Tânia Rei

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Rotinas de um gato cor de laranja

Ao final da tarde, tenho reparado que há um gato cor de laranja que vai dormir nas escadas de uma casa desabitada, aqui em frente ao prédio. Esperto, depois de o sol ter aquecido durante todo o dia os degraus de cimento. Penso que não tem dono, e ser um gato abandonado deve ser muito stressante, porque, além do mais, os felinos são animais assustadiços. E na rua há perigos constantes. No caso do gato cor de laranja, acho que encontrou um local onde se sente realmente seguro. Em frente às escadas há um muro também de cimento, inteiro. Há um portão de acesso, que está aberto, mas cresceu muita vegetação que ninguém corta, como silvas. Fica tudo no caminho até chegar ao degrau preferido do bichano. Além disso, as escadas têm um corrimão no mesmo cimento, que o deixa invisível do passeio. Ou seja, é praticamente impossível aceder àquele trono improvisado sem ser detectado. Se calhar é por isso que se sente tão seguro. Porque avaliou todos os riscos antes de criar esta rotina de aproveitar os finais de tarde para dormir numa escada quente pelo sol. Ao mesmo tempo, um dos meus gatos veio miar-me junto às pernas, altivo, como sempre, para me lembrar que tinha fome. Também já esteve na rua, mas era muito pequenino quando foi recolhido, e por isso está habituado a ter comida, casa, carinho e muita margem para fazer asneiras. São rotinas completamente diferentes, e nenhuma estará necessariamente errada. Rotinas são hábitos, não é? Coisas que nos habituamos a fazer em loop, de forma quase mecânica, onde já sabemos como vai começar, o que vai acontecer a seguir e qual o desfecho. Basta falhar um dente desta roda para arruinar o dia. Atira-nos para fora da nossa zona de conforto. Criar hábitos não é mau, de todo. Faz parte da vida, parece-me. É também isso que nos permite, tal como o gato que dorme no degrau quente pelo sol, estar em alguns momentos mais tranquilos, sem estar em constante sobressalto. Ainda que o factor surpresa faça falta, para nos sacudir e colocar alerta, também é reconfortante poder planear a curto prazo. Muito curto. Tendemos muitas vezes, por outro lado, a criar hábitos menos saudáveis. Ficamos presos a algumas rotinas que nada auguram de bom. O ser humano é um animal de hábitos, como os gatos. Mas o que no início pode ser desafiante, num instante pode tornar-se desgastante. E ficamos presos porque achamos que não podemos nem sabemos fazer de outra maneira. É como aquela célebre frase que afirma que não podemos fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes. E nós bem sabemos que nada vai ser diferente. Só que teimamos em insistir. Resumindo numa expressão que adoro: “dar murros em ponta de faca”. Acho que é bastante descritiva. No fundo, as boas rotinas serão aquelas que facilitam o nosso dia-a-dia. As más são aquelas que nos fazem cair sempre no mesmo dia-a-dia. Acho que durante largo tempo irei ver o gato cor de laranja a dormir ao final da tarde no seu degrau preferido de cimento, quente pelo sol. Contudo, aposto que quando chegar o rigor do Inverno, ele vai arranjar outro sítio para as sestas, porque ali vai deixar de ser bom. Sejamos todos como o gato cor de laranja.

