideraria desperdiçado neste tipo de objectos. E sabem que mais? Foi bem empregue. Há ainda o fascinante mundo dos utensílios de cozinha. A que cheira o raio do detergente para a roupa? Na mesma divisão, as indispensáveis toalhitas que impedem a transferência de cor na lavagem na máquina. Dispensadores de sabonete líquido a condizer com o suporte da escova de dentes. Enfim, toda uma nova dimensão que se está a abrir.

Passar a roupa a ferro também começa a parecer algo necessário e não um detalhe. E o factor “roupa que não é preciso passar” começa a ter tido em conta na hora de comprar.

Sinto que as pessoas olham para os de trinta como alguém com quem já é permitido partilhar aflições da vida, como, claro está, dramas domésticos que envolvem toalhitas das cores. E outros dramas, que agora há maturidade para entender e comentar, como gente grande, de igual para igual.

A sociedade tem determinado que se é jovem até mais tarde e que se começa a ser velho mais tarde. Isso é bom, por um lado, mas por outro complica tudo. Na minha idade, os meus pais (e certamente os vossos, se estão na mesma idade) estavam casados há anos e com filhos. Poucos de nós fazem disso uma prioridade aos 30, e nascem menos bebés. Até porque somos “bebés” até mais tarde. Então, é como haja bebés para cuidar.

Eu não me sinto um bebé. Nem velha. Sinto-me com quase 30 anos. Seja lá o que isso for.

A estranheza das coisas

Às vezes o que é simples causa uma estranheza medonha. Outras vezes arranja-se maneira de dar um nó ao cérebros dos incautos simplistas com palavreado caro, e, quase sempre, desnecessário.
Por exemplo, há muito tempo que não me chamo Tânia Rei. Chamo-me Tânia Reis, por mais que eu teime (doida!) que o meu apelido só tem três letrinhas, sem ‘s’ no fim. Até já tive esta conversa caricata ao telefone: ‘Estô sim? Bom dia! Estô a falar com a sô dona Tânia Reis?’. Do outro lado, respondo, enfadada (porque era uma daquelas linhas onde têm o nosso nome à frente, porque somos clientes daquela marca, e aí começamos a ponderar porquê pagar um serviço que nem consegue ter alguém que saiba ler o meu nome no contrato): ‘Bom dia. Sim, mas é só Rei, sem ‘s’. ‘Do outro lado, novamente, nada convencido: ‘Bom dia sô dona Tânia Reisss. O meu nome é fulano de tal e estou a ligar...’. Bom, claramente ele pensou ‘Aqui está uma atrasada mental que nem o nome dela sabe, coitada. É algo que me chateia, ter que explicar como me chamo, quando há por aí nomes bem mais complexos, que me esforço por dizer e escrever bem. Mas o raio do ‘s’... Lá está sempre a perseguir-me.
Ora, adiante. No mundo do descomplica e complica, dei por mim a pensar que tinha que ir tirar um curso de culinária, mas antes disso um curso de ‘o que raio diz nesta receita?’. Dei por mim a olhar para aqueles livrinhos de sugestões para a cozinha, mas sem entender o que era suposto cozinhar. Um açúcar mascavado, umas folhas de gelatina (isto é complexo, acreditem, porque algumas marcas não dizem como devemos desfazer aquilo corretamente), ou umas essências em vagem, ainda entendo. Agora, o que vem a ser couve kale, tofu firme ou biovivos, que se diz que podem ser q.b? Na horta da minha mãe sempre houve couves, mas nenhuma dessa raça. Não sei ver se é tofu, quanto mais se está firme. Continuo sem saber o que vêm a ser biovivos (até porque dá a sensação que estamos a comer algo que não devemos, não é? Está demasiado vivo). E também não sei o que são canónigos, molhos que metem ‘k’ e ‘y’ no nome ou sementes que não imagino o que poderia sair dali se fossem plantadas. Conclusão, tenho cada vez mais dificuldade em fazer receitas novas baseadas numa ia ao supermercado, porque cada vez está mais complexo saber o que necessário comprar. Sinto-me um alquimista à volta de um caldeirão, uma poderosa feiticeira que vai correr os inimigos a biovivos até ao outro lado da fronteira.
Tenho a ideia de que é possível comer bem e saudável sem ter que gastar o abecedário todo ou falar alemão misturado com grego e latim. Não sei, para mim isto são tudo mariquices modernas às quais não cedo, mais não seja porque não consigo passar da fase das instruções.
Enfim, aqui estão duas situações que me deixam enervadíssima. Acabei de escrever com os nervos esfrangalhados, só de pensar que, possivelmente ainda hoje, alguém me vai acrescentar o ‘s’ no nome ou que vou perder tempo a pesquisar comida estranha.
Por isso, aqui fica o meu sábio conselho: Não compliquem o que é simples, mesmo que pareça demasiado simples. Não empolem o complicado. Às vezes o truque está só em trocar o ardiloso por uma solução terra a terra (é o que faço na cozinha, e resulta).