Ouvir a música e viver a vida

No meio de um restaurante, um grupo que não devia exceder os dez elementos (até porque isso tudo está proibido) almoçava e ria. De repente, passa um bolo com duas velas espetadas, vi eu da minha mesa. Um dos elementos fazia anos. Em poucos segundos, o grupo entoou o “parabéns a você” com vontade, e, para meu espanto, afinadinhos e com alguns bons cantores. Foi bonito de ouvir. Logicamente, como em todos os grupos de amigos, há sempre um ou dois engrançadinhos que cantam propositadamente fora de tempo e de forma estranha. É isto a vida, no fundo - tudo afinado, mas, de repente, há algo que estraga aquilo que, hipoteticamente, poderia ser a perfeição. Há quem defenda, certamente, que é impossível atingir a tal perfeição. Porque nunca nada é perfeito. Porque ninguém é perfeito. Eu cá acho que estão é a levar demasiado à risca a definição de “perfeição”. O problema, tenho chegado à conclusão, é que na vida é tudo circunstancial. Durante anos quis acreditar que não. Que era sempre possível adaptar, contornar o que seria mais fácil, mais óbvio. E viver aquilo que realmente nos faz felizes, dando chances ao que, por força das circunstâncias, acabamos por deixar passar. Parece que já ninguém luta contra as circunstâncias. Que, simplesmente, se fica rendido ao que está à frente do nosso nariz e se ignora todo o mundo à volta. Estamos a caminhar pelos trilhos da cobardia, do mais fácil e, muitas vezes, da hipocrisia. Batemos no peito, dizemos que somos frontais, boas pessoas. Mas, será? Em tempos de ghosting, hauting e benching, diria só que somos egoístas. Voltando à analogia com os cantores no restaurante, ninguém espera para ouvir a música até ao fim. “Ah, estão a cantar os parabéns. Sei de cor. “, e seguimos, sem sequer olhar para trás. Dizemos que vamos estar sempre lá, para o que for preciso. Será que vamos honrar? Se pedirem para nos descrevermos, diremos maravilhas de nós. Parecemos unicórnios - seres que não existem. Tão bons, com tantos feitos alcançados, sempre sofridos e à espera de poder dar o nosso melhor ao outro. É mentira. Estamos só à procura de validação e de bajulação. De uma massagem no ego. Até que deixa de dar adrenalina (o que passa muito rápido) e vamos à procura da próxima injeção, sem pensar no caos que criámos, qual elefante a andar numa loja de cristais. Afinal de contas, quem quer saber? Não é problema nosso, nunca prometemos nada. Nunca levámos a sério. Por toda a gente que deixa as canções a meio e anda sempre a saltar as faixas da playlist porque já conhece tudo, apreciei aquele momento dos parabéns afinadinhos, e dos amigos a fazer piadolas. E foi divertido. Mais pessoas aplaudiram o momento no final, endereçando felicidades ao senhor Adérito (o aniversariante). Foi bonito, também. E, lá no fundo, fiquei a pensar que a vida seria perfeita se deixasse de ser circunstancial, baça, previsível. E passasse a ser aquilo que nós quiséssemos, ao som da música que nós próprios escolhêssemos trautear.

Em quanto tempo chega a desilusão?

Quanto tempo demoramos a desiludir alguém? E a ficar desiludidos? Há algum tempo tabelado, para sabermos o que é normal? Para sabermos se ainda é muito cedo para ser considerada desilusão, ou se, por outro lado, ainda está dentro do expectável e estamos só a empolar as circunstâncias? São perguntas pertinentes, que tivermos em conta que, hoje em dia, tudo parece descartável. Até as relações interpessoais. É tudo à velocidade da luz, num antigo “vai ser bom, não foi?”. De repente, parece que tudo já aconteceu, porque havia algum prazo de validade invisível. E nem sempre nos apercebemos disso. Vivemos na poesia de Álvaro de Campos, num “sentir tudo de todas as maneiras”. Mas só se for nos próximos cinco minutos, porque depois tenho mais o que fazer. Ou já passou a vontade. Ou era só mesmo isto, obrigada. Ou, se calhar, nem era bem isto que eu idealizava, agora que tirei os tais cinco minutos para pensar sobre o assunto. Quanto tempo é preciso para saber que desiludimos alguém? Talvez nem nunca saibamos, porque isso requer que a outra parte tenha o tal tempo e, claro, a disposição para nos dizer. E, sem dons de adivinhação, poderemos ficar para sempre na ignorância. Em boa verdade, às tantas queremos lá saber disso! Num momento, estamos muito próximos. No momento seguinte, somos completos estranhos. Mesmo sem dar muita importância, o que é certo é que é difícil não sentir a tal pontada de desilusão. “Ah, afinal era só isto!”, num anticlímax extremamente desagradável. Parece-me que não há muito tempo para ficar, simplesmente. Para ser, fazer, sentir. Sem grandes preocupações. Há sempre mais para além do momento que vivemos no presente, numa ânsia de agarrar o futuro, que ainda se está a desenhar. Ou melhor, que estamos somente a rabiscar. Porque é difícil fazer uma obra-prima quando se está com pressa. No máximo, dá para safar. O ideal seria termos tempo, paciência e um sorriso no rosto para aqueles que escolhemos ter na nossa vida. Que escolhemos, sim. Porque, mesmo quando dizemos que foi tudo um mero acaso (talvez tenha sido, quem sabe?), tivemos sempre a opção de dizer “sim” ou “não”. De dar um passo em frente ou de virar as costas. Mesmo quando a opção era caminhar a passo firme para o abismo, a escolha foi, em última análise, pessoal. Mas, tudo tem dois lados. Todas as histórias, melhor dizendo, têm dois lados. E nem sempre no final do abismo temos um trampolim ou uns braços abertos para nos receber. Às vezes, temos somente rocha à nossa espera, tão dura e fria como seria de esperar. Contudo, em boa verdade, apenas julgamos os nossos próprios abismos, sem saber quais são os lugares negros por onde pisam os outros. A tendência é, logicamente, para olhar para o nosso umbigo, e lamentar tudo que não nos corre de feição. Quanto tempo demoramos a ficar desiludidos? E a desiludir alguém? Será o tempo de chegar ao final de um abismo? De perceber se há almofadas fofas ou se há apenas calhaus? Bem, se assim for, então o melhor é aproveitar a queda.

Uma história de amor

Um dos trabalhos jornalísticos que mais me marcou foi sobre um casal. E por bons motivos. Era Dia de São Valentim, e pedia-se uma reportagem cheia de amor. Foi precisamente o que encontrei, com aquele casal de idosos, juntos há tantos anos que nem consigo precisar. Anos multiplicados por décadas de coisas em conjunto. E ainda assim, não deixaram de segurar a mão um do outro enquanto partilhavam a história deles. E os olhos brilharam com as memórias. Ele subia a uma árvore, só para a poder ver passar na rua, de longe, porque os tempos eram outros. As famílias eram contra, e no dia em que noivaram, ninguém apareceu para comemorar. Ficaram só os dois, no local combinado. Ele teve que ir para o estrangeiro, saber de melhor vida, e ela aguentou os pilares da casa. Nunca sequer pestanejaram, porque era aquele amor que sabiam que nunca ia morrer. Com uma paciência de santo, e com bastante gosto, acrescentaria eu, deram beijinhos repenicados para a câmara, vezes sem conta. O truque, partilharam, é nunca ir dormir de costas voltadas, e dar, precisamente, um beijinho antes de fechar os olhos até ao dia seguinte. E depois tudo vai parecer melhor, ao acordar. É um caso de amor e de resiliência. Terminou com os dois a desejarem-me que, um dia, pudesse encontrar o mesmo. E agradeci, genuinamente, percebendo que lhes ganhei a simpatia, pois desejavam-me algo igual ao que de mais valioso tinham. No outro dia, fui almoçar com uma cara amiga. E o amor veio à baila. Falar de amor, quem nunca? Afinal, o amor faz parte da nossa vida, de tantas maneiras. E ocorreu-nos esta reflexão: nestes tempos modernos, da internet, da vida à velocidade da luz, que histórias de amor se vão contar daqui a algumas décadas? Será que ainda alguém vai querer ficar com a mesma pessoa para toda a vida, como os cisnes? “Começámos a falar nas redes sociais. Ele costumava pôr “adoro” nas minhas publicações. Depois, um dia, enviou-me uma mão a acenar e perguntou o que estava a fazer”. Ok, pode ser realístico, mas não tem a mesma pujança de subir a uma árvore só para ver passar, ao longe, a pessoa amada. “Gostava das fotografias que ela postava nas redes sociais. Parecia bonita, mas claro que sabia que tinha alguns filtros e poses à mistura. Mesmo assim, resolvi convidá-la para um café, num sítio bem público, para que ela não achasse que era um tarado, daqueles que enviam mensagens aleatórias a dizer “és linda” ou “desejo-te”, com smiles a mandar beijinhos. Ou nudes não solicitados”. Para quase todos nós, pelo menos numa determinada faixa etária, tudo isto será um lugar-comum. E a internet trouxe, de facto, tanta coisa boa, também às relações. Deixa-nos matar saudades, falar de tudo e de nada, combinar encontros futuros e trocar impressões. Mas o que é certo é que nunca nada vai superar aquilo que dizemos cara a cara, olhos nos olhos e, para os mais atrevidos, de mão dada e tudo. Porque afinal, o amor continua a ter que preencher um forte requisito em todas as gerações – o amor quer tocar, mexer e estar próximo. E isso, as redes sociais (ainda) não conseguem contornar.