 

Olá. Tudo bem?

Olá. Tudo bem?

Já há muitos meses que não estava convosco. Meses. É muito tempo. Por exemplo, este ano ainda não tínhamos estado juntos. Há amizades que acabam por isso mesmo, porque há meses que não sabemos nada desses incautos amigos que deixam de dar notícias. E a nossa vidinha continua, sem que tenhamos muito tempo para perseguir o desaparecido. Agora com as redes sociais, sabemos que o tal que não diz nada continua a gozar de boa saúde, o que nos permite ignorar o facto de não nos falar com outra naturalidade e menos preocupação. Simplesmente, deduzimos (e bem, na maior parte das vezes) que deixamos de lhe nutrir interesse.

No meu caso, neste em específico, não foi o que aconteceu. Eu queria estar convosco, fiz alguns esforços, mas não consegui.

Há uns dias, falava do ‘síndrome da folha em branco. Jurei que nunca o tive. Mas, em reflexão, vejo que é mentira. Comecei a escrever crónicas em 2013. Já lá vão alguns anos. Cheguei a acumular várias publicações, online e em papel. E as coisas pareciam fáceis. Tinha sempre assuntos. Era como que se bastasse olhar para uma pedra no chão e visse logo ali brotar um tema super interessante. Agora já não sou assim. Em 2013 era mais nova e tinha mais tempo livre para observar os outros e a vida em geral. Agora acho que tenho menos amigos, o que logo à cabeça reduz as inspirações, porque tenho menos vidas para dissecar.

Há seis anos tinha menos peso e mais paciência. Paciência para pensar também. Agora gosto mais do mastigado, para poupar alguns minutos. Antes também me preocupava menos com um possível impacto das barbaridades que debitava - até porque a finalidade era, e continua a ser, entreter, e não mudar mentalidades.

Reparo que, tal como eu, a maioria anda sem tempo nem paciência. Até queriam falar, mas não têm assunto. E para abrir a boca, ou, neste caso, dar ao dedo no teclado, é preciso ter algo mesmo muito importante para dizer. Ou assim achamos. Se não for de vida ou morte, se não for gigantesco, ficamos calados, que poupamos uns minutos a todos. E esses minutos podem ser usados para algo tão importante como, por exemplo, ver as redes sociais para sabermos daqueles amigos com os quais não falamos há meses, por não termos nada de jeito para lhes dizermos.

Pergunto-me se a vida na internet é tão emocionante como a vida real. Se o que vemos e lemos é mesmo assim. Mesmo quando se partilha que se está num grande dilema, numa luta pelo bem sem precedentes, numa saga para salvar a nossa idoneidade. Se calhar, só queremos que nos passem a mão na cabeça e que nos digam ‘já passou’.

Por norma, só encontramos um chorrilho de comentários a dizer: ‘És grande! vais conseguir!’, ‘força! mantém-te como sempre foste!’, ‘És um exemplo, pá. Orgulho.’. Mas, se calhar, o que fazia falta era um ‘olá, tudo bem? vamos tomar um café’ mais amiúde. ‘Já há muitos meses que não falamos. Vamos viver na vida real mais próximos?’. Se calhar - e só se calhar - o que nos falta é mesmo viver mais tempo junto aos que gostamos e menos tempo no mundo apressado onde achámos que o virtual pode atenuar a falta reiterada da presença física.