Fazer nevar no inferno em pleno Agosto

Dou por mim sentada numa esplanada, como a maioria das pessoas por estes dias. A transpirar por tudo que é poro. E pensar que só queria fugir do sol abrasador transmontano. Resultou em cheio. Seria anormal nevar em pleno Agosto, é certo. Uma notícia que correria o mundo. Mas o calor faz- -nos suar e ficar pegajosos, o que não é nada confortável, até para os mais treinados, como é o meu caso. Afinal, são muitos anos a conviver com o ditado “nove meses de inverno e três de inferno”, usado de forma muito assertiva para descrever o ano meteorológico de Trás-os-Montes. Falando em inferno, talvez a culpa de todo este calor não seja das alterações climáticas ou, simplesmente, o cumprir da normalidade. Já sabemos que o calor faz falta a muita coisa, e que faz parte. É o mesmo com o frio e o assim-assim. Mas isto já é maldade. Aliás, já nem me lembrava de um Agosto com clima de Agosto. Por norma, só damos pela falta dele quando precisamos, como em dias de festa em que não contávamos ter que carregar com um casaco. Logo este ano, em que estamos escassos em festas, vem o calor em força. E os casacos ficavam em casa. Enquanto destilava e tomava a minha água com gás, muito gelo e uma rodela de limão, dei por mim a fazer a pergunta que já deve ter cruzado a mente de mais de metade da população mundial: E se a Eva tivesse resistido à serpente e não tivesse comido a maçã? E se, pelo menos, não tivesse influenciado o Adão a pecar com ela? A culpa original pode ser mesmo dela. Será que o verão era agora menos quente e o inverno menos rigoroso? Será que tínhamos tido alguma benesse extra no que toca à nossa existência? As nuvens seriam, tal como parecem vistas daqui, feitas de algodão-doce, e que poderíamos mesmo comer, sem engordar ou ficar diabéticos? Iríamos mesmo viver para sempre, de preferência jovens e saudáveis? Quem sabe, o clima seria decidido em cada lugar de acordo com o merecimento de quem lá mora. Como uma prenda, ou uma punição. Mesmo que tenha sido assim, percebo a Eva. É muito difícil ser perfeito e nunca errar. Até porque às vezes, queremos mesmo errar. Não é que não saibamos a diferença entre o certo e o errado, ou que não tenhamos consciência que poderíamos ter tomado melhores acções. O que acontece é que é o que queremos, porque somos humanos. E os humanos guiam-se por leis que, tal como à Eva, nos levam por caminhos que não achávamos que nos estivessem destinados. A diferença entre o certo e o errado também é muito ténue. Há mesmo um lado bom e um lado mau? Uma decisão acertada ou um tiro ao lado? Talvez. Mas o que a Eva nos deu também, em última análise, foi o livre arbítrio para pensarmos somente com a nossa razão e a nossa emoção, sem concepções pré-definidas. Assim, vamos poder descobrir, sozinhos, onde nos levam os nossos desejos e as nossas escolhas. Vamos poder investir no que achamos que nos faz felizes, fugir do que suga as nossas energias. Vamos poder fazer tantas coisas quantas quisermos, para não morrermos estúpidos e na ignorância, ou com receio de que, sem querer, acabemos por arrefecer o verão ou aquecer o inverno. Mesmo se acabarmos por ouvir acusações sobre a súbita subida de temperatura no Céu ou se fizermos nevar no inferno em pleno mês de Agosto, vamos poder ter a firma certeza que, simplesmente, estamos a viver. O melhor que podemos e sabemos. Sem medos.

Lembranças com cheirinho a fruta e flores da moda

Há coisas que, com o tempo, começam a parecer-nos como aquelas embalagens de óleo corporal de usar no banho - com o uso, o rótulo começa a encaracolar nas pontas, o que nos leva a desconfiar da integridade do conteúdo. Temos sempre a opção de retirar o rótulo. Arrancar tudo de uma vez. Mas depois fica a dúvida. Será que deixarmos de ver o rótulo nos vamos esquecer do que está dentro do frasco? Que vamos deixar de saber que se deve usar com a pele molhada? Então optamos por deixar tudo como está, até que, eventualmente, acabe por cair sozinho. E aí não sentiremos qualquer culpa, porque não tivemos responsabilidade no que aconteceu. Obviamente que algumas coisas são mais do que um frasco de loção para o corpo. Quando muito, seriam uma loção para alma. E mesmo que ficassem desbotadas e não tão bonitas como no início, certamente não seria motivo para descartar. O que é certo é que o tempo tem o poder de apagar, ou pelo menos, acalmar. Tudo. O tempo dissolve as coisas. O que dói fica só a ser um sentimento pequenino de incómodo, como uma cicatriz de uma ferida em que tivemos que levar pontos. O que era uma euforia transforma-se num sorriso agradável de uma lembrança boa. O que não teve importância fica difuso ou omitido. As dores, os desejos, as alegrias. Tudo começa por ser um frasco de loção muito bonito, com óptimas características. Até que a água quente dos banhos vai transformando, em algo que, apesar de ter a forma inicial, já não é o mesmo. Mas há coisas que a memória teima em guardar. Como aqueles sabonetes especiais que nos dão nos anos e que ficam para uma ocasião especial, que nunca chega. Mas ficam lá. Intactos. Vamos limpando o pó, colocando num sítio mais à vista, não vá surgir uma oportunidade de finalmente usar. Já outras memórias são como um incêndios de grandes dimensões que precisasse de vigilância constante. Porque basta uma faúlha para tudo voltar a arder, e às vezes até com mais intensidade. O que não esquecemos é aquilo que nos marca, às vezes sem o sabermos. Porque, de algum modo, prende as nossas energias. Para o bem e para o mal. Pensei em tudo há uns dias enquanto fazia mira ao meu óleo corporal com cheirinho a fruta e a umas flores da moda. Está a mais de meio, e começa a descascar. Depois, quando acabar, gosto tanto que vou comprar uma embalagem novinha em folha. E vou esquecer-me de quantas embalagens tive daqui a algum tempo. As memórias também ficam em tantas embalagens que deixamos de nos lembrar delas. A forma, do tamanho. Mas elas estão ali. Não sabemos quantas são. Todos os dias vão crescendo e acumulando. E vamos armazenando. Vão mudando de forma, de feito, até de cor. Mas, um dia, esses frascos vão começar a cair das prateleiras. Vão começar a partir-se à nossa frente e a libertar o seu conteúdo. Algumas poderão ser deliciosas. Outras dolorosas. Outras, uma surpresa. E se as memórias não param de nos assaltar, podemos dar-lhe uma nova forma, como a embalagem sem rótulo mas totalmente funcional. Ou podemos ir mais longe e criar novas memórias ligadas às memórias que já temos. Porque, afinal, se que nos continua a assaltar o pensamento é porque não pertencem ao passado.

Sonhar é como escrever um romance?