Bicho papão e outros vilões

Este fim-de-semana fui a um concerto do Sebastião Antunes & Quadrilha. Além da ‘Cantiga da Burra’, que toda a gente sabe de cor, e de mais um punhado de músicas bem conhecidas, uma delas, que desconhecia, deixou-me particularmente pensativa. No refrão diz assim: ‘Ninguém fala do Homem do Saco/Ninguém espreita por baixo do colchão/Já ninguém acredita na Coca nem no Bicho Papão’. Ora, em primeira análise, é verdade. Os miúdos de hoje são muito menos crédulos. Com dois anos sabem mexer em tudo o que é aparelho electrónico, com três já sabem números e letras e começaram a falar inglês. Não resta muito tempo para ter 
medo do Bicho Papão, e, acredito, aos quatro até já conseguem articular uma resposta válida para nos convencer, a nós, adultos, de que todos esses seres não passam de mentiras, de rábulas. O Sebastião foi dizendo, na introdução da ‘Conto do Bicho Papão’, que este que dá nome à canção anda triste porque já ninguém acredita nele. E, instintivamente, imaginei uma figura enorme, grotesca e verde (sim, verde parece-me a cor de quem come tudo o que encontra), sentada no canto de uma gruta ou de um armário particularmente grande, a chorar virada para a parede porque, de repente, os meninos já não tremem quando, entre uma colher de sopa e outra, os pais chamam 
convictos o Bicho Papão para vir tomar conta daquele menino mal-comportado que não gosta de vegetais. Na letra surge uma hipotética solução para todo este drama, que traz o Bicho Papão em poltronas de psicólogos: ‘Ai seu pudesse inventar um jogo electrónico/Voltava a ser falado, voltava a assustar/Imaginem lá qual não era a sensação/ De uma consola com o jogo do regresso do Papão’. Não acredito que isso pudesse resolver o drama vivido pelos vilões de antigamente. Provavelmente, o Papão seria convertido numa espécie de tamagotchi dos tempos modernos, sem pingo de piedade por todos os gritos lançados, outrora, por inocentes crianças. A não ser, claro, que fosse de uso 
parental. E aí os progenitores poderiam dizer, na hora da sopa: ‘Ai não comes? Vou já abrir a app do Papão e dizer que há um menino nesta morada que está a precisar de um valente susto para começar a gostar de brócolos’. E o Papão ia anotando os pedidos, bem como o motivo da queixa, e ia visitando as famílias, uma a uma. Lembro-me de aprender, algures na universidade, que as crianças têm medos inatos – de serem comidas, abandonadas e do escuro. E por isso todos os contos para aquela faixa etária se baseiam nesta informação. Assim assegura-se a fórmula perfeita para toda e qualquer estória. Eu não acreditava no Bicho 
Papão. Fazia-me sentido que ele comesse crianças, porque são mais tenras, mas sempre achei que devia ser grande. E uma coisa grande vê-se bem. Por isso, como nunca o vi, pensava que eram uma moda lá de outros países longínquos. Já com o Homem do Saco era pior. É que na minha aldeia passava um senhor, que vivia de modo indigente, nunca cheguei a perceber porquê. Era o David, gostava de se meter com os miúdos por entre piscadelas de olho coniventes dos pais e andava com uma saca de serapilheira às costas. Ora bem, podia não caber lá uma criança...inteira pelo menos, achava eu. E, sabem que mais? Afinal a sopa não era assim tão ruim.