Há alguns anos, tinha um sonho recorrente. Ali estava eu, vestida de noiva, com a sensação de ter o coração esmagado no peito. Não sei se o vestido era bonito ou feio, apenas que era farfalhudo e comprido. Tinha o cabelo apanhado elegantemente atrás, com algo preso, branco e translúcido, a esvoaçar. Estava na igreja da minha terra, o que justifico com o facto de a minha mente saber que foi naquela em que entrei mais vezes, e por isso era mais fácil construir um espaço cénico. Ali estava eu, contava-vos, caminhando agoniada , sem sorrir e sem olhar para os lados, até parar no altar, para encarar um noivo todo emperiquitado, cuja cara nunca vi com nitidez. O senhor padre, também desfocado, fazia a típica pergunta:”Aceita este homem (não havia direito a nome, era assim “homem”, genericamente) como seu legítimo esposo?”. E eu, inspirava, expirava, pensava e respondia com certeza:”NÃO!”. Pegava no vestido farfalhudo até quase ao nível dos joelhos e corria igreja abaixo, pelo corredor central, focada na porta. Além do toc toc acelerado dos sapatos de salto alto que tinha calçados, só ouvido os “oh!” de reprovação e surpresa dos convidados, que enchiam o local até ao tecto. Na rua, na calçada em paralelo, esperava- -me outro homem, montado numa grande motorizada preta como que se soubesse que eu ia desistir. Tinha calças e uma casaca de cabedal pretas, capacete a condizer e viseira para baixo, é claro, para que ninguém, inclusive eu, tivesse sequer um vislumbre a sua identidade. Contudo, sentia o conhecia muito bem. E alívio e felicidade invadiam-me. Arregaçava mais uma vez o vestido farfalhudo, subia para a mota a sorrir, e ele arrancava furiosamente. E, depois, acordava. Os sonhos, estranhos e difusos, parecem-se muitas vezes com o enredo de um romance corriqueiro, mas que entretém muitíssimo. Nem sempre tudo nos parece realista, porque é floreado, como quando contamos algo íntimo aos amigos. E é como nos sonhos, em que vemos o necessário, e não o sórdido, suficiente para acompanhar os acontecimentos. Nos romances, por norma, há uma protagonista, que é sempre de um bonito médio- -alto. Não sendo uma supermodelo, é daquelas mulheres que prende. É inteligente, confiante, maquilha-se e veste-se com bom gosto. E terá a predilecção por alguma marca ou coisa cara, que não pode ter sempre, porque não é milionária. Não passa fome, mas às vezes tem que apertar o cinto. Está rodeada de amigas e amigos fiéis, que são igualmente interessantes, só que nunca ao mesmo nível. E depois, há o co-protagonista romântico, que é lindo de morrer, deixando tudo louco só por existir. E, por seu lado, é podre de rico. E sexy, educado, bem formado. E os seus abdominais perfeitamente definidos contorcem-se de amor sincero, vá-se lá saber porquê, pela miúda mediana, quando podia ter todas as que quisesse. Mas, aparentemente perfeito, tem lá um defeito irreconciliável ou um terrível segredo, com o qual é preciso lidar e sofrer. Talvez os romances sejam inspirados em sonhos, assim como o meu. Para mim, faz sentido. É que não acho que a vida seja assim, como nos livros. E, com pena, também nunca fui a um enlace em que a noiva fugisse.