O que os animais têm para nos dizer

Vou contar-vos uma estória muito especial. Os protagonistas são o Sampaio (como o Jorge) e o Jeremias (o fora-da-lei, como a música de outro Jorge, que se assina Palma no fim).
São dois amigos incríveis. O Sampaio é mais velho alguns meses, e isso faz toda a diferença. Ele protege o Jeremias, trata dele, deixa de comer para satisfazer o mais novo, se assim for preciso. E, não raras vezes, o Sampaio faz de almofada ao Jeremias, antes de dormirem os dois profundamente por horas e horas sem fim.
O Sampaio parece que adivinha que vos quero falar deles. Saltou para o meu colo enquanto vos escrevia, com ar de supervisor, e ficou a pedir mimos, que obedecem a regras já pré-acordados - só ao pé das orelhas e da cabeça. Entretanto, ficou preso nos fios do rato do computador, e foi embora, desnorteado. Há-de voltar, ainda antes do final do texto.
Foi o Sampaio que trouxe o Jeremias para nossa casa. O Sampaio veio sozinho, porque a casa parecia um lugar mais acolhedor do que a rua. São dois gatos pretos, o Jeremias ainda bebé.
O Sampaio era ainda muito franzinote quando começou a entrar pela janela que apanhava aberta. Aproveitava quando ninguém estava a ver. Não se deixava agarrar, mas aceitava comida de bom grado. Demorou mais de um mês até que deixasse de ser bufanito e que deixasse de fugir de manhã pela mesma janela, depois de ter dormido uma boa noite de sono no meio da roupa suja. A paciência compensou. Vieram umas festinhas modestas, até que ganhássemos a confiança do desconfiado sem-abrigo.
Já éramos amigos e já o Sampaio tinha morada fixa quando o inesperado aconteceu. O Sampaio gostava muito de andar nos telhados, e às vezes envolvia-se em lutas feias, que perdia sempre. Aliás, ainda tem uma cicatriz no nariz desses tempos, que teima em não desaparecer, como que a lembrar o sucedido, tal e qual um aviso.
Veio uma manhã em que o Sampaio bateu na janela para ir à rua muito cedo. Fartou-se de miar, pedindo que o seguíssemos. Mas como iríamos caminhar com o gato no telhado? Vieram outros gatos, maiores do que o Sampaio. Mas naquele dia, ele não teve medo. Mesmo sem corpo suficiente para enxotar os intrusos, correu destemido em direcção ao perigo, todo eriçado. E ganhou.
Mais tarde, percebemos o que ele protegia e o que o enchia de coragem. Era um pequeno Jeremias, que se abeirou da mesma janela pela qual o Sampaio tinha entrado nas nossas vidas. O Sampaio empurrou o Jeremias com o nariz para a nova casa. Ele pareceu compreender, porque deixou de oferecer resistência a ser puxado para dentro.
O Sampaio, agora gato de estimação, quis abrigar um gato de rua. Outro gato indefeso que lhe merecia muita estima. O Sampaio tem feito as vezes de mãe, de pai, de irmão. E o pequeno cresce a olhos vistos, sempre sobre o olhar protector do mais velho, companheiro (quase) incansável de tropelias e brincadeiras.
O Sampaio é um gato. É um gato preto. O Jeremias também. Dois gatos de rua que, afinal, ensinam muito sobre a vida a todos os seres humanos.

Um Verão ‘lovely’

Eu sei que não parece, mas estamos quase no Verão. Mentira! Pelo calendário, já é Verão! Se calhar quando esta crónica vos chegar, estarão a lê-la debaixo de um tórrido sol. Se for esse o caso, esqueçam tudo o que eu disse até agora, porque então é definitivamente Verão.

A chuva teima em não deixar vir o calor e o céu azul. As trovoadas, dizem que são normais, para a época. As famosas tempestades do tempo quente. Mas foram em demasia. Até o biquíni me diz que não é Verão, que afinal não comecei a dieta a tempo, e que, por isso, se adiarmos isto mais um mês, não há muito prejuízo.

Mas eu tenho saudades do Verão. Não de um Verão qualquer. Dos de antigamente. Agora o Verão é sinónimo de muita gente, de turistas. Agora há turistas. Antes também os devia haver, só que eu não reparava neles. Agora passamos muito tempo a dizer ‘welcome’ e ‘lovely’ para os transeuntes, que usam chapéus largos e fazem muitas perguntas. É bom. Deixam-nos vir! - Welcome! Lovely!

Só que não é destes Verões que eu sinto falta. Em boa verdade, há alguns anos que não tenho aproveitado o Verão, e só gosto dele porque usamos menos roupa, o que me poupa tempo na hora de sair de casa.

Tenho saudades é dos Verões na minha aldeia. Três meses inteirinhos de um bafo abrasador – como o ditado, ‘nove meses de Inverno e três de inferno’.

Era na minha aldeia que estavam a minha família e os meus amigos. Estavam ali perto, e passávamos os dias juntos. E as noites. Primeiro, quando éramos mais pequenos, com os nossos pais, que iam ao café aproveitar a fresca. E nós íamos brincar, sem nem sequer nos importarmos com as horas e sem ninguém ter que se preocupar onde estávamos. É que estávamos sempre perto e sempre bem. Se não estivéssemos, ouvia-se chorar, e algum dos amigos mais velozes ia dar o alerta. Mas isso só acontecia se houvesse ossos à mostra. Fora isso, nada doía na altura das tropelias. Uma vez torci um pé e ficou inchado, depois de me ter atirado de umas escadas. Acho que foi o máximo que me aconteceu.

Mais tarde, começámos a reunir o grupo de forma autónoma. Já éramos nós a marcar os horários de saída, e os pais de chegada. Já tínhamos telemóveis, e mandávamos ‘toques’ quando saíamos de casa. Não é que tivéssemos o futuro da Humanidade para discutir, nem que das nossas reuniões resultasse a paz mundial. Mas a verdade é que era algo essencial para aproveitar o Verão. Era essencial que estivéssemos juntos, a deitar conversa fora. E ficam muitas histórias engraçadas. Como quando, certa vez, que vimos um clarão azul atrás do cemitério da aldeia, numa noite em que falávamos de espíritos. Achámos que era algum desses espíritos mais afoito. Afinal, foi só um problema na central eléctrica. Apanhámos cá uma miúfa!

Isto era à noite. Também passávamos os dias juntos, a fazer actividades na aldeia. E, apesar de andarmos sempre como carrapatos, o tempo nunca parecia demasiado para estar com os amigos. E éramos mais amigos, porque quem estava no estrangeiro vinha passar uma larga temporada.

Quando chegava a festa da aldeia, ali a meados de Agosto, já a coisa estava a acabar. E aproveita-se ao máximo aqueles três dias de folia. Isto mantém-se. E passámos o ano todo a fazer planos para a festa do ano seguinte. Porque tão poucos dias nunca dão para completar os planos do ano anterior.

Se pudesse voltar atrás no tempo, queria só mais um Verão assim. Uma temporada verdadeiramente ‘lovely’.

Saber acabar

Tudo tem um começo e um fim. Sempre ouvi dizer isto. Parece-me de domínio público que nada pode durar para eternamente. Eu uso mais aquele provérbio "não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe". Apesar das palavras feitas, ajuda a encarar algumas fases da vida. Como que, de repente, percebêssemos que sabemos de antemão o desfecho de tudo - se está mau, vai melhorar; se está bom demais, nada de criar hábito.

Claro que isto não é linear. Nem poderia ser. Contudo, a realidade é que a vida é feita de ciclos, e só convém não viciar os dados. E, mesmo que estejam viciados, que mal tem afinal? É como vermos uma estória repetir-se em frente aos nossos olhos, até chegar ao desfecho espectável. É uma situação de "win-win" – tiramos uma percentagem de proveito e sabemos que vai descambar.

Tão sábio como ter a arte de começar alguma coisa, de ter o engenho para pôr as rodas nos carris a rolar, é a arte de saber puxar o travão e de tirar a locomotiva da linha. Não falo de um descarrilamento, algo acidental ou atabalhoado. Estou a referir-me a algo totalmente deliberado.

Saber fechar a porta de determinados eventos, define, em grande medida, como vai ser a nossa relação com aquele caso dali para a frente. Não se pode, inocentemente, pensar que o que fazemos ou dizemos fica sem uma resposta por parte do meio envolvente. Onde sempre estão pessoas afectas.

Ora, quando andava no oitavo ano, mais coisa menos coisa, fui pedida em namoro por um rapaz que, na altura, eu achava muito fofo. Tínhamos uma "cena" sem maldade nenhuma, o que, visto 15 anos mais tarde consegue deixar saudade - a ausência de maldade nos sentimentos. Era uma sexta-feira, e deduzo que o pedido lhe tenha demorado, pelo menos, essa semana inteira a ganhar coragem. Ou é assim que gosto do imaginar. Era final de dia de aulas, e eu disse logo que sim. Nessa altura, costumava pedir aos rapazes um tempo para pensar, mas saiu-me logo "sim". No minuto seguinte, acho que estava algo arrependida, porque tinha a ideia pré-adolescente de que tudo era para sempre - ainda não conhecia toda a sabedoria popular toda. O problema era, pois, não saber se queria aquele namoro para sempre, e abdicar dos intervalos da escola com as amigas, e estar a todo o momento com a mesma pessoa. Era desta forma que eu pensava que se processava depois de dizer "sim". Devemos ter dado um chocho para selar o compromisso, para a seguir correr para o autocarro e ir para casa. É disto que me lembro.