Sobre a casa

Quando era pequena odiava sair de casa. Não era sair para o quintal, ou sair para ir comer um gelado ao café, ou brincar com os amigos. Não. “Sair” no sentido de “dormir fora de casa”. No início, parecia sempre uma boa ideia. Dormir fora, noutra cama ou até no chão, num local improvisado. Algo diferente, num ambiente diferente. Ah! Que coisa maravilhosa.
Mas depois, chegava a parte de vestir o pijama e arranjar-me para dormir, efectivamente. E aí, meus amigos, caía na dura realidade - não estava na minha cama, no meu quarto, na minha casa. Pasmem-se, eu já sabia de antemão que era isso que ia acontecer. Mas só naquele momento parecia real. Só ali se concretizava. E descobria, afinal, que tudo o que eu queria era estar em casa. Quando toda a euforia de estar num sítio diferente do habitual e sem os meus mais próximos se esvaía, só queria voltar ao aconchego diário.
Há um clássico familiar, quando eu tinha uns 5 anos. Não sei bem, mas ainda era pequena. E fui passar uns dias a casa dos meus padrinhos. No início, pareceu-me uma óptima ideia. Ia, consequentemente, passar uns dias por lá. A minha mãe arranjou-me a mala. Provavelmente foi assim que aconteceu. Se escolhi alguma coisa, foram os brinquedos. O que me lembro, e que se conta como uma espécie de lenda, é que ainda nem a viagem tinha 5 minutos quando eu, já ensonada, disse “se estivesse em casa, a minha mãe já me tinha feito a cama”. Naquele momento, já não me devia parecer boa ideia ter deixado o meu lar, e assaltavam-me pensamentos em que os meus pais estavam tristes, à janela, a aguardar de forma impaciente o meu regresso. Em que estavam abalados com o facto de não terem a criança para ir deitar. Se calhar, nem era assim que se processava e até era um alívio uns dias de descanso de mim, mas o que é certo é que eram estas as imagens projectadas pelo meu cérebro.
A conclusão é que é bom viver aventuras, ver coisas novas e criar novas memórias, mas poder regressar a casa rapidamente. Hoje conservo esta dificuldade em deixar a casa para ir para outros locais, ainda que saiba que é temporário. Sempre, ou quase sempre, por períodos curtos. Muitas vezes ainda nem parti e já estou a sonhar com o momento do regresso. Quando passa o frenesim de empacotar os pertences, averiguar o que é preciso, ver se nenhuma torneira ficou a correr ou se não deixei o ferro de passar ligado à tomada, ir já não me parece uma ideia tão promissora como parecia antes, durante o planeamento, em que tudo eram expectativas.
O ideal é ir ver coisas novas e voltar logo. Voltar para o aconchego, onde sei onde estão as coisas e onde está tudo o que preciso. Na minha cabeça, este é o ideal. Nem sempre é possível assim, até que finalmente alguém invente o raio do tele-transporte. Como é que ninguém está a investir nisso? Não sei. Se eu fosse cientista ou de uma dessas novas engenharias, era o que queria inventar - o tele-transporte. Se eu tivesse 5 anos, num banco de trás do carro dos meus padrinhos, era o que me parecia bem. Ficar no meu ninho, onde eu conheço e me sinto bem. Onde está tudo o que preciso. Na minha casa. De preferência, na minha casa de quando tinha 5 anos, com a minha família para me aconchegar nos lençóis. 

 

O estranho caso da botija e respectivas comparações

Uma das coisas mais caricatas que

já me aconteceu

foi o furto de uma botija de gás. Isto aconteceu há uma meia dúzia de anos. Levaram-me uma botija de gás, que tinha sido deixada mesmo em frente à minha porta, dentro do primeiro andar de um prédio. Descobri cheguei a casa e não vi a botija que esperava que já lá estivesse. Quando questionei a quem de direito quando chegava a minha encomenda, que já estava paga, disseram-me que tinha sido entregue. Os larápios deixaram-me, na sua vez, um vasilhame vazio. Ladrões conscienciosos, que pelo menos quiseram poupar-me ao transtorno de pagar o extra de quando se compra uma botija sem ter outra igual sem nada para dar em troca.

Já morava sozinha nesta altura. Ou melhor, era a primeira vez que morava totalmente sozinha, porque fora de casa da mãe já tinha estado antes, quando fui estudar fora. E nesse dia senti-me revoltada e perdida. Sem saber bem o que tinha feito merecer aquele assalto e aquela invasão de privacidade, que foi alguém ir ao canto onde eu morava e ter procurado algo de valor que pudesse ali interessar, naquele T0. Por norma, nesta entreajuda entre seres humanos, eu só tinha que me preocupar em deixar o dinheiro do gás no café ali ao lado. E depois o senhor fazia o favor de me carregar a botija até mesmo à porta, num prédio que não tinha elevador. E a senhora do café ali pegado dava-lhe o dinheiro e ficava-me com o recibo de pagamento. Foi assim que se conseguiu averiguar que tinha sido roubada.

Consta-se que foi um casal esquisito, que morava do outro lado do corredor, que discutia muito. Nunca vi nem um nem outro, apesar de os ouvir. Nas discussões, e também quando faziam as pazes. Se calhar eles também nunca me viram, e, a terem sido eles, nunca tiveram que enfrentar o meu ar de desapontamento e de reprovação, por ter sido lesada por vizinhos, estes sem qualquer espírito de solidariedade.

Às vezes acho que é isto que acontece quando magoamos alguém, mas nunca temos que encarar com os lesados. Seguimos a nossa vida, sabendo mais ou menos o que aconteceu. Poderemos ter feito mal ou não. É como fazer um exame e nunca saber a nota final. Com o passar do tempo, deixa de interessar. Já fizemos outras coisas, já conhecemos mais pessoas, já deixámos uma pedra em cima do passado. E não damos margem a reclamações. Como as garantias dos electrodomésticos, que só valem num determinado período. Depois, cada um que se amanhe com as avarias que possa ter.

Ao fim ao cabo, somos obrigados a seguir, e deixa de fazer sentido pensar em acções, em que lesámos ou fomos lesados. Já não há nenhum papel válido para mandar para a marca, fazer reparações, se houver lugar a elas. Ao fim ao e cabo é como tomar a decisão de, em vez de tentar remediar, partir para a compra de um aparelho novo.

Tal como eu fiz com a botija de gás. Sem outra solução, tive que comprar uma nova, se me quis governar. Mas lembro-me muitas vezes deste furto. Se calhar, os culpados também se lembram. Ou talvez não. O que é certo é que todos tivemos que viver com isso. Com mais ou menos consequências.

 

A máquina da felicidade

Nos últimos dias do ano somos sempre invadidos pelo balanço anual dos nossos amigos nas redes sociais. Há sempre algo filosófico a dizer, algo que mudou mesmo muito, algo bonito para mostrar, uma mensagem de esperança e, às vezes, de esconjuro dos últimos doze meses, que por algum motivo cósmico nunca identificado, não correram de feição. Há fotografias bonitas, onde aparece o melhor do ano velho. Reparem como é difícil falar do final do ano e do ano novo sem repetir a palavra “ano”. Por isso, vamos combinar que, destas linhas para a frente, 2019 passa a ser “o velho” e 2020 “o novo”, só por uma questão de praticidade.

Pergunto-me se queremos mesmo saber como foi o velho das outras pessoas, ou o que querem para o novo. Até porque, bem, nunca ninguém iria desejar um péssimo novo e, à partida, não vai ameaçar o novo com cobras e lagartos, e por isso não temos que nos preocupar com o bem-estar alheio, porque estamos todos a pensar no mesmo. Tudo que é novo, nós queremos. Porque novo é melhor do que o velho, que já é usado e já tem efeitos do desgaste.

Ainda assim, há uma coisa que me mete espécie – onde é que estão os desejos reais, do dia-a-dia? Só assistimos a pessoas que querem passar mais tempo com os amigos e a família, que querem viajar, que querem continuar a ir ao ginásio (de preferência, dia 1 de janeiro também), que querem, abstractamente, ser felizes. E isso é, de facto, somente abstracto, porque a felicidade é tanta coisa diferente.

Comecei a ter esta perspectiva daquilo que a felicidade é, ou posso ser, quando comecei a assimilar que com a idade esta concepção também muda. Desta vez, com o velho termina também uma década. E eu mudei de década, em termos de idade, e entrei nos 30. Nasci em 1989, já no final do ano, e por isso estou condenada a mudar assim as décadas ao sabor dos calendários. Claro que também quero todas as coisas bonitas que versam nas redes sociais, mas há outras que também quero e que me trazem felicidade. Felicidade que nunca tinha conhecido. Por exemplo, no final desta década (em que, em jeito de reflexão, marcou a minha passagem da vida de estudante para a classe trabalhadora), concretizei um sonho que vinha a marinar há alguns meses.

Assim, antes do velho acabar, comprei uma máquina de secar roupa. É um aparelho que me tem feito tão feliz como todas as fotografias de felicidade pura e sem poses que tenho visto nas redes sociais. E ainda tem a vantagem de ser uma felicidade com cheirinho e quentinha, apesar de talvez um pouco mais ruidosa do que o que imaginava.

Reparem que consegui, através do nosso combinado, evitar repetir a palavra “ano”, mas não arranjei outra para expressar correctamente “felicidade”. Afinal, tudo se resume a ser feliz, seja como for, até com a compra de uma máquina de secar.

A minha mãe costuma fazer sempre um brinde na Passagem de Ano, que é assim: “De hoje a um ano! Que corra pelo mesmo cano!”. E faço meus estes votos para 2020. Fora o Velho, venha o Novo. Estaremos todos preparados, à espera, carregadinhos de sonhos e de vontade de sermos felizes.