Lembro-me também de andar angustiada no fim-de-semana inteiro, a pensar como poderia resolver aquele namoro que me parecia precipitado. Não gosto de conflitos, discussões, gritos ou dramas. Pelo que pensei ignorá-lo, somente, como mostra do meu descontentamento. Mas, tinha sido eu a dizer "sim", caramba. Mesmo com 12 ou 13 anos, pareceu-me infantil da minha parte. Então, escolhi encher-me da mesma coragem que ele também devia ter tido, para anunciar que queria terminar. Não me lembro bem como o disse ou onde, o que é certo é que ele nunca mais me falou. Por isso, não devo ter escolhido as palavras certas ou o momento adequado. Neste caso não soube começar nem acabar. Não soube ter o bom e esperar pelo mau. Talvez tenha sido um dos casos inversos do provérbio. Enfim, às vezes lembro-me deste episódio. Força-me a aceitar que, na vida, o sentido de oportunidade pode trabalhar-se e que é importante, de verdade, saber talhar os inícios e os finais.

 

O fim da estória

Na semana passada tive notícias da Becas.
A Becas é uma gata com padrão tartaruga, de olhos verdes, que eu ajudei a salvar. Tinha a bicha algum meio ano quando a minha vizinha do lado foi passar uns dias fora e a deixou sozinha em casa. Sem água e sem comida, já num desespero, era ver a gatinha na varanda, de boca aberta com a sede e a aproximar-se perigosamente do beiral do segundo andar, à procura de uma saída. Chamámos os bombeiros, mas ela assustou-se e foi-se empoleirar num reclame luminoso, onde não era seguro ir buscá-la. Passei uma madrugada de calor na minha janela, a tentar convencer a Becas a vir ter comigo. Mas ela tinha medo, coitadinha. No dia seguinte, lá se encheu de coragem e entrou dentro de um dos apartamentos, onde foi possível, finalmente, deitar-lhe a mão para a pôr em segurança. Bravo, Becas!
A Becas foi adoptada pelo casal do primeiro andar. Quando "fugia" e passeava pelo prédio, via-a muitas vezes. Ou me preparava emboscadas nas escadas, ou me acompanhava até à porta. Entrava como um foguete, e metia-se debaixo da cama. Brincava com o que lhe aparecia, até que era hora de a devolver aos donos, antes que ficassem preocupados. Quando ouvia ecoar nos corredores "Becas! Onde estás?", punha uma expressão de "está na hora de te deixar", e lá a conseguia convencer a terminar a visita. Acho que era a maneira dela demonstrar apreço por ter participado no seu salvamento.
Soube na semana passada que a gata Becas morreu de leucemia. Não sabia dela há três anos, apesar de me lembrar bem das cabriolas e da missão de salvamento, que mobilizou, numa determinada altura, toda a minha rua. Fiquei triste, mas pelo menos aliviada por saber que a curta vida que teve foi feliz e com carinho. Mesmo quando eu deixei de fazer parte da vida dela.
Esta era uma das raras estórias que me teria bastado saber o que já sabia. Por ser triste, provavelmente. Porque, de resto, gosto sempre de ver respondida a pergunta: "E depois, o que aconteceu?". Nos livros, filmes e séries de televisão, posso até compreender que haja um final, mas nunca aceitar. Se gosto das personagens, do enredo, do que se está a passar, preciso de saber mais. Para sempre, se possível! A certo ponto, parece que somos cuspidos da estória, e ficámos à margem de algo do qual já fizemos parte.
É estranho quando deixámos para trás uma estória. Até mesmo quando não gostamos dela. Fizemos parte de um caminho juntos, e, depois, numa qualquer encruzilhada, seguem-se caminhos opostos. De uma estória passam a ser duas, ou três, ou quatro. Mas já não estamos todos na mesma estória. Isso, devo admitir, deixa um amargo de boca. E agora, o que vamos fazer sem uma estória que já foi nossa mas onde já não estamos? A estória continua sem nós, e nós sem ela, sem saber muito bem o que fica por dizer ou saber. É estranho quando percebemos que há um curso que pode seguir sem nós, e que vai mesmo seguir, sem qualquer pudor e, muito menos, sem a nosso aval ou opinião.
Se fosse hoje,  antes de ter mudado de casa e de ter sido cuspida daquela estória, tinha chamado mais vezes a Becas para brincar debaixo da minha cama com as meias sujas e o que por lá encontrava. Porque essa foi uma estória da qual fiz parte e que me fez feliz.E há estórias que terminam para nunca mais voltar